Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

domingo, 31 de janeiro de 2010

Deu no Estado de Minas

O jornalista Ailton Magioli, bom companheiro de redação, conversou com Pedro Paulo Cava e Jota Dangelo, dois grandes nomes do teatro brasileiro. A matéria está no caderno EM Cultura de hoje. A foto, feita do Teatro da Cidade, é de Marcelo Sant'Anna.


Haja história!

Livros dos diretores Jota Dangelo e Pedro Paulo Cava contam a trajetória do teatro mineiro a partir dos anos 1950. A dupla assinou montagens que fizeram sucesso nos palcos do estado


Ailton Magioli

O registro, em livro, das memórias de dois importantes diretores do teatro mineiro promete trazer curiosidades à cena. Como a constatação de que a Igreja Católica é responsável pela opção de Jota Dangelo, de 78 anos, e de Pedro Paulo Cava, de 60, pelos palcos. Dangelo está em cartaz na 36ª Campanha de Popularização do Teatro e da Dança com a única comédia que escreveu: Oh! Oh! Oh! Minas Gerais, que será apresentada na terça-feira, no Palácio das Artes. Cava dirigiu Banheiro feminino, em cartaz no Teatro da Maçonaria, e o musical Brasileiro, profissão esperança, atração do Teatro da Cidade – aliás, construído e dirigido por ele.

Mineiro de São João del-Rei, Jota Dangelo chegou a Belo Horizonte em 1950, trazendo consigo o que chama de germe do teatro. “Nasci em uma cidade teatral, barroca, ritualística e com certa obsessão pela morte”, diz o ex-aluno do Colégio Santo Antônio. Um dos princípios desse educandário religioso era: liberdade só se conquista com responsabilidade.

Depois de passar pelo Colégio Anchieta, onde funcionava famoso grêmio literário, o belo-horizontino Pedro Paulo Cava foi atraído pela Juventude Estudantil Católica (JEC) e começou a carreira artística na Igreja de São José, integrando o grupo Teatro Jovem. “Essa era uma das formas de atuação que a Igreja achou para renovar a liturgia – que passou do latim para o português – e para marcar presença na sociedade”, recorda ele.

Diante das três opções em voga na época – engenharia, advocacia ou medicina –, Jota Dangelo acabou optando pela carreira de médico. Estudou na UFMG e integrou o corpo docente da faculdade de medicina da instituição até 1985, quando se aposentou. Superintendente da Fundação Clóvis Salgado no governo Tancredo Neves, sempre esteve envolvido com o serviço público. Foi secretário de Estado da Cultura em 1985 e 1986, atualmente preside o Instituto BDMG Cultural. Seu livro, Os anos heroicos do teatro em Minas, centra foco no período de 1950 a 1990. Há pouca coisa publicada a respeito do teatro mineiro naquele período, explica. “Quem escreveu, como Jorge Fernando dos Santos, autor de BH em cena, não teve a vivência da época”, repara o veterano, um dos criadores, em 1954, do Show Medicina – espetáculo de variedades encenado até hoje por estudantes de medicina da UFMG.


Entrevista

Jota Dangelo quis registrar não só o trabalho dos grupos que fundou e de que participou, mas também o de trupes atuantes naquele período. “Isso só poderia ser feito em forma de entrevistas”, garante ele, que entrevistou pessoalmente 14 artistas. Entre eles estão Ronaldo Boschi, Ronaldo Brandão, Carlos Xavier, Walmir José, Ítalo Mudado, Zé Antonio de Souza, Eid Ribeiro, Priscila Freire e Pedro Paulo Cava.

Com trabalhos de medicina publicados pela Livraria Ateneu, Jota Dangelo escolheu a mesma editora para lançar o novo livro. “A década de 1950 foi fundamental para a gente poder criar o Teatro Universitário. Paralelamente ao TU, fizemos o Teatro Experimental. Daí para a frente, fui para O Grupo e, depois, para a Casa de Cultura Oswaldo França Júnior”, relembra Dangelo, adepto assumido dos clássicos. “Chega o momento em que todo ator, se não conseguir fazer um ser humano, não se sente completo. É aquilo que a gente chama de esquizoide. O ator não é esquizofrênico, é esquizoide. É outro, sendo ele mesmo”, ensina o adepto de William Shakespeare.

A convite de Dangelo, Pedro Paulo Cava passou pelo Teatro Experimental antes de integrar o grupo da Escola de Tradutores e Intérpretes, onde estudava russo e alemão, ao lado de Helvécio Ferreira. “Considero Jota Dangelo e Helvécio Ferreira meus guias espirituais nessa trajetória”, diz Cava. Ele decidiu se profissionalizar no teatro em 1967, depois de ficar dois anos em cartaz, quase diariamente, com o musical Liderato, o rato que era líder, de André Carvalho e Gilberto Mansur.

“Aquilo me permitiu ver que era possível viver de teatro em Belo Horizonte”, diz o diretor, na época estudante. Apesar de estudar sociologia, Pedro Paulo Cava nunca concluiu o curso universitário. Foi tomado pelo teatro – especialmente pelo musical, gênero que marcou sua carreira. Dirigiu Mulheres de Hollanda e Brasileiro, profissão esperança, por exemplo.


Internet

Primeiro presidente do sindicato da categoria em Belo Horizonte, Cava, como Dangelo, teve de enfrentar a censura no período militar. Liderato, por exemplo, acabou saindo de cartaz abruptamente. Entre 1974 e 1981, ele se responsabilizou pela Galeria Guignard, que funcionava no Teatro Marília. Para contar essas e outras histórias, o diretor convocou o ghost writer José Carlos Aragão para escrever o e-book O épico, o trágico e o cômico – 45 anos de teatro e artes. Prefácio e depoimentos podem ser conferidos em www.pedropaulocava.com.br, além do primeiro e do segundo capítulos “Raízes” e “Anos 50 – Infância”.

A entrevista é o recurso utilizado por Aragão para revelar, no site, as memórias do diretor. “É supercontemporâneo e moderno. Além de ler, as pessoas poderão palpitar”, justifica Cava, classificando o livro virtual como obra aberta. “Se alguém quiser publicá-lo, fique à vontade. Não vou publicar porque é muito caro. Além disso, a internet possibilita a edição de muitas fotografias e de imagens que tenho guardadas”, revela.

Pedro Paulo diz que não se trata de livro sobre sua história particular, mas sobre a geração que, depois do golpe militar de 1964, optou pela arte ou pelo jornalismo. “Esse pessoal foi fazer o jornalismo paulista, foi fazer parte do teatro do Rio de Janeiro e de São Paulo. Principalmente, vou falar sobre os que ficaram aqui”, conclui o diretor, que contabiliza cerca de 100 espetáculos no currículo.






Vozes da experiência

Os diretores Pedro Paulo Cava e Jota Dangelo conversam sobre os dilemas das artes cênicas

Ailton Magioli

Não é fácil fazer teatro no Brasil. Mas isso não desanima Jota Dangelo e Pedro Paulo Cava, nomes importantes das artes cênicas mineiras. Em bate-papo no Teatro da Cidade, a dupla critica as mudanças na lei de mecenato propostas pelo Ministério da Cultura, reclama de empresas e gestores especializados em intermediar a produção cultural e garante: a falta de críticos especializados faz falta ao teatro de Minas Gerais.

Atentos à cena contemporânea, os dois recomendam cuidado a jovens grupos. “Alguns deles se tornaram massa de manobra de uma pseudopolítica cultural que se instalou em alguns estados. Em Belo Horizonte, isso foi de uma clareza absoluta. Manipulam-se os recursos para esse tipo de gente”, afirma Cava. “Em alguns espetáculos noto que o pessoal está mais preocupado em fazer charada que teatro”, adverte Dangelo.


O que melhorou e o que piorou no teatro feito em Minas Gerais?

Jota Dangelo – A coisa mais importante foi a facilidade que as pessoas têm, hoje, de se formar em uma escola profissionalizante, em curso para atores. Com isso, obviamente, multiplicaram-se as possibilidades de se encontrar bons atores, bons diretores. Evidentemente, também se multiplicaram os grupos, nem sempre de muita qualidade. Há um problema sério nessa profissão: o ator tem de ser chamado, ele não sai da escola e vai fazer teatro. Como isso às vezes não acontece, alguns acabam se juntando para formar um grupo. E aí se multiplicam os grupos.

Pedro Paulo Cava – O Dangelo tem razão na questão da escola. Participei de uma, a do Ronaldo Boschi – o Centro de Pesquisas Teatrais, nos anos 1960 e 1970 – e depois fundei a Oficina de Teatro, em 1981, embrião de outras escolas, inclusive a do próprio Palácio das Artes. Agora, outra coisa que contribuiu para a melhoria das escolas de teatro foi o aumento do número de casas de espetáculos. O Teatro da Cidade foi a primeira casa particular de Belo Horizonte construída por um artista. Na época em que a abri, só havia teatros públicos aqui. Começamos a obra em 1987, inauguramos em 1990. Vamos fazer 20 anos agora. Acho ruim o fato de todas as companhias, grupos e produtores – que antes faziam com recursos próprios ou de marketing de empresas, em parcerias espontâneas – terem se tornado reféns das leis de incentivo. Criou-se uma figura estranha no meio: as empresas que intermediam e o gestor cultural, que, se puder atrapalhar, faz tudo para isso.


Fenômeno de público, a Campanha de Popularização do Teatro e da Dança é alvo de críticas, principalmente por causa do grande número de comédias na programação. O que vocês têm a dizer sobre isso?

JD – Acontece um fato estranho em relação a essa campanha. A impressão que se tem é de que o público belo-horizontino resolveu eleger a campanha para ir ao teatro. No resto do ano, ele não estaria interessado. Chega a hora da campanha, é hora de o público se voltar todinho para as artes cênicas. Então, é um fenômeno estranho, porque talvez Belo Horizonte seja a única cidade brasileira em que o evento, que vem de muitos anos, persistiu. Verdade que há número exagerado de espetáculos e comédias. Outro dia mesmo, conferi a programação para ver se ia a alguma peça. Nada me atraía.

PPC – A campanha começou em 1973-74. A primeira foi feita no grito pelo Júlio Varela e por Edi Barreto Mendes. Logo depois, como presidente da extinta Fatedemg, assumi o projeto e vendemos 500 e poucos ingressos. Foi um sucesso. Hoje, vendem-se 360 mil. É o maior evento teatro do país, não tenho dúvida. É alvo de críticas – primeiro, porque é um sucesso; segundo, porque realmente há coisas que precisam ser críticas. Mas a questão não é o número grande de comédias. O brasileiro gosta de comédia. O problema, às vezes, é a qualidade de determinados espetáculos e o oportunismo de algumas pessoas. Elas jamais fizeram temporada, uma produção, mas fazem algo para poder entrar na campanha, para ganhar algum dinheiro para começar o ano. Isso, dividido por 12 meses... Quer dizer: se pegarmos o salário do ator, não dá para ele se sustentar durante o ano. A campanha realmente tem uma fórmula de sucesso, o público que vai ver essas comédias é das classes C e D, principalmente jovens.


Qual é o papel da crítica no fomento da cena teatral?

JD – No momento, é zero. Não há crítica. Aliás é o que falta ao teatro mineiro. Mesmo quando há alguns críticos, eles não escrevem regularmente. Hoje não há críticos de teatro, mas de espetáculos, que escrevem sobre tudo: dança, música, teatro. Falta não apenas fazer crítica, mas fazer parte do universo das artes cênicas para dizer também os problemas que a classe enfrenta e coisas relacionadas à política das artes cênicas.

PPC – Acho necessário voltar a fazer um curso, como na época da Oficina de Teatro, que formou vários críticos. Na época, trouxemos Yan Michalski, Edelcio Mostaço e outros especialistas, formamos alguns críticos aqui na imprensa. Está faltando dar essa cutucada nos jornalistas da área. A cutucada pode ser um curso de crítica, um curso intensivo sobre como ver um espetáculo teatral e também sobre como estar dentro da problemática do setor, como o Dangelo falou. A crítica já teve papel mais importante do que tem hoje.


As leis de incentivo realmente estimulam a produção?

JD – Hoje, é impossível pensar em produção nas artes cênicas sem leis de incentivo. Fora o filme Lula, o filho do Brasil, todo mundo precisa das leis. Mas elas têm sua face perversa, suas distorções , que não serão resolvidas como quer o ministro da Cultura, Juca Ferreira. Ele está preconizando mudanças de tal maneira que deixará de existir o mecenato para ficar só o fundo cultural. Isso é viés ideológico, é estatizante, vai acabar em grupinho pequeno dizendo o que vai ser beneficiado e o que não será. Se bem que tenho informação de que a mudança da lei não vai para a frente.

PPC – Só uso lei de incentivo para a manutenção do Teatro da Cidade. Nunca recorri a ela para espetáculos. Em todos eles acabo, de certa maneira, obtendo um ou dois patrocínios para que sejam realizados por meio de marketing direto para as empresas. Como estou fazendo isso repetidamente, vamos fidelizando esses patrocinadores. A proposta do ministro da Cultura de acabar com a lei é ditatorial, a classe artística não foi ouvida. Tanto Caetano Veloso como Zé das Tranças, que tem um congado lá em Matipó, têm direito de acesso à lei. Trocá-la por um fundo, que vai ficar na mão de um burocrata da cultura e, em geral, tem uma cor partidária... Encarregar esse burocrata de determinar a política a ser adotada é tirar a roupa de um santo para vestir outro. O ministério alega que as empresas estão determinando a estética da cultura brasileira. A partir de então, seria o governo. Ou seja, nós vamos voltar ao tempo da ditadura. Isso não vai passar no Congresso.


De que o teatro precisa neste momento?

JD – Tenho uma ideia meio esdrúxula, não apenas em relação ao teatro. Vejo a cultura de maneira tão diferente. Mais que todas as artes, o teatro é coletivo. Há necessidades tão específicas de cada grupamento, de cada produtor, que fica difícil falar em política cultural. Quando ouço falar em política cultural, tenho a impressão de que se pode uniformizar as coisas. Na política para o teatro e as outras artes, precisa-se daquilo que estabelecemos há muito tempo: ao Estado cabe simplesmente estimular, divulgar e fazer com que o acesso à cultura seja o mais amplo possível. Não mexam no processo criativo, por favor. Isso cabe a quem cria.

PPC – O que está faltando ao teatro é qualidade, além de uma coisa que a gente fazia nos anos 1960, 1970 e meados da década de 1980. Os artistas se reuniam para pensar o que é produção, o que é a coisa do movimento cultural. Hoje, vejo reuniões para pensar políticas públicas de cultura. Isso não interessa muito para o artista, não. Para ele, que está na ponta e é beneficiado ou prejudicado por essas políticas, o importante é saber como divulgar o trabalho, como vai apresentá-lo, que público vai ter.

JD – Como vai sobreviver.

PPC – Falta à classe teatral ou cultural descer do salto alto e deixar de achar que é vanguarda. Não somos vanguarda de nada, estamos vivendo um momento extremamente caótico, em que há desinformação total a respeito do que é arte e cultura. E ainda há a figura do gestor botando lenha na fogueira, dizendo que eles é que vão determinar que arte e cultura podem ser feitas neste país. Isso é uma espécie de censura.

JD – É preciso tomar um pouco de cuidado para a gente não cair em esparrelas, em armadilhas, como vejo hoje muito difundida uma tal de democracia direta. É mais ou menos aquela em que você faz consultas diretas como se as maiorias fossem a verdade. É preciso ter cuidado com esse tipo de coisa, porque nem sempre as pessoas estão em condições de decidir. Cuidado com isso, porque a cultura, quando evolui, evolui com experiência. É preciso ter avanço.


O teatro de grupo continua sendo uma alternativa?

PPC – O chamado teatro de grupo, hoje, vem para desunir a categoria. Ele foi um braço armado de determinados políticos, que chegaram ao poder com o objetivo de dividir a categoria, achando isso exatamente na chamada estética. Esses grupos de teatro de vanguarda, chamados de ‘teatro cabeça’, têm um tipo de patrocínio direto do Estado que mantém até o salário dos atores. Ao contrário dos produtores, obrigados a fazer o salário na bilheteria. Esses jovens grupos se tornaram massa de manobra de uma pseudopolítica cultural que se instalou em alguns estados. Em Belo Horizonte, isso foi de uma clareza absoluta. Manipulam-se os recursos para esse tipo de gente, porque o resto que está aí não presta. E é a coisa da falta de memória, também. Chega-se ao poder e apaga-se o que está para trás. É o mesmo que fazer a revolução de Mao Tsé-tung em um país capitalista.

JD – É preciso ter cuidado. Em alguns espetáculos que tenho visto, noto que o pessoal está mais preocupado em fazer charada que teatro. Você não sabe exatamente o que eles querem com o espetáculo.

PPC – O jovem artista de hoje quer falar mais do próprio umbigo que do coletivo. Eu e o Dangelo, que foi pai de todos nós, somos da geração do coletivo. Claro que, em determinado momento, fizemos espetáculo sobre a angústia do homem, a questão existencial. Mas teatro não pode ser só isso. E também não pode ser uma forma hermética, charada para determinado tipo de público. Algo que não precisa e, aliás, nem quer mais de 20 espectadores. Isso só reduz informação. Não é prestação de serviço, é para um grupo de iniciados.

JD – Tenho acompanhado a coisa no eixo Rio-São Paulo, está ocorrendo a mesma coisa lá. Dificilmente, os produtores cariocas e paulistas – com raras exceções – conseguem fazer temporada de três meses. É, no máximo, um mês, um mês e meio. O que acontece? O sujeito está pegando patrocínio, aquilo pagou a produção, ele não está mais interessado em bilheteria não. Aquilo acabou e ele já quer fazer outro espetáculo. O mais prejudicado é o ator, que perde o público.


Estado de Minas - Ailton Magioli - 31/1/10

sábado, 30 de janeiro de 2010

O homem e o tempo

Não faz mal não saber exatamente o que você quer. Basta existir. Ainda que viver não pareça ter sido um grande evento até aqui. Pessoas vêm, pessoas vão, e você continua ali, com essa incrível vocação para cometer erros. Contudo, gosta bem de desafiar o que outros chamam improvável e, antenado, tem grande atração pelas roubadas. Parabéns! Como náufrago em terra firme, vive de recolher restos para construir sua jangada, atravessar o oceano e não morrer na praia. No entanto, bem ou mal, sabe bem que para sobreviver basta existir.

Não importa o que algumas pessoas pensam a seu respeito, já que nem você sabe exatamente o que pensar sobre isso. Além do que, pensar já não é o forte há algum tempo. Você pode ter crescido na pobreza, entre crianças que passavam fome e frio. Pode ter sido abandonado pela mãe, pelo pai ou, quem sabe, ter testemunhado os dois saírem no tapa. Enterrou irmãos e chorou a morte de amigos. Viu seu vizinho se tornar criminoso e morrer durante troca de tiros com a polícia. Pode ter tido parente próximo, dentro da sua casa, preso como traficante. Talvez até tenha ficado em cana por algum tempo. Ainda assim, sobrevivente, sabe que para ler o que está lendo basta existir.

Não pode ser puramente besta a loucura. Qual é a razão exemplo absoluto de lucidez? Acreditar em tudo e em todos pode não ser de todo mal, levando em conta que bem pior seria negar a verdade a quem merece confiança. Portanto, não esqueça o tempo, senhor de todas as ações, que, mais cedo ou mais tarde, faz valer cruel o peso das evidências. Amou demais quem não prestava? Responda antes: quem sabe se presta? Dizer o que se sente não é o mesmo que sentir o que se diz. No chão, tendemos a acreditar na covardia do outro, sem considerar que este outro pode estar dentro de nós mesmos. E qualquer eu, sujeito, tão imperfeito, se ergue porque para seguir basta existir.

Não vale choramingar má sorte já que o passado não é via de dois rumos. Melhor olhar para frente. Covardia maior não há do que fazer-se fraco e dar as costas a tudo de útil que ainda se tem por fazer. Melhor morrer em campo, lutando, do que em sono profundo. Enxergue seu quintal antes de querer avistar o mundo. É o que dizem. Pode haver de tudo a um palmo do seu nariz. Como lamentar a miséria do outro se falta dignidade para manter as suas próprias ideias? Não. Não vale se alimentar de chorumelas. Afinal, não pode haver mal sobreviver, já que existir basta.

Não mude de assunto por não saber o que dizer. Bobagem. Tanta gente não sabe e vive a arrebatar multidões. Você pode até não ser doutor nisso ou naquilo, mas entende bem a diferença entre o discernimento e a ignorância. O jeito é tomar tenência, amigo. Aquela história de diversão com os sentimentos dos outros é burrice. Deixemos também de lado essa vaidade besta que superestima as estaturas. Ninguém é tão pequeno que não possa atingir o céu, nem grande o suficiente para se livrar do inferno. Não ser é uma questão de tempo. Para todo o resto basta existir.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 30/1/10

O absurdo e seu duplo

E o absurdo segue reinando no Verão Arte Contemporânea de 2010. Ionesco, Beckett, Jean Genet, Artaud, Dürrenmatt, Albee e Arrabal fazem escola em Belo Horizonte. Ganha o público, que, assim, pode ter acesso a um teatro diferenciado, distante do que comumente se vê brotar em cercas. Até amanhã, no Espaço Trama – Teatro Garagem, na Floresta, tem programa duplo para plateia de comuns, iniciados e afins: 5 cabeças à espera de um trem e Pedaço de homem cercado de outro por todos os lados. O primeiro, esquete ajustado de 15 minutos com direção e dramaturgia de Byron O’Neill – que indica gostar muito de A cantora careca, clássico de Ionesco. O segundo, principal atração da noite, é bem mais surrealista do que propriamente absurdo. Ainda que pretensioso, é curioso embate de reflexão do homem pelo homem.

A começar pelo princípio, Byron O’Neill é criador de trânsito também no cinema. Seu foco de apuro em 5 cabeças à espera de um trem garante desenho inteligente a mais uma proposta vinda do projeto de cenas curtas do Galpão Cine Horto. Os diálogos muito bem interpretados pelos cérebros flutuantes, seguramente, valem a ida à Rua Salinas. Carol Oliveira, Luisa Rosa, Mariana Câmara, Ronaldo Jannotti e Saulo Salomão souberam acolher a proposta coreográfica de detalhes da direção. Agrupados, aduzem largo repertório de inflexões e expressões faciais (só com o que podem mostrar serviço, já que, do pescoço para baixo, estão todos fora de quadro). Na ficha técnica, o nome de Rafael Nelvam é destaque pela trilha sonora original acertada, que orienta e pontifica. Igualmente, a maquiagem de Daniel Mendes.

Fim de esquete, o público voltou à entrada para que o espaço fosse preparado para receber a segunda amostragem. Era hora de ver a estreia de Pedaço de homem cercado de outro por todos os lados. Arquibancadas e cadeiras ocupadas, dois jovens atores, dirigidos a quatro mãos por Juliana Putilla e Nina Caetano, assumem a arena. Marcelo Alessio e Rogério Gomes são artistas de preparo em partitura física. Cúmplices, jogam com dedicação e entrega por complementação mútua no campo do movimento. Texto falado é que não é o forte da dupla, que só atinge sustentação e naturalidade de inflexões por cansaço ou esgotamento. Falta-lhe o entendimento da nuance que enriquece a palavra. É engolida quando abre a boca. Outro fator de enfraquecimento é a dramaturgia, que excede em signos e abusa de referências, o que faz com que não haja suporte para sua hora de andamento.

O que há de melhor em Pedaço de homem cercado por todos os lados é sua concepção do homem e seu duplo – há drama existencial de significância no argumento. Ideia otimizada pela cenografia de Inês Linke e pela direção sonora de Stanley Levi. A ilha-papel absurda de restos e excessos, com sons desdobrados da própria ação, ampara corretamente o agrupamento de metáforas presente na montagem. Entretanto, a sensação que fica é que, originalmente enxuta, a cena foi esticada forçosamente para ganhar status de espetáculo. Com isso, desperdiça tempo com bobagens, como o ataque gratuito à campanha de popularização do teatro e da dança, durante leitura irônica de tragédias noticiadas nos jornais. Comentário infeliz do ator, que, sem a menor noção do que diz, além de ofender colegas que também batalham pelo pão, faz pequena obra que poderia ter mais a dizer.

5 CABEÇAS À ESPERA DE UM TREM
PEDAÇO DE HOMEM CERCADO DE OUTRO POR TODOS OS LADOS
Espaço Trama – Teatro Garagem, Rua Salinas, 642, Floresta, (31) 2515-1580. Até amanhã, às 20h. R$ 12 (inteira) e R$ 6 (meia-entrada).


Jefferson da Fonseca Coutinho - Estado de Minas - 30/1/10

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Programa cabeça

"5 cabeças à espera de um trem" e "Pedaço de homem cercado de outro por todos os lados" fazem parte de programa duplo que vai até domingo no Espaço Trama - Teatro Garagem (Rua Salinas, 642, Floresta, 2515-1580). Mesmo com ressalvas, vale conferir. Amanhã, resenha em Vida Bandida.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O Haiti é aqui. Em nós (2)

Foram muitos os e-mails recebidos por ocasião de nossa manifestação de solidariedade ao povo haitiano, publicada em Bandeira Dois, na semana passada. Entre eles, dia 21, o amigo Rod Steiger, que passou temporada em Porto Príncipe voltou a escrever:

“Estimado amigo Botelho,

Você nao faz ideia, meu caro, da emoção que foi ler sua coluna desta semana.

Voltei da missão de paz em abril do ano passado e fui nomeado instrutor da Escola de Aperfeiçoamento de Sargentos do Exército, aqui em Cruz Alta, no Rio Grande do Sul.

Mas nunca perdi contato com os companheiros que ficaram lá no BRABATT (Batalhão Brasileiro) e dos amigos que foram me substituir. A missão lá já era árdua, difícil, complicada; agora com todos esses empecilhos multiplicaram-se exponencialmente.

Sem contar com a sombra da morte. Isso ainda não consegui, meu amigo, absorver. Pensar que poderia ter sido ano passado. Eu poderia, vá saber, não estar com minha esposa, com a família. Isso aterroriza a gente. E nos faz pensar. Um monte de porquês rondando a cabeça da gente.

Cada um dos 18 companheiros que deram a vida pela paz, (um número tão alto para um país pacífico como o nosso, que desde a Segunda Guerra Mundial, foi o dia em que morreram mais militares de uma só vez), cada um deles, tinha sua história, você deve ter acompanhado. Um que morreu ao escoltar, ao fazer a segurança da D. Zilda Arns, (aquela senhora com cara e jeito de santa, mais uma mártir brasileira), outro tinha uma filhinha de cinco meses e já estava há seis no Haiti. Outro que estava na véspera do retorno para casa. Outro que tinha chegado no Haiti na véspera. E por aí vai. Cruel, Botelho, cruel.

Escrevo para voce ainda emocionado, por ter lido hoje sua coluna, e por ter acompanhado pela TV a cerimônia fúnebre em honra aos heróis falecidos em combate (o bom combate, o combate pela paz).

Mas gostaria de te agradecer. Não tanto por você ainda se lembrar do amigo aqui (o que muitíssimo me orgulhou). Nem por você ter mais uma vez me dignado com essa lembrança no jornal (a família já comprou um monte de cópias e já me mandou pelo correio, aqui para o sul). Mas muito mais agradeço pela sua reverência, pela sua distinção conosco, os militares, tão esquecidos pela mídia, pela imprensa e, porque não dizer, por parte da Nação.

Depoimentos como o seu, que é um grande comunicador de massa, uma forte e positiva influência para a população, nos dá mais forças para prosseguir em nossa missão, silenciosa e ininterrupta, acima de tudo, pela paz!

A propósito, o Brasil vai enviar, em caráter de urgência, um reforço para as tropas que já estão no Haiti, para aumentar a segurança da população, comandar a distribuição da alimentação e para a reconstrução do país. E eu já me inscrevi como voluntário.

Por último, Botelho, quando eu voltei pra casa, eu trouxe um presente, uma pequena lembrança do nosso Batalhão para você. Eu liguei aí na redação do Aqui, no começo de janeiro, quando estive de férias em Minas e me disseram que você também estava de férias. Me mande-me por favor, seu endereço, para eu te mandar pelo correio.

Fica com Deus, amigão.

Rod Steiger Silvestre – Cruz Alta/RS”
Bandeira Dois - Josiel Botelho - 27/1/10

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Cranberries

Para quem vai ao show da banda irlandesa The Cranberries, em Belo Horizonte, dia 31, no Chevrolet Hall, segue o setlist:

1. How
2. Animal Instinct
3. Linger
4. Ordinary Day
5. Wanted
6. Just My Imagination
7. Dreaming My Dreams
8. When You’re Gone
9. Daffodil Lament
10. Can´t Be With You
11. Ode To My Family
12. Free To Decide
13. Waltzing Back
14. Switch Off The Moment
15. Salvation
16. Ridiculous Thoughts
17. Zombie
18. Lunatic
19. Empty
20. The Journey
21. Dreams

Chevrolet Hall
Av. Nossa Senhora do Carmo, 230 - São Pedro
Belo Horizonte - Minas Gerais
(31) 3209-8989 - (31) 2191-5700
http://www.maristahall.com.br/

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Hoje tem espetáculo - terceira semana

Os sem vergonhas, com ingressos quase esgotados para esta semana, vem levando mais de 400 pessoas ao teatro na segunda-feira. Valei-me São Jorge!

Teatro Dom Silvério, hoje, amanhã e depois, às 21h.

Fora do lugar-comum

Dá gosto ver novos movimentos da cena teatral no Brasil. Especialmente em Belo Horizonte, terra de vocação para o boteco e o entretenimento. Verdade. A cidade é dura com quem busca fazer diferente. Que o diga o Grupo Teatro Invertido, com seu galpão de cerca de 150 metros quadrados, e plateia minguada, numa esquina do Bairro Sagrada Família, na noite chuvosa de sábado. Atrair o público para fora do lugar-comum é osso. Proibido retornar, em cartaz pelo Verão Arte Contemporânea, é bom teatro de contramão. Não por acaso, o roteiro é contado de frente para trás.

Proposta compartilhada de arrebatamento sensorial, Proibido retornar se apropria de estrutura dramatúrgica não-linear para levar à cena trajetória infeliz de capiau do interior de Minas em busca de oportunidade na capital. Espetaculariza a desumanização do homem bom, acossado, perdido, longe de suas raízes. Quatro paredes levadas ao chão, o grupo faz uso de ocupação em forma de arena para contar sua história por todos os lados. O quarteto de fôlego se desdobra em uma dezena de personagens para fazer valer o recado de significado avesso, que provoca os cinco sentidos. No esforço para levantar algo autoral de substância, o grupo realizador comete mais acertos que erros.

Considerando que todos os atores, distanciados, participam do discurso direto, entende-se descartável, por exemplo, a existência de um narrador exclusivo, de microfone na mão, para ajudar a costurar a trama. Em Proibido retornar, a boa atriz Rita Maia sobra nessa função. Melhor tê-la chefe de obra ou prostituta-contratante, em jogo de palavras e intenções, do que como apresentadora de programa bizarro. Camilo Lélis faz de tudo para esconder o comediante agigantado que traz em si e até funciona como protagonista – embora tenha dificuldades para não exagerar nos olhos esbugalhados. Quando entende que, para a verdade, o menos pode ser mais, dá conta de manter o espectador na palma da mão.

Rogério Araújo não é artista de excessos. Cumpre com competência suas atribuições e engrandece o patrimônio intelectual de sua companhia. É Kelly Crifer a senhora da cena em Proibido retornar. A atriz demonstra saber bem a diferença entre gesto e ação física – como ensinou o polonês Jerzy Grotowski. Subjuga pausas, respirações e transita com peculiar lisura entre subtextos. Assim como Camilo Lélis no fim do espetáculo, Kelly protagoniza cena das mais belas e difíceis em abnegação. Ao lado de companheiros caros, concretiza teatro de sentido quase obrigatório, que merece respeito. A trilha sonora de Ricardo Garcia também vale registro.

Proibido retornar
Em cartaz na sede do Grupo Teatro Invertido, Rua Célia de Souza, 571, Bairro Sagrada Família. Sábados e domingos, às 20h. Até 7 de fevereiro. Ingressos: R$ 12 (inteira) e R$ 6 (meia-entrada).

Estado de Minas - Jefferson da Fonseca Coutinho - 25/1/10

domingo, 24 de janeiro de 2010

Proibido retornar

Bastante substancial a peça do Grupo Teatro Invertido, em cartaz no Bairro Sagrada Família pelo Verão Arte Contemporânea. Amanhã, detalhes em Vida Bandida.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Filme triste

Miranda não imaginou produzir vídeo tão triste exibido para milhões de pessoas pela internet. Queria proteger-se de companheiro insano, simplesmente. Nestor não suportou o basta da bela mulher maquiladora. “Chega. Não dá mais. Acabou”. Foi assim, numa sentença curta, que Miranda tentou colocar fim aos cinco anos de aperto ao lado do desequilibrado mecânico. Jovem e bela, a destemida garota do Vale do Jequitinhonha só queria reconstruir a vida com o suor do próprio trabalho. Talentosíssima com lápis, esponjas e pincéis, montou salão em bairro da periferia e alugou casinha modesta até que as coisas se ajeitassem. Novo amor não tinha, já que estava cansada de lidar com a solidão a dois. Embrenhou-se, apenas, no salão para esquecer o aperto vivido ao lado do ex-marido. “Terapia de pobre é trabalho”, pensou numa madrugada de angústia.

Do outro lado da cidade, o Nestor, entre uma puta e uma dose de álcool, dizia entre os dentes: “Mato a desgraçada!”. Chegou a deslocar o maxilar de moça de aluguel durante sexo violento em motel barato. A oficina ele deixou nas mãos do sócio Ariosvaldo, evangélico do bem e bom conselheiro: “Sai dessa, Nestor. Você vai destruir a sua vida, meu irmão. Vamo comigo pra igreja”. Não adiantava. Longe de Deus, Nestor vivia de fazer ameaças à ex-mulher trabalhadora. “Eu sei! Você tem outro, vagabunda! Mato os dois, entendeu? Os dois!”, berrou ao telefone em mais uma madrugada de destempero. Miranda trocou telefone e endereço meia dúzia de vezes em menos de um ano. Só o salão, pelo pão de cada dia, era obrigada a manter no mesmo lugar. No interior, a família não entendia porque ela não deixava Belo Horizonte.

O pai, homem de bem, chegou a passar final de semana na casa de Miranda para tentar levá-la de volta: “Você não precisa disso, minha filha. A minha casa é a sua casa. Sua mãe está lá, esperando por você”, disse com o olho em águas na rodoviária, antes de partir. Miranda queria vencer na capital, com o suor de seu trabalho. “Sou forte, pai. Confie em mim”, respondeu-lhe depois de beijá-lo na testa. Naquela noite de domingo, voltou para casa e contou o dinheiro guardado sob o colchão. Soma suficiente para as câmeras de segurança que ela planejou para ter paz ao menos durante o trabalho, já que o Nestor, vez por outra também aparecia por lá para ameaçá-la.

Circuito interno de tevê instalado, mais ou menos feliz com o dia de agenda lotada, Miranda começou a trabalhar cedo na quarta-feira. Maquilava com o capricho de costume o rosto da cliente amiga, quando o Nestor invadiu a loja já com o revólver e o diabo no corpo. Miranda ainda tentou tranquilizar a freguesa e conversar com o Nestor. Ele, covarde como o pior dos assassinos, descarregou o tambor no peito da ex-mulher. Por três ângulos, as câmeras registraram tudo. Na mesma noite, o mundo inteiro pode ver a cena de horror e tristeza no salão de beleza.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 23/1/10

Esperando Beckett

Samuel Beckett (1906-1989) fez da metáfora ferramenta de corte lento e profundo em sua obra. A húngara Ágota Kristof parece ter se embriagado das letras do irlandês para escrever a cômica John & Joe, em cartaz no Espaço Trama. A peça dirigida por Eid Ribeiro é perfeitamente sustentada por jogo simples de comparações subentendidas. O alinhamento das significações não está apenas na tradução de Aryanne Perrottet e Joaquim Elias. Está, principalmente, no desenho e na condução dos atores no tablado. Não só o público iniciado está à espera de Godot na plateia. O espectador comum também se mantém, por uma hora, na absorção do que não pode ser visto.

Eid Ribeiro, conhecedor dos teatros do mundo (como um dos responsáveis pela seleção das montagens que participam do Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte, o FIT), já há algum tempo vem trazendo à cena mineira olhar bastante incomum. Para citar apenas três de seus trabalhos mais impressionantes, fizeram história Fim de jogo (1988), de Beckett, Álbum de família (1990), de Nelson Rodrigues – trabalho divisor de águas na carreira do Grupo Galpão –, e Circo Bizarro (1995), com textos do espanhol Fernando Arrabal. Em comum, além de notável habilidade para orientar seus agregados, mise-en-scène apurado e invejável vocação para as entrelinhas. Em John & Joe, com o Grupo Trama, Eid levanta mais um espetáculo primoroso em desenho, conteúdo e interpretação.

O roteiro é tão singelo quanto eficiente: dois amigos, um garçom e um bar. John e Joe estão para o bar assim como estão para o garçom. E o bar está para o garçom assim como para John e Joe. Justificam-se simplesmente. O dinheiro é moeda de significação para o absurdo e o ingênuo que há na dramaturgia de Ágota. Duas ou três trapaças tolas e está armada a boa carpintaria de motivos. No chão em pó, a transparência em cacos do passado que se repete. O bar-cenário é de riqueza simplória: um balcão central com garafas; duas mesas; quatro cadeiras; alguns degraus; um pequeno quadro e uma vitrola (com jazz da melhor qualidade). À direita, um banheiro que agrega valor e movimento à ação. A iluminação é eficiente às elipses exigidas pela narrativa, que costuram sem a menor barriga o tempo infinito do absurdo.

O trio em cena não é menos valioso que o comando criador. Chico Aníbal, convidado do grupo, até começa a peça com pinta de quem não vai dar conta de fazer-se verdadeiro com a voz de sua composição. Traz registro de desenho animado perigoso, comum aos velhos no teatro para crianças. Por fim, experiente, dá conta de sustentar bem o simpático Joe. Epaminondas Reis, no papel de John, demonstra conhecimento clownesco irretocável. Tem nas mãos o timing de cada uma de suas ações. Não joga fora pausas e escapa ileso do bêbado caricato de representação comum. Carlos Henrique, inteiro em John & Joe, não diz palavra. Silencioso, soube bem construir o papel de contraponto. Chega a propor escada absolutamente crível atrás do balcão. Expressivo, dá desenho de consciência corporal marcante ao garçom.

John & Joe, assim como A mulher que ri (Barracão Cultural) e Elisabeth está atrasada (Companhia Primeira Campainha), é rica contribuição do Verão Arte Contemporânea deste ano à programação cultural de Belo Horizonte. A montagem fica em cartaz só até amanhã, no Espaço Trama – Teatro Garagem. Lugar alternativo no Bairro Floresta, que também funciona como bar para antes e depois das apresentações.

John & Joe
Espaço Trama, Teatro Garagem (Rua Salinas, 642, Floresta, (31) 2515-1580). Hoje e amanhã, às 20h. Ingressos: R$ 12 (inteira) e R$ 6 (meia-entrada).

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

John & Joe

Vale correr ao Espaço Trama – Teatro Garagem (Rua Salinas, 642 – Floresta) sábado e domingo, às 20h, para relembrar lições do bom Beckett. Dirigidos por Eid Ribeiro, o trio Chico Anibal, Epaminondas Reis e Carlos Henrique faz muito bem o texto de Ágota Kristof. Amanhã tem resenha.

Hoje tem palhaçada

Distorcer-se em busca da boa graça não é fácil. No início era o princípio traz para a cena quatro bons clowns em espetáculo dos mais difíceis em cartaz na 36ª Campanha de Popularização do Teatro e da Dança de Minas Gerais. Não só pela força de transformação do elenco a empreitada merece créditos. Há bom contexto em roteiro de organização e crítica contundente no que poderia parecer apenas palhaçada. A origem do mundo é somente ponto de partida para a encenação das trapalhadas do homem desde sua criação. Da falta do que fazer, quando Adão vivia livre a se divertir com os animais, aos absurdos estarrecedores cometidos por pais que encarceram e abusam de seus filhos, entre tantas outras balbúrdias.

No início era o princípio é encontro de bons palhaços. O Deus composto por Silvana Stein prende e convence. A atriz, de expressiva presença, entende bem o excesso essencial à sua composição de poder. Bete Penido e Louisa Mari têm boa química. Complementam-se. Especialmente no jogo das galinhas, embora a cena se esgote pela extensão de algumas gags (breve efeito cômico). Bete tem um clown forte, do tipo dominador, que gosta de se dar bem. Seu discurso contra as coisas do Criador é ponto alto na montagem. Dá boa dose de humor à antipatia que constrói. Louisa, palhaça Taturana, é de ingenuidade cativante. Tem timing preciso e consciência corporal de bailarina. Seu clown é romântico e sedutor nas mais variadas situações da aventura.

Matheus Ramos vale um parágrafo. O palhaço Agrião, Adão em No início era o princípio, é hilariante. Não precisa dizer nada para ser o dono da cena. Aliás, de tão bom com o desdobramento físico das emoções, chega a perder a força quando diz alguma coisa. Como todo bom clown, Matheus sabe tirar proveito de suas características físicas e tem no olhar a sinceridade que arrebata o espectador. Não tem medo do ridículo e se apresenta inteiro nas situações mais frívolas propostas pela dramaturgia ou pelas companheiras de criação.

Os quatro bons intérpretes jogam bem sob o comando de Mariana Muniz. O senão grave da direção é o trato de palco italiano para o que é semi-arena. As plateias laterais da Sala Sesi Holcim ficam prejudicadas com a maior parte do desenho da cena voltado para a frente. Fora isso, No início era o princípio funciona muito bem em espaço fechado. Particularmente pelo prólogo na escuridão que antecede ao surgimento do mundo, quando planetas e estrelas coloridas são lançadas no universo. O efeito provocado pela cenografia enriquece a abertura.

Com figurino correto, apropriado ao argumento de Bete Penido, trilha sonora divertida com a reedição de hits dos anos 1980 – Eva, da Banda Rádio Táxi, por exemplo, é impagável na cena de Agrião –, No início era o princípio é trabalho diferenciado de quase tudo o que se vê em cartaz na cidade. Segunda montagem do grupo Hoje Tem Marmelada – o primeiro foi Tchupí-Tchupí, feito para as ruas –, a peça tem tudo para ter vida longa também em praças de outras paisagens.


NO INÍCIO ERA O PRINCÍPIO
Com o grupo Hoje Tem Marmelada. Direção de Mariana Muniz. No elenco: Bete Penido, Louisa Maria, Silvana Stein e Matheus Ramos. Teatro Sesi Holcim, Rua Padre Marinho, 60, Santa Efigênia, (31) 3241-7181. De quinta a sábado, às 19h; domingo, às 18h. Ingressos: R$ 30 (inteira), R$ 15 (meia-entrada) e R$ 10 (Postos do Sinparc).

Estado de Minas - Jefferson da Fonseca Coutinho - 22/1/10

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

No início era o princípio

Mariana Muniz, Bete Penido, Louisa Mari, Matheus Ramos e Sivana Stein realizam bom trabalho de clowns na peça em cartaz no Teatro Sesi Holcim. Amanhã, resenha em Vida Bandida.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O Haiti é aqui. Em nós.

"Sabemos que mesmo essa mobilização que tem se levantado em todos os continentes não é suficiente para dar conta do caos social que assombra o povo haitiano."

São 380 mil órfãos – soube pelo noticiário. Milhares de mortos enterrados em valas comuns, recolhidos por tratores. Fome, miséria e destruição. Cenas de barbaridade se multiplicam na internet, nos jornais e nas tevês. Não há texto que eu, escritor amador, consiga juntar para exprimir parte ínfima do sofrimento dos que foram abatidos pelo violento terremoto em Porto Príncipe, capital do Haiti. Impossível ficar indiferente a mais essa tragédia que, ao menos temporariamente, desloca o olhar do mundo. Sabemos que mesmo essa mobilização que tem se levantado em todos os continentes não é suficiente para dar conta do caos social que assombra o povo haitiano.

Falamos aqui outro dia, por ocasião dos deslizamentos no Rio de Janeiro nas primeiras horas de 2010, em “desígnios de Deus”. Choveram e-mails. Alguns dizendo que é isso mesmo: o homem é por demais imperfeito e pecador e merece o peso das catástrofes. Outros, mais amenos, falaram em fatalidade apenas. Que, certamente, há algo do lado de lá bem maior do que o que conhecemos por estas bandas. Houve até quem dissesse em karma coletivo (algo a ver com causa e efeito): “pode ser o preço pago pelos nazistas ou por outros povos da pior espécie ao longo de toda a civilização”, enviou por e-mail o leitor do Vale do Aço. Quem vai saber? Qual é a religião que tem a resposta para as questões dessa natureza? Difícil saber. Além do mais, o Deus que há em nós está muito ocupado com outras questões, imagino.

O sol acaba de nascer. Daqui, de frente para o mar, o horizonte parece ainda mais infinito. São muitas as ideias a roubar-me os pensamentos. Cinquenta linhas para a coluna, reunidas em papel pautado. A caneta azul segue confusa na busca de síntese. É tanto que gostaria de escrever. Sinto-me embargado com essa história do ser humano que vive em condições inimagináveis. Capaz de matar por instinto de sobrevivência. Li coisas absurdas sobre a desordem. Ontem, depois que Violeta e os garotos foram dormir, passei horas pesquisando o assunto. Nos e-mails antigos, guardados por carinho, reencontrei o velho amigo sargento do exército brasileiro Rod Esteiger Silvestre. Em 2008, escreveu-me:

“Meu camarada Botelho.

Ao ler sua coluna esta semana (eu já a acompanho há bastante tempo, parabéns!), em que você fala da sua coluna nos EUA, me deu vontade de informar que aqui no Caribe ela também é lida. Sou sargento de artilharia do Exército, e estou servindo aqui no Haiti, no Batalhão Brasileiro da Força de Paz da ONU, em Porto Príncipe, a capital do país. No batalhão, de um total de 1.200 militares, calculo que tenha uns 80 mineiros, mais ou menos. Muita saudade da esposa, da família, de casa, dos amigos.
Saudade que é um pouco ludibriada ao ler diariamente o uai.com.br.
Especialmente as colunas do Aqui, na qual destaco a sua, amigão.

Forte abraço a você e a todos os familiares e amigos de Contagem e de Sete Lagoas.
Rod Steiger Silvestre - Haiti, setembro de 2008”

Procurei contato com o sargento para saber notícias. Ele está bem, em território brasileiro. Muito abalado com a morte dos companheiros soldados, escreveu:

“Imagino a angústia que os companheiros peacekeepers estão sentindo. Deve ser a mesma minha, já que passamos por lá e demos nossa contribuição. E pensar que poderia ter acontecido há um ano atrás, poderia ter sido um de nós (…) Rezemos todos pelos amigos que estão lá agora, pelos que se foram e pelas famílias”.

O Haiti é aqui, amigo leitor. Em mim, em você… em nós.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 20/1/10

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Valeu!

Dez mil acessos. Obrigado, amigo leitor!

Elisabeth não tem cabelo

O que difere invencionice de criatividade é o significado que se dá à ação (ou às coisas), isoladamente ou em conjunto. Meio teatro do absurdo, outro tanto coreográfico, físico, naturalista e fantástico, Elisabeth está atrasada, da Companhia Primeira Campainha, é resultado que se ergue da boa investigação. Em jogo psicológico singular, quatro excelentes atrizes defendem com admirável entrega questões muito particulares do universo feminino. Espécie de Role playing game (RPG), a peça tem como ambiente de partida um clube de leitura e revelações. Um narrador-mestre, distanciado em função exclusiva, comenta a ação dramática, ajudando na condução da trama. No palco, as jogadoras – todas as quatro – demonstram habilidades impressionantes na realização da divertida e melodramática aventura.

Patrícia Diniz, Rita, exuberante, tem carisma incomum. Convence fácil. Multiplica-se na cena sem ridicularizar a personagem, com firmeza de intenções. Marina Viana, a esposa ciumenta e vingativa, com seus rolinhos na cabeça, é a dona da verve. Mulher que dorme na geladeira, a atriz constrói personagem perigosa sem cair na caricatura. De consciência corporal evidente, Marina Viana não força a barra para fazer graça. Tem timing natural que faz valer voz e silêncio. Mariana Blanco (foto) – vale guardar o nome – é um espetáculo à parte em Elisabeth está atrasada. Não é comum ver intérprete tão jovem já tão eficiente no trato das intenções. Comedida e generosa, apresenta composição crível do início ao fim do trabalho. Impossível não entender compartilhada a verdade de Mariana Blanco.

Marina Arthuzzi, diretora estreante no Verão Arte Contemporânea, entra pela porta da frente no festival. Além de atriz competente – embora por vezes fale baixo demais –, dirige grande promessa da cena mineira. Seu espetáculo de concepção coletiva é grata surpresa. Não foi boa divulgação ou por boas relações, simplesmente, a sessão extra de domingo no Espaço Ambiente. Naturalmente, já efeito de boca a boca por espetáculo tão original.

São muitos os fatores que fazem de Elisabeth está atrasada montagem de futuro: belo figurino (nas cores de Almodóvar); luz coerente; cenário limpo, essencial; trilha de bom gosto que alinhava conceitualmente a proposta; texto de poesia apurada em roteiro ágil, quase sydfieldiano, com direito a ponto de virada final – que não vale contar aqui para não estragar a surpresa. Claro, há também no espetáculo um funcional duo masculino. No entanto, na obra de Marina Arthuzzi e seu pequeno exército feminino, os homens... bem, os homens são acessórios. Eugène Ionesco aplaudiria essa Elisabeth sem cabelo.

Estado de Minas - Jefferson da Fonseca Coutinho - 19/1/10

Foto de Mariana Blanco: Thomás Arthuzzi

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Elisabeth está atrasada

Absurdamente boa a peça de Marina Arthuzzi, Marina Viana, Mariana Blanco, Patrícia Diniz e Angie Mendonça. Leia amanhã, em Vida Bandida.

Hoje tem espetáculo - segunda semana

Mais Os sem vergonhas, hoje, amanhã e depois, às 21h, no Teatro Dom Silvério. Quem ainda não viu, não pode perder.

Singelo e requintado


Já é lugar-comum o reconhecimento público do trabalho de Yara de Novaes. Não é para menos. A mulher que ri, que passou por Belo Horizonte no fim de semana, é mais uma prova do apuro da atriz e diretora no plano da criação. O conto do húngaro Móricz Zsigmund (1879-1942), livremente adaptado por Paulo Santoro, levado ao palco do Teatro do Oi Futuro Klauss Vianna pelo Verão Arte Contemporânea (VAC), se faz ainda mais belo sob o olhar de extrema sensibilidade da artista. A história de um homem e a reconstrução de seu passado, ao lado do pai e da mãe, foi argumento suficiente para o levantamento de espetáculo encantador. Emocionante, A mulher que ri é dos bons exemplos de que, também no teatro contemporâneo, quando se sabe o que dizer não é preciso recorrer às invencionices.

A peça enxutíssima, com menos de uma hora de duração, é combinação feliz de texto, elenco e encenação. Em A mulher que ri, a roupagem que dá suporte ao ator é a extensão da verdade que nele contém. Mesmo que as quinas frontais do quadrado cenográfico da memória prejudiquem um pouco a visão da plateia lateral, a caixa cênica de André Cortez – que também assina figurino de muito capricho e bom gosto – é multifuncional na trama. Faz-se também espaço de projeção surpreendente, valorizado pela luz correta de Fábio Retti, que, em acordo com a trilha de Dr Morris, confere clima cinematográfico à montagem produzida pelo Barracão Cultural de São Paulo.

Se por um lado a encenação promove diálogo competente entre si, por outro, não menos eficiente, o elenco realiza encontros admiráveis no jogo das lembranças. Em A mulher que ri está no trabalho dos atores o poder compositor que sucumbe. Plínio Soares, o pai linha dura, acrescido ao roteiro pelo dramaturgo Paulo Santoro, é intérprete de força bruta. Experiente, tem domínio absoluto de seus papéis. Fernando Alves Pinto, de notável capacidade sincera, no papel condutor do drama, sabe bem o que é estado sensorial. Evoca sentimentos na explosão da força física que não mente. É capaz de vivenciar, abrir ou cortar emoções na velocidade da luz, sem abafar o tempo natural e o silêncio das transições. Sabe tratar muito bem o jeito de dar som às palavras.

Eloisa Elena, idealizadora do projeto e a mulher que ri em questão, brinda o teatro nacional com atuação inesquecível. Mineira, formada pelo Teatro Universitário (TU) da UFMG no fim dos anos 1980, a atriz assume com maestria o contraponto de tudo o que é lúgubre e dramático da história de Móricz. No papel-título, representa a boa mãe que não se deixa abater pelas escabrosidades dos tempos difíceis do pós-guerra. Eloisa e Fernando, cúmplices, levantam jogo lúdico em dois momentos dos mais emocionantes do trabalho: na caça às moedas para a compra do pão e na fala sobre Deus e as joaninhas. Também dirigida em cena pelo narrador confuso, domina o tablado na reconstituição de discussão com o marido sobre o futuro do filho.

Ao cair das luzes, o terceiro sinal, pontuado pelo som de três moedas, já anunciava ao que vinha A mulher que ri. Longe do arroubo daqueles que pretendem reinventar a roda, Yara de Novaes, Eloísa Elena e companhia pertencem ao seleto grupo dos que sabem esmerar a simplicidade sem desperdiçar requinte. Com o levantamento de espetáculo tão virtuoso, exemplar por verdade e natureza, as duas artistas deixam bom modelo aos que pretendem a arte essencialmente. A plateia, embevecida, agradece.

Estado de Minas - Jefferson da Fonseca Coutinho - 18/1/10

Foto: João Caldas/Divulgação

sábado, 16 de janeiro de 2010

Chovia...



O romance já está quase pronto. Depois é a velha novela em busca de editora. O clipe é só para matar a saudade do que foi a montagem de grupo mais amigo.


"Chovia, mas os ladrões não usavam guarda-chuvas".
Espetáculo inspirado no Teatro do Absurdo sobre o mercado de trabalho brasileiro.
Texto e direção: Jefferson da Fonseca Coutinho.

No elenco: Ana Cândida Cardoso, André Prata, Arthur Pires, Bia Morais, Bruno Peixoto, Carol Chaves, Dan Costa, Ferdinando Ribeiro, Fernando Borges, Jenniffer Lamounier, Juliana Jardim, Jefferson da Fonseca, Lilian Campomizzi, Lucas Costa, Paula Sá, Wander Possas, Roberta Santos, Saulo Senra e Maestro Manoel.

Belo Horizonte Minas Gerais Brasil 2005

A mulher que ri

Hoje, às 21h, e amanhã, às 19h, no Teatro Oi Futuro Klauss Vianna, tem programa obrigatório para quem gosta de teatro sem invencionices. A mulher que ri, com dramaturgia de Paulo Santoro e direção de Yara de Novaes, é de beleza sem fim. Segunda-feira tem resenha em Vida Bandida.

Teatro de boteco

Realizar é correr riscos. Bem os conhecem todos os que buscam a diferença. Prato do dia, em cartaz pelo Verão Arte Contemporânea (Vac), é de uma infelicidade enorme, considerando tudo de melhor que o alimenta. A peça, montagem do 12º Oficinão Galpão Cine Horto, é a dura atestação de que, na arte, resultado pode não ter nada a ver com processo ou soma de recursos. Parece inacreditável que sete meses intensos de trabalho – documentados em caderno de luxo – resultem em roteiro tão ruim.

Não é necessário esquadrinhar o material entregue ao espectador ao fim da sessão para saber que Prato do dia se trata de projeto cuidadoso de pesquisa e levantamento; que todos – elenco e equipe técnica – têm muito a dizer; que é investigativo e visceral. No entanto, Lenine Martins (direção) e Letícia Andrade (dramaturgia) se exibem por demais desacertados no alinhamento das ideias. Contam mal dramas retalhados, superestimando o sentido e a construção do sentido.

Na noite de estreia da peça no VAC 2010, quinta-feira, pagantes e convidados até que compraram a ideia do teatro de boteco: beberam, comeram, fumaram e jogaram conversa fora. No salão do Galpão Cine Horto, transformado em bar-refeitório, parte do elenco se juntou à plateia, que, pouco a pouco, foi ficando bem à vontade para assistir ao desfile de pratos feitos (vivos) misturados a latinhas de refrigerantes, cervejas e garrafas de água mineral. No cardápio das relevâncias do dia, sexo, solidão, vaidade, pedofilia, religião e consumismo. Das mesas, o público pôde ver as boas atuações de Mariana Jacques, Juliana Capibaribe, Fabiana Martins, Patrícia Lanari e Renata Emrich. Cinco nomes de destaque entre os 14 fazedores-criadores agrupados. Mariana Jacques, inclusive, é responsável por ponto alto, de naturalidade vertiginosa, ao se desmascarar e deixar a cena em ato de revolta.

Não é difícil perceber a grandeza desfragmentada de Prato do dia: bom trabalho de máscaras; figurino e objetos de cena bem cuidados; luz que valoriza o desenho e a boa ocupação do espaço; atores que dominam voz, corpo e suas verdades construídas, notadamente entregues ao apuro e à aventura experimental compartilhada. Também o mote: “Fome de quê?”. Tema de pano para manga, dissolvido pela má edição das ideias trazidas à luz. Como tantos acertos podem se fazer tão desacertados em conjunto? Furor criativo. Prato do dia é boa lição aos puristas de plantão: excessos desastrosos não estão apenas nas comédias rasas, duramente criticadas. A distância entre o bom e o mau teatro pode ser bem menor do que se imagina.

Estado de Minas - Jefferson da Fonseca Coutinho - 16/1/10

O doutor delicado

Norminha desconfiava, mas nunca tocou no assunto. Feliz da vida, namorou, noivou e se casou com o residente Dragoberto, contrariando a vontade do pai machão e preconceituoso. O Roberval até levou a filha ao altar, mas no caminho, dentro do carrão antigo, não perdeu a oportunidade e espinafrou o noivo na cabeça da filha: “Ainda dá tempo de pular fora dessa roubada. Esse sujeito é viado! É boiola, tenho certeza. Só pode ser. Homem que é homem não tem as delicadezas e frescuras do seu noivo, eu sei”. O motorista, desconhecido, não acreditava na cena. Achou um absurdo a falação do pai na cabeça da noiva a poucos minutos do casamento.

Calmíssima, Norminha parecia nem se importar com a opinião do pai falastrão. Conhecia-o bem. Apenas ajeitava o buquê de flores do campo, sugeridas pelo noivo, que ela mesma preparou para a ocasião. O Roberval falou pelos cotovelos até chegar ao grande portão da igreja. Desceu do carro, armou o sorriso mais amarelo de que já se teve notícia, ajeitou a gravata e encarou o tapetão vermelho de braço dado com a filha única. O advogado ainda encontrou tempo para fazer comentário maldoso entre os dentes: “Nunca vi tanta bicha reunida. Tudo convidado do seu noivo.” Já cara a cara com o Dragoberto, antes de deixar a filha, alfinetou: “Eu avisei.” Sorridente, a moça de branco beijou a testa do pai e deu seguimento ao enlace dos mais alegres da paróquia.

A lua de mel, presente dos pais do noivo, fazendeiros riquíssimos no interior de São Paulo, foi um sonho: 29 dias na Europa, com direito a uma semana em Paris e final de semana em castelo na Escócia. Dragoberto, médico recém-formado, viajado e de bom gosto, sabia bem o melhor roteiro para agradar a mulher. Profundo conhecedor de línguas, museus, casas de espetáculos e gastronomia, o jovem doutor deu à sua senhora temporada inesquecível para toda a vida. Tão boa a farra, já voltaram grávidos. Até fizeram nova reforma no casarão do Bairro das Mangabeiras só para receber a Laurinha. E a vida seguiu com felicidade rara para o casal de médicos.

Dragoberto estava de plantão em unidade móvel de resgate quando foi chamado para atender urgência em motel no Centro da cidade. Na suíte de luxo, o sogro sessentão, vítima de acidente vascular cerebral. Para a sua surpresa, o pai machão da Norminha estava fazendo programa com garoto de aluguel. O michê, em pânico, falou com carinho do cliente antigo. Foi ele quem chamou o resgate e fez questão de acompanhar os primeiros-socorros. Levado às pressas para hospital de luxo, Roberval sobreviveu. Com muitas sequelas, infelizmente. Norminha ficou muito triste com o mal súbito que mudou a vida do pai e, por discrição do marido, não soube de toda a história.

O velho Roberval, mudo, inválido em cadeira de rodas, muito bem cuidado pela boa mãe da Norminha, ainda parece manter acesa a chama da vergonha sempre que passeia o olhar em direção ao genro, doutor de delicadezas.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 16/1/10

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Prato do dia

Decepcionante o espetáculo em cartaz no Galpão Cine Horto. Amanhã, resenha em Vida Bandida.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Janeiro promete

"Os sem vergonhas" com casa cheia logo na primeira semana (quatro apresentações em três dias); o desdobramento das oportunidades e o reencontro com grandes amigos fazem o ano ficar ainda mais promissor. Valei-me São Jorge!


"Chagas abertas, Sagrado Coração todo amor e bondade, o sangue do meu Senhor Jesus Cristo, no corpo meu se derrame hoje e sempre.

Eu andarei vestido e armado, com as armas de São Jorge. Para que meus inimigos tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me exerguem e nem pensamentos eles possam ter para me fazerem mal.

Armas de fogo o meu corpo não o alcançarão, facas e lanças se quebrarão sem ao meu corpo chegar, cordas e correntes se arrebentarão sem o meu corpo amarrarem.

Jesus Cristo me proteja e me defenda com o poder de sua Santa e Divina Graça, a Virgem Maria de Nazaré, me cubra com o seu Sagrado e divino manto, me protegendo em todas minhas dores e aflições, e Deus com a sua Divina Misericórdia e grande poder, seja meu defensor, contra as maldades de perseguições dos meus inimigos, e o glorioso São Jorge, em nome de Deus, em nome de Maria de Nazaré, e em nome da falange do Divino Espírito Santo, me estenda o seu escudo e as suas poderosas anulas, defendendo-me com a sua força e com a sua grandeza, do poder dos meus inimigos carnaise espirituais e de todas sua más influências, e que debaixo das patas de seu fiel ginete, meus inimigos fiquem humildes e submissos a vós, sem se atreverem a ter um olhar sequer que me possa prejudicar.

Assim seja com o poder de Deus e de Jesus e da falange do Divino Espírito Santo.
Amém".

(Oração de São Jorge/Tela de Ronaldo Mendes)

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Zoológico de vidro

Do lado de cá, bem próximo ao mar, a vida segue numa boa, recarregada pela energia das marés e bem longe de tudo o que emburrece. É infinito o poder da natureza, amigo leitor. Poderosa também é a companhia da família: nada melhor que o carinho dos filhos, do pai e da mulher amada pra gente saber identificar o que realmente vale a pena. De resto, vaidade. Nada mais que vaidade. A gente demora a perceber o que realmente importa. Mas quando a gente descobre, viver faz todo o sentido.

O Gilmar, amigo de praça e vizinho em Santa Efigênia, desde que o Alcides parou de beber e começou a dar a volta por cima, sabe bem do que estou dizendo. Mandou-me e-mail carregado de alegria pela nova fase do pai aposentado: “Pode publicar na sua coluna, Josiel. Acho que vai ser até bom para as pessoas saberem que a bebida é a pior droga que existe e que a gente não tem que entrar na cachaça só porque tá passando por dificuldade. Tem um mês que o pai não bebe e, agora, ele tá aprendendo uma nova profissão com o Geraldo. Disse que vai ser jardineiro lá em Nova Lima e já até arrumou serviço. Está ajudando o Geraldo num monte de casa”, escreveu.

O e-mail veio caprichado. Mandou um monte de belas fotografias também, tiradas durante os fogos na Pampulha. Eita! Agora que o Gilmar descobriu a internet, não sai mais do computador. Está certo, Gilmar! Não disse que a Web era legal!? Fiquei muito contente com tudo o que você escreveu, amigo. Especialmente, você sabe, pelo nosso jardineiro. Dê um grande abraço nele por mim, ok!? Um recado também: no fim do mês, quando estiver de volta a BH, vou fazer uma visita e levo o Peroá que ele tanto gosta. Ah, no e-mail, só não gostei da sua provocação com o Big Brother. Você sabe que eu fico todo empolado só de ouvir falar nesse programeco. “E aí, Josiel!? Já está ligadão no BBB? jaujajauaj”. Francamente. E esse “jaujajauaj”? Isso é riso de adolescente. Adulto ri é assim: “rs” e ponto. Tá virando moleque de novo, mané? rs.

Gente boa o Gilmar. Enche-me o saco com o tal BBB só porque sabe que não gosto. E vamos combinar: na minha opinião, o BBB é o maior desserviço da história da televisão brasileira. Já escrevi isso aqui. Um bando de gente à toa se exibindo para um monte de gente que não tem nada melhor para fazer. Um absurdo. Quem inventou essa bobagem criou o zoológico de vidro. É como se homens e mulheres fossem animais, expostos 24 horas por dia. Li num respeitável site de notícias que, dessa vez, vai ter gay homem e gay mulher. Francamente! É tudo uma armação para atrair audiência e encher os cofres da emissora. E o pior é que, entra ano, sai ano, o povo ainda perde tempo e dinheiro votando nessa bobagem.

E o Pedro Bial? O sujeito já foi jornalista respeitado, cheio de moral. É muito triste vê-lo enterrar a carreira assim, fazendo cara de inteligente, tentando justificar o injustificável. Perdoa-me, amigo leitor, mas, diante do mar, no seio da família, sou bem mais as coisas que realmente fazem sentido.

Josiel Botelho - Bandeira Dois - 13 de janeiro de 2010

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Hoje tem espetáculo

A partir de hoje, no Teatro Dom Silvério, segundas, terças e quartas, às 21h, tem Os Sem vergonhas. Em cartaz desde 2005, a peça dirigida por Guilherme Leme conta a história de seis desempregados que decidem transformar uma oficina mecânica em clube de mulheres. Imperdível!

Diversidade em cena

Verão Arte Contemporânea comprova a vocação de Belo Horizonte para a pluralidade estética, apostando na convergência de linguagens. Programação vai até fevereiro, com preços populares

A casa lotada no Teatro Oi Futuro Klauss Vianna, no sábado à noite, para a abertura da quarta edição do Verão Arte Contemporânea (VAC), confirmou a vocação de Belo Horizonte para a pluralidade. Pensadores e realizadores das mais diferentes áreas e inclinações prestigiaram o festival promovido pelo Grupo Oficcina Multimédia em parceria com o Mercado Moderno. Originalmente inquieto e agregador, o VAC traz novidades: literatura e gastronomia integram a programação.

De carona na intensa movimentação promovida pela Campanha de Popularização do Teatro e da Dança há mais de 30 anos, o Verão Arte Contemporânea vem ganhando força como alternativa para o público que não se contenta apenas com o que o sindicato dos produtores pode ofertar. Um achado de seus idealizadores, que, assim, ampliam a diversidade da criação local, oferecendo mais arte e mais substância com critérios bem diferentes dos adotados pela popular campanha. O sucesso de ambos os eventos mostra que, especialmente generosa nessa época do ano, Belo Horizonte tem espaço para todo mundo.

A montagem de abertura, Sonhos de uma noite de verão, do Grupo Oficcina Multimédia, que buscou em Shakespeare somente nome e inspiração, reuniu artes visuais, música, teatro e moda em espetáculo único de poder criador coletivo. Na proposta, o discurso-pretexto está apenas no que pode despertar o sensorial do espectador. A palavra, subterfúrgio comum, não encontra espaço na estética convergente de Ione de Medeiros, Paulo Beto, Adriana Peliano e Lucia Santiago.

Compartilhadamente, o grupo levantou trabalho de privilégios múltiplos com esse Sonhos de uma noite de verão: somou-se, logo no hall de entrada, a seus modelos adormecidos e à caixa cênica de transparências. Sob flores de papel – nascidas de árvores mortas –, a manequim vestida de noiva sonhava. As realizações se juntaram às imagens projetadas na parede e ao som ambiente ajustado à proposta de videoinstalação.

Por recomeço, em cortejo, o público – já parte do espetáculo – seguiu para assistir ao show da orquestra reunida para a ocasião. No palco, mascarados vestidos de preto, coreografados, pontuaram a cena com ironia. Arrebatador pelo conjunto. Foi assim o primeiro dia do VAC 2010.

No programa impresso e na internet, entretanto, questão de justiça: faltaram os nomes dos atores que fazem o chão de fábrica do Officina Multimédia. Apesar da grande rotatividade na companhia, não dá para deixar de valorizar operários de dedicação tão fora do comum.

No mais, é certo que o VAC veio para fazer diferença. Promissor, tem tudo para se firmar no calendário dos grandes eventos da capital mineira. Entre as boas opções, pelo trabalho já conhecido dos artistas envolvidos, vale conferir: Nove novos destinos; Luna Clara e Apolo Onze; DJ Luiz PF; Prato do dia; A mulher que ri; Duelo de MCs; Cia. Fusion de Danças Urbanas; John & Joe; Melda; Geraldas e avencas; Juliana Perdigão, Kristoff Silva e Rafael Macedo; Cheiro de chuva; Quase em silêncio; 1961-2010; De cujos; Q’eu isse; Cara preta; A casa; Sexo – ensaio aberto; Verão poesia; De peixes e pássaros; Faladores; Música argentina: tributos.



VERÃO ARTE CONTEMPORÂNEA

Amanhã

Artes visuais – Exposição Savoir forme, de Stéphane Vigny. Museu Inimá de Paula, Rua da Bahia, 1.201, Centro, (31) 3213-4320. Terça-feira, das 12h às 19h; quarta a sábado, das 10h às 19h; domingo, das 12h às 19h. R$ 5 (inteira) e R$ 2,50 (meia). Até 13 de março.


Quarta-feira

Música – Dokttor Bhu e Shabé Julgamento. Teatro Marília, às 20h. Avenida Alfredo Balena, 586, Centro, (31) 3277-6319.


Quinta-feira

Música – Grupo de Percussão do Cefar (Luna Clara e Apolo Onze): Fundação de Educação Artística, 20h. Rua Gonçalves Dias, 320, Funcionários, (31) 3226-6686. DJ Luiz PF, Grupo Porco de Grindcore Interpretativo: A Obra Bar Dançante, 22h. Rua Rio Grande do Norte, 1.168, Savassi, (31) 3215-8077.

Artes visuais – Exposição Savoir forme: Museu Inimá de Paula. Exposição Nove novos destinos: Instituto Inhotim, em Brumadinho, acesso pelo km 500 da BR-381. Quinta e sexta, das 9h30 às 16h30. Sábado, domingo e feriado, das 9h30 às 17h30. Informações e visitas agendadas: (31) 3227-0001, de segunda a sexta, das 9h às 18h, ou www.inhotim.org.br.

Teatro – Prato do dia:
Galpão Cine Horto, 21h.
Rua Pitangui, 3.613, Horto, (31) 3481-5580.

Ingressos custam R$ 12 (inteira) e R$ 6 (meia-entrada).
A programação completa está no site www.veraoarte.com.br.


Estado de Minas - Jefferson da Fonseca Coutinho - 11/1/10

domingo, 10 de janeiro de 2010

A arte na guerra


Filme de Kathryn Bigelow, lançado em DVD antes de chegar ao cinema, conquista público e crítica. Drama de revirar o estômago, que aborda o conflito no Golfo, estreia em fevereiro

Quem não quiser esperar para ver nas salas de cinema pode procurar pelo DVD. Guerra ao terror, de Kathryn Bigelow, obra incomum sobre o conflito no Golfo, que está dando o que falar entre os fãs da sétima arte e só chega às grandes telas do país em 5 de fevereiro. O filme, originalmente chamado The hurt locker, foi lançado em vídeo no Brasil e, em 2009, acabou passando batido nas prateleiras das melhores locadoras. Uma pena ter sido visto por tão poucos.

O que poderia ser apenas mais um longa-metragem de guerra sob a ótica estadunidense, como batelada de tantos já conhecidos, é trabalho para crítico nenhum colocar defeito. A história do roteirista Mark Boal, autor de No vale das sombras (2007), levada aos sets no Kuwait e na Jordânia, retrata com especial delicadeza a rotina de um pequeno grupo antibomba, a poucos dias de encerrar jornada e voltar para casa. Em terras e tempos de caos e morte, Guerra ao terror fala, antes de tudo, em salvar vidas.

Num ambiente hostil e desesperador, de pouca ou nenhuma esperança, os conflitos de jovens soldados americanos se misturam aos dramas de iraquianos comuns e insurgentes. O resultado é thriller demasiado humano, sem vilões ou mocinhos, à margem de interesses políticos questionáveis. Kathryn, Mark e companhia não levantam nenhuma bandeira. Apenas trazem à cena gente – invasor e invadido – que faz conta (ou não) de cada instante de sobrevida.

O sucesso que Guerra ao terror vem alcançando junto à crítica não surpreende. Não bastassem roteiro e direção acertados, o elenco é extraordinário. Isso sem contar com os rostos de fama vendidos no material promocional da fita. Ralph Fiennes, de O jardineiro fiel (2005), e David Morse, de Passageiros (2008), são coadjuvantes de luxo na trama. Quem manda na cena são dois protagonistas desconhecidos do grande público: Jeremy Renner e Anthony Mackie. Jeremy, inclusive, já levou o prêmio da crítica americana pelo filme.


O ano Bigelow

Este é o ano da cineasta Kathryn Bigelow. Com mais de 30 anos de carreira – começou com o curta The set-up (1978) –, a ex-mulher de James Cameron faz história com Guerra ao terror. Depois das indicações ao Globo de Ouro (filme, direção e roteiro) e de arrebatar, nos Estados Unidos, a Sociedade Nacional de Críticos de filmes (National Society of Film Critics), na semana passada, com três prêmios para seu longa (melhor filme, direção e ator), Kathryn deixa o patamar dos realizadores comuns.

Com reconhecida inclinação para a ação e o suspense, a diretora de Jogo perverso (1989), Caçadores de emoção (1991) e Estranhos prazeres (1995) consegue fazer de Guerra ao terror drama de revirar o estômago. Com roteiro, atuações e acabamento impressionantes, não vai ser nenhuma surpresa se no dia 17, quando serão anunciados os vencedores do Globo de Ouro, Guerra ao terror voltar às manchetes dos jornais e revistas especializados de várias partes do mundo.

Desde que começaram as indicações e premiações dos melhores de 2009, Kathryn vem deixando espaço abaixo nomes como James Cameron (Avatar), Clint Eastwood (Invictus), Jason Reitman (Amor sem escalas) e Quentin Tarantino (Bastardos inglórios). Ainda é cedo, mas já dá até para apostar no nome da bela californiana, de 58 anos, presença certa na lista das indicações ao Oscar deste ano.

Kathryn Bigelow
Principais trabalhos

Guerra ao terror (2008)
K-19: The widowmaker (2002)
O peso da água (2000)
Estranhos prazeres (1995)
Caçadores de emoção (1991)
Jogo perverso (1989)
Quando chega a escuridão (1987)
The loveless (1982)


Estado de Minas - Jefferson da Fonseca Coutinho - 10/1/10

sábado, 9 de janeiro de 2010

Dia sim, dia não

Com tanta infelicidade na família, Isolina não pensava em casamento. “Eu? Tô fora!”, vivia dizendo para as amigas do trabalho. A maioria das moças, funcionárias da grande loja de departamento na região central de Belo Horizonte, não entendiam a ojeriza da colega. Fatinha, amigada pela terceira vez, aos 28 anos, no provador, provocava: “Vai ficar para titia e depois ninguém vai querer. Não viu a Norminha!? Escolheu, escolheu, agora taí, batendo ponto toda noite da Maria Cebola, no Nova Camponesa”.

Isolina não deixava render. Levava na brincadeira, feliz com a vida de solteirona. Na véspera de completar 38 anos – muito bem vividos, diga-se de passagem –, resolveu sair para festejar. “Assim, de última hora, é?”, espantou Margarida, baiana fogosa, chegada numa farra. Mesmo pega de surpresa, a gordinha festeira fez questão de assumir a parada: “Deixa comigo, que eu aviso o pessoal da loja. Amanhã tem um forró arretado lá perto da minha casa e é lá mesmo que a gente vai comemorar”.

Depois de muito vai-não-vai, Isolina acabou deixando que a companheira do caixa ficasse à frente do evento. Comprou roupa nova para a ocasião e voltou para casa mais alegre do que de costume. Não só porque era a primeira vez que comemoraria um aniversário com a turma do trabalho, mas, especialmente, porque sentia algo diferente no ar. Havia um calor na gaforinha que ela desconhecia. Talvez por pressentimento: lá, no Forró do Mangabinha, Isolina conheceria o Bilac.

Foi amor fulminante. Assim que cruzaram as canelas e acochambraram as virilhas, não teve parabéns pra você que afastasse os dois. Vendo Isolina e Bilac num só compasso à noite inteirinha, Fatinha comentou com Margarida: “Agora a sujeita desencalha”. Era cedo ainda para imaginar o futuro do casal. O que se sabe é que o rala-e-rola foi terminar no apartamento do moço. Um quarto-e-sala bem ajeitadinho no Bairro Boa Vista. Quarentão descompromissado e sem filhos, com a mulata exaurida no colo, o taxista mandou na lata, por impulso: “Vem morar comigo, vem”.

Bastou para que Isolina saltasse da cama para se vestir às pressas. Não quis mais chamego. Ficou de pé diante da porta que dava para a rua e esperou que ele a levasse. Silenciado pela atitude da mulher, o homem a levou sem vontade. Assim que chegou ao portão do predinho de Isolina, no Bairro Cidade Nova, Bilac respirou fundo para tentar novamente: “Falei sério. Com você eu até caso. Com véu, grinalda, papel e tudo”. Isolina nem esperou para ouvir o que ele ainda tinha para falar. Desceu do carro iluminada pelos primeiros raios do sol e sumiu corredor adentro.

De volta ao quarto-e-sala, Bilac não conseguiu pregar os olhos. Estava abraçado ao travesseiro com o cheiro da aniversariante quando o telefone tocou. Do outro lado da linha, a voz trêmula de Isolina soprou: “Dia sim, dia não, eu topo”.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 9/1/10

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Acaso? Destino? Vai entender.

Difícil se conformar. Os desastres provocados pelas chuvas nas primeiras horas de 2010 em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, ainda me tiram o sono. Perturba-me o peso da fatalidade que arruinou a vida de dezenas de famílias. Muito triste. Sou um homem do mar. Desde garoto sou assim. Não é por luxo ou por capricho que mantenho uma casinha na praia. É por amor. A imensidão do Atlântico não só me arrebatou criança, como também presenteou-me os ouvidos com o som constante das marés. Digo sempre: “Não tenho orelhas. Tenho duas conchas na cabeça”.

Entrei o ano nas águas do Espírito Santo. Saltei sete ondas e pedi alegria para todos os que amo e para os que amam os que amo. Também pedi por você, amigo leitor. E agradeci, claro. Afinal, o Deus que há em mim é por demais generoso. Caí na farra com os filhos e dormi pouco. Logo cedo, pela internet, soube dos deslizamentos no Rio de Janeiro. Meu pai, Maria Helena, Violeta e eu conversamos muito sobre o assunto. “Equilíbrio, meu filho. São os ajustes da nossa mãe natureza”, disse o velho Botelho. E continuou: “O homem não tem juízo. Segue cortando as montanhas; loteando as florestas; esburacando a terra; desviando o caminho das águas e acha que o planeta não vai reclamar. Reclama. Reclama o tempo todo. O problema é que só paramos para ouvir quando ocorrem tragédias assim”.

Já falamos sobre isso neste quintal. De fato, fazemos muito mal ao planeta. No entanto, hoje, com caneta e papel na mão, diante do mar, são outros os rumos das ideias: não consigo deixar de pensar em todas essas famílias vitimadas pelos desastres naturais. Por ocasião do tsunami em 2004, no Oceano Índico, quando mais de 200 mil pessoas morreram, passei tempos sonhando com a tal onda gigante. Li bastante sobre o assunto e o que mais me chamou a atenção foram as histórias dos sobreviventes: o cidadão que decidiu encurtar as férias com toda a família e deixou a região um dia antes da tragédia; o casal em lua-de-mel, que perdeu o avião; o bebê de um ano e meio que foi encontrado, como por milagre, flutuando no mar sobre um colchão. Lembro-me, inclusive, que alguns bebês sobreviventes ganharam o nome de Tsunami.

Teve também a história de um senhor que tinha muito medo do mar, que não entrava na água por nada deste mundo e que acabou morto, tragado pela onda. Vai explicar. Em Angra dos Reis, soube de casos assim. Em Ilha Grande, lugar chamado paraíso por muitos, teve um pai de família que, aborrecido com tanta chuva, foi embora antes do programado e, com isso, conseguiu se salvar com todo os seus. E as mortes dos jovens estudantes mineiros Yumi Imanishi Faraci, Isabella Godinho Rocha e Paulo Sarmiento? Como explicar? E os quatro outro amigos de Yumi, sobreviventes? Qual é a força que decide quem vive e quem morre? A cada instante de existência sou levado a crer que há algo de extraordinário do lado de lá. Aqui, tenho certeza, estamos de passagem. A vida é bem mais que isso. Contudo, não podemos perder a fé. Mesmo não sendo fácil entender os desígnios de Deus.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 6 de janeiro de 2010

sábado, 2 de janeiro de 2010

A solidão dos homens bons

Não houve em tempos homem bom como o Vicente. Estava ali sujeito nascido para a família. Generoso, sempre disposto a ajudar quem quer que fosse. Herdou do pai, roceiro das bandas de Pará de Minas, admirável vocação para proteger os filhos. Moço ainda, ficou viúvo ao perder Luísa, 24 anos, vitimada por doença incurável. Por desgosto e tristeza, reuniu os cinco filhos pequenos e partiu para tentar a vida em Belo Horizonte. Ajeitou-se em vila popular na região da Gameleira e encontrou nova companheira para tocar a vida.

Augusta amparou os filhos do Vicente como se fossem dela. Luisinho, o caçula, ainda não tinha completado um ano e Valdinério, o mais velho, estava por fazer sete. Este, criança, entendia-se homem de responsabilidades no sustento da casa. Tanto é que não havia engraxate adulto capaz de superá-lo na clientela da Praça 7. Augusta, que nem parecia mãe emprestada, demonstrava ter muito orgulho do enteado. Durante muitas manhãs, no fim da madrugada, preparava a marmita do garoto com o mesmo capricho dedicado ao marido.

Todos os dias, com o sol tímido a se espreguiçar, lá iam os dois a pé pela Avenida Amazonas. Vicente, pedreiro na raça e por necessidade, rumo à obra na Avenida do Contorno. Já o pequeno engraxate, de cabeça erguida, seguia para ponto no quarteirão do damista. No fim do expediente, pai e filho se encontravam no cruzamento das avenidas para, juntos, voltar para casa. E assim, no andar do tempo, oito anos se foram na velocidade da luz. Dois novos rebentos se juntaram à família: Maria Inês e Maria Helena nasceram da união de Vicente e Augusta.

Foi quando pai e filho voltavam para casa, depois de jornada comum de trabalho, que tragédia mudaria para sempre a vida de Vicente. Assalto besta, já perto de casa. Kim, criminoso, ex-morador da região, decidiu tomar o dinheiro dos dois. Vicente já havia entregue tudo o que tinha quando um disparo silenciou Valdinério. Kim atirou sem dó ou piedade e fugiu de carona com o comparsa em carro roubado. Pouco depois do ocorrido na Gameleira, os bandidos tentaram furar blitz policial e foram presos.

Vicente jurou vingar a morte do filho. Fez questão de acompanhar o julgamento do assassino. Com longa ficha criminal, Kim foi sentenciado a 17 anos de prisão. Vicente e Augusta estavam no tribunal para ouvir a sentença. A morte de Valdinério, aos 15 anos, deixou vazio de dor na alma do homem, que não conseguiu continuar morando na cidade. Vicente juntou a mulher e os filhos e decidiu ir trabalhar na fazenda de parente rico em Nova Serrana. No galope das datas, juntos, reconstruíram a vida, alcançando paz e fartura.

Treze anos passados, era dia de Kim sair da prisão para passar o fim do ano com a família. Vicente estava lá para cumprir sua jura. Descarregou o trabuco no peito do infeliz. Entregou-se sem medo de amargar solidão.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 2/1/10