Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

segunda-feira, 25 de março de 2013

E o bandido virou pó


Posto que é chama: o destino. Antes da reviravolta, a história: Ananias, empresário, dono de estabelecimento de gasolina, perdeu tudo para o empregado larápio, um tal Rosalvo. O sujeito roubou combustível do patrão por anos. Em noites de calmaria, lá estava o gatuno a desviar parte do estoque com a ajuda de primo comparsa. Homem de aparente confiança, o gerente nadou de braçada sem levantar suspeita.

Rosalvo foi contratado ainda rapaz. Empregado, foi bom moço por algum tempo. Até que, incentivado por parente bandido, decidiu virar a casaca. No início, perdido entre sentimentos desonra, até sentia certa vergonha. Depois, seduzido pelo dinheiro fácil do esquema armado por quadrilha especializada, a cara-de-pau parou de arder.

Espertíssimo, Rosalvo ficou rico sem exibir excessos. Guardava a maior parte do dinheiro em esconderijo na garagem de casa construída na periferia. Mão-de-vaca, para justificar o imóvel e o carro novo, dizia-se bom comerciante e espalhou que emprestava dinheiro a juros. De fato, a agiotagem lhe trouxe ainda mais recursos. Do casamento com mulher honesta, de bem, um único filho: Adílio. Moço estranho, de pouca conversa.

Por outro lado, na vida de Ananias, o inferno. Roubado, em dificuldades, o comerciante começou a quebrar. E, num desses acontecimentos que superam a ficção, não é que o patrão teve que pedir emprestado ao empregado? O gerente endinheirado teve a maior boa vontade e ainda ofereceu taxa bastante generosa de 5%. Mas a dívida não durou muito: pouco mais de ano. A liquidação foi rápida e rasteira. Devendo até as cuecas, Ananias se viu obrigado a vender o posto para o pilantra.

E assim, o acontecimento incrível: de patrão a empregado do ladrão. Rosalvo reformou o estabelecimento com grande loja de conveniência e empregou o ex-proprietário no balcão. Ananias, que acabara de enterrar o casamento, vivia seu maior pesadelo. Como Jó, homem de fé inabalável, o sofredor se manteve firme e acreditava dar a volta por cima. Enquanto isso, Rosalvo, o criminoso, cada vez mais rico.

O que ninguém podia imaginar é que o fim da festa do surrupira estava próximo. Adílio, o filho rebelde, viciado em crack, estava em grande aperto com traficante. Em busca de dinheiro, num acesso de loucura, Adílio esfaqueou Rosalvo na garagem de casa. Noiado, espalhou gasolina pelo cômodo e ateou fogo no corpo do pai. O agiota de fachada morreu em brasa sobre fortuna em notas de R$ 100, escondidas sob o piso de madeira incendiado. Naquela noite, de longe pôde ser visto o clarão da casa em chamas.

No enterro do patrão e ex-funcionário, Ananias, sentido e inocente, ajudou a carregar a urna barata de tampa fechada. Dizem que foi lá que ele arrebatou o coração da viúva do bandido em pó e, em trágica reviravolta, retomou o estabelecimento de sucesso.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho

quarta-feira, 20 de março de 2013

"A busca" é filme que merece atenção



O amigo leitor, sempre presente neste quintal, sabe bem da minha paixão pelo cinema. É um envolvimento quase visceral, vindo dos tempos de menino – lá nos idos de 1970 –, quando, o período de férias, além de bons passeios, também significava diversão e emoção no Cine Brasil.

Impossível esquecer, na Praça Sete, as boas histórias de Os Trapalhões. Era uma farra. Entre todas as paixões ensinadas pelo velho Botelho, o cinema, certamente, está entre as maiores. Depois de Didi Mocó e companhia, descobri e dei boas gargalhadas com a boa gente mais antiga: Chaplin, Mazaroppi, Oscarito e Grande Otelo.

Dito isso, vez por outra, não posso deixar de dividir com o amigo de Bandeira Dois, alguns dos bons momentos que as salas de cinema me proporcionam. Neste fim de semana, A busca, produção da O2 Filmes, com Wagner Moura, Mariana Lima e participação especial de Lima Duarte, foi daquelas gratas surpresas do cinema nacional.

Ainda que com alguma deficiência técnica no que diz respeito ao áudio – impressionante como os filmes brasileiros não dão jeito de vez no assunto –, o filme toca pelo bom roteiro, direção e interpretação do protagonista. Wagner Moura dispensa comentários. É, certamente, um dos melhores intérpretes de sua geração.

E não digo isso apenas pelo seu trabalho já consagrado na TV e no cinema. Tive o privilégio de vê-lo no teatro há mais de 10 anos em “A máquina”, de João Falcão, e o sujeito, ao vivo, é ainda muito melhor ator. Sabe mandar muito bem um texto e valoriza cada pausa, cada silêncio, das verdades da cena.

Em “A busca”, no papel de um pai desesperado no rastro do filho adolescente, que foge de casa, Wagner Moura vale o programa. O drama fala de descobertas, dos conflitos tão comuns das famílias contemporâneas, cada vez mais abafadas pelas urgências vazias.

Trata-se de uma história de ausências. Do pouco tempo para os valores mais sagrados das relações entre os que se amam. Em resumo, o sujeito, pai, perdido, sai em busca do filho e acaba por encontrar a si mesmo, além de encarar relação mal resolvida com o pai, muito bem interpretado pelo veterano Lima Duarte.

Para pais ou filhos, “A busca” é daqueles filmes que merecem atenção.

Bandeira Dois - Josiel Botelho

segunda-feira, 18 de março de 2013

"Mim, Branca de neve. Você, Seteanão"


O negócio do Canastra era se arrumar. “Ainda chego lá!” Tá certo. Que mal há nisso? O problema é que ele era capaz de prostituir a mãe para se ajeitar. Dona Betinha bateu as botas cedo e, cheia de desgosto, não teve tempo de ver o filho tomar jeito na vida. Tragédia. Engasgou-se com a dentadura e passou dessa para melhor. Até no velório, ele tentou se aproveitar do drama.

Ao lado do caixão, fingiu dor sentida. Mas não sabia chorar. Testa franzida, olhos em águas falsas, provocadas por um tal cristal japonês (recurso muito utilizado por atores ruins para provocar choro mentiroso nas novelas). Um fiasco. Não conseguiu enganar nem os três primos cegos. O tio ricaço, dono de grande mineradora, também não caiu na encenação. “Esse salafrário é uma vergonha!”, comentou com um irmão.

Espinafrado pelos olhares da parentalha, o picareta nem ficou para o enterro no Cemitério da Paz. Caiu no mundo e foi tentar a sorte em São Paulo. Com quase 30 anos nas costas, sem profissão ou vestígio de vida útil, estava decidido a vender o corpo em clube para mulheres. Foi onde conheceu o Jonas, empresário afeminado e cheio da nota. Negociou o quadril ali mesmo e armou a barraca na cobertura do moço carente.

Para quem vivia em quartinho ordinário, perto da rodoviária, um apartamentão nos Jardins foi salto com vara. Só que a união não durou muito. O parceiro generoso chegou mais cedo em casa e flagrou o giletão infiel na cama com a vizinha. O traíra ainda tentou abafar o babado: “Não é o que você tá pensando, bebê…”. Conversa! Resultado: foi obrigado a deixar o ninho luxuoso, com uma mão na frente e a outra atrás.

Na rua da amargura, descolou bico em hotel meia-boca na região central. Boa lábia, até cantinho para dormir conseguiu com a gerente do lugar. Carregador de malas, não perdeu as esperanças. “Ainda chego lá!” Um troquinho aqui, outro ali… e ele foi juntando grana para fazer curso de teatro barato. Viu anúncio no jornal: “Venha brilhar na televisão! Você pode, você consegue! Você é capaz, você é o cara!”

A propaganda arrebatou o interesseiro. Na escola, caiu nas graças de um famoso diretor, chegado num moçoilo ambicioso. Puta-velha, o ex-galã de tevê aplicou exercício de caras e bocas: “Amor, tá muito ruim… não sabe envergar o rosto? Expressão, amor… Expressão… parece uma vaquinha de presépio…”. Depois do ensaio, jantarzinho a dois. Caíram na lama em indecência, no casão da estrela serelepe.

O canastrão, em toalha, havia acabado de acender um cigarro no varandão do duplex, no Morumbi, quando um agigantado ex-namorado da celebridade invadiu a cena. Bêbado, partiu para cima: “Te mato, bichona! Ele é meu!” Entre tapas e tabefes, numa gravata, o invasor teve o pescoço quebrado e morreu na hora. Polícia, bafáfá… cadeia. Ainda pela manhã, na cela imunda e escura, o canastra foi arranjado por companheiro fortão: “Mim, Branca de Neve. Você, Seteanão”.

Foi quando, enfim, o moço oportunista aprendeu a chorar em verdade.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho

segunda-feira, 11 de março de 2013

A gata baladeira


Quem melhor quer saber de Melissa, a Mel, de 26 anos, depois da condenação por tráfico de drogas, é a irmã de criação, de 17. Luiza, tomada por amor ainda maior, não quer arredar o pé da penitenciária nos dias de visita. Toda semana a menina marca presença com agrados de carinho para a irmã. Os pais das duas, separados, sem rumo ou estrutura, vivem de outras urgências doídas: o homem, alcoólatra, na luta desigual contra a depressão; já a mãe, usuária de cocaína, desde a separação há 11 anos, enrabichada com gente que não presta.

Foi por ocasião do fim do casamento de Juliano e Magali, em 2002, que a vida de Mel foi tomada pelo assombro das baladas sem limites. Quando ela estava para comemorar 15 anos, com 400 convites já na gráfica para a festa de aniversário, Juliano e Magali, em crise, decidiram cancelar a festa e a vida sob o mesmo teto. Revoltada, a adolescente se afundou no mundo das amizades perigosas. Tornou-se, além de péssima aluna, a garota mais baladeira da tradicional escola da Região Centro-Sul. Por fim, depois de concluir o ensino médio em supletivo barato, Mel parou de estudar e começou a promover festas e traficar ecstasy.

No ano passado, no Aeroporto de Confins, no desembarque de vôo vindo da Inglaterra, a bela Melissa caiu em operação da Polícia Federal. Julgada, foi condenada a 5 anos em regime fechado. Ontem, dia de visita, Luiza, levou presente e seu melhor sorriso para a irmã encarcerada. Boas notícias também, trazidas de conversa que teve naquela manhã com o pai, Juliano.

– Tenho ótimas notícias...
– O que?
– Abre o presente primeiro...

Dentro da sacola, um belo vestido floral. Melissa o coloca junto ao corpo com tristeza.

– É lindo.
– Que carinha mais triste é essa? Você ainda não ouviu a boa notícia...
– Qual é?
– O pai. Tá melhor e disse que na próxima semana vem ver você. Hoje, faz 43 dias que ele não bebe.
– Que bom. Mas, diz que ele não precisa aparecer. Que eu tô bem e sei me virar sozinha.
– A boa notícia não é que ele vem aqui. A boa notícia é que ele tá melhor da depressão e tá arrumando um bom advogado pra tirar você daqui. Aí, você vai poder usar o vestido.
– Ninguém do pai vai me tirar daqui. O tio Maurício já disse que tá fazendo o que pode. E eu confio nele... tenho que confiar. Vou sair daqui sozinha. Não vai demorar... você vai ver. E tem coisa que a gente até se acostuma, Luiza. (longa pausa) E a mãe? Você teve notícia dela?
– Agora, ela só quer saber de um namorado que arranjou lá em Trancoso. Só fica na casa da praia. (pausa) Anteontem, Dona Mercedes ligou e disse pro pai que tava preocupada porque socorreu a mãe caída na rua outra vez, babando e se debatendo que nem gente doida. Eu tava na extensão e ouvi tudo.
– O pai tinha que deixar ela morrer. Só assim pra ele ficar bom.

Luiza olha profundamente os olhos bonitos da irmã. Respira e manda, na lata:

– Vou sair de casa, Mel.
– Como assim? (pausa) Você tem tudo morando com o pai...
– Quero ter a minha vida... liberdade, sabe!? Ser como você... dona do meu nariz.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho

segunda-feira, 4 de março de 2013

Nós Outros

Primeiro curta da Casa do Ator em parceria com a Guerrilha Filmes, Nós Outros entrelaça, numa penitenciária qualquer, vários dramas pessoais estabelecidos a partir da ausência. Cinco histórias de amor e afeto, assombradas pela impossibilidade da vida comum além dos muros da prisão. Em fase de treinamento e levantamento de cenas, elenco e parte da equipe técnica seguem imersos nas agruras do tema.



















A menina bailarina

A filha de Gracielle sonhava ser bailarina. Desde garotinha, Bianca vivia na ponta dos pés. Para a pequena das pernas longas, a dança é a metade da razão de viver. A outra metade é a mãe, mulher de pouca sorte, para quem ela sempre fez tudo. Quando o pai abandonou o lar para morar nos Estados Unidos com a melhor amiga da família, foi a mocinha – na época, com 8 anos – quem melhor cuidou da dona de casa. Tia Iolanda, vizinha de frente, esteve por perto para ajudar a sobrinha a manter a casinha de fundos em paz.

O abandono do marido, Eduardo, foi golpe duro demais para a psicóloga. Logo que teve Bianca, Gracielle foi convencida pelo companheiro a largar emprego de futuro para cuidar melhor do rebento. “A gente não precisa de dinheiro, amor. A menina precisa é da mãe, dentro de casa”, disse o homem. Eduardo, taxista, mostrou na ponta do lápis para a mulher que com o salário que ela ganhava era mais negócio ficar em casa do que pagar escolinha. E assim foi. Até que o camarada infiel decidiu “ganhar a vida na América”, na companhia da amante, cozinheira.

Gracielle adoeceu quando soube da trairagem. Quem contou tudo foi Iolanda, a cunhada, revoltada com a atitude do irmão. Já era tarde da noite: “Tenho que contar porque não tá certo e ele está morto para mim. O Dudu não foi sozinho… foi com a desgraçada da Amanda. Eles são amantes. Amantes!”. Bianca estava acordada e ouviu tudo. Amanda era figura das mais presentes naquele endereço. As três – Gracielle, Iolanda e Amanda – cresceram e estudaram juntas nas salas de aula do Estadual Central.

Os dias seguintes foram de tristeza profunda para a dona de casa, revoltada. Por amor à Bianca, a psicóloga até reuniu forças para seguir. Batalhou emprego e conseguiu algumas oportunidades, mas, com o coração ferido, Gracielle não dava conta de nenhuma ocupação profissional. Iolanda, comerciante bem sucedida, não deixava faltar nada para as duas inquilinas queridas. Desempregada, Gracielle fazia questão de levar e buscar a filha no balé.

Na escola, a psicóloga passava o tempo dos ensaios num canto, do lado de fora do salão, ouvindo boa música vinda da janela. Cinco anos corridos, Amanda voltou dos EUA para ver a mãe com câncer. Eduardo ficou em Nova Iorque, cuidando dos filhos Lucas e Matheus, gêmeos, de 2 anos. Já era noite, quando, na saída do Hospital das Clínicas, na Avenida Alfredo Balena, Gracielle esperou Amanda para descarregar ressentimento e revólver 38.

Dia de visita, presente feito à mão, na cela, e novidade na penitenciária de mulheres: mãe e filha matam a saudade no pátio. Na próxima semana tem estreia da companhia de dança de Bianca, que esta semana faz 15 anos. Sonho antigo, de menina: apresentação no Grande Teatro do Palácio das Artes. Mamãe não vai poder estar na plateia.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho