Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

sábado, 30 de maio de 2009

Uma rua chamada solidão (6)

"Agora, o negócio é dar a volta por cima. De preferência em cima de quem tem dinheiro. Porque em cima de pobre é só doença, criança e aborrecimento"




Dorinha tanto fez que convenceu João a se hospedar em seu apartamento, no Edifício JK. O taxista da vez amarrou a cara quando, na rodoviária, ouviu “Praça Raul Soares” da boca carnuda da cantora da noite. Animada com a presença do novo amigo capixaba, a mulher ainda fez graça com o motorista: “Se fingir que tá satisfeito ganha gorjeta pra compensar a corrida pequena”. João não ouviu o resmungo do rabuja. Estava entretido com a Avenida Paraná pela janela. “Pode encostar no posto de gasolina, fofo”, disse Dorinha, que, já com o trocado na mão, não permitiu que seu convidado, conhecido no ônibus, abrisse a carteira.

Distantes do Barro Preto, Maria e Claudete andavam rumo à estação do metrô no Bairro São Gabriel. Claudete, pensando no bem da amiga, falava como quem conhece a vida: “Eu sei que é duro, mas você consegue sair dessa tristeza. Na sua idade, com vinte e poucos, nem dente eu tinha. Não tinha nada. Já tinha me deitado com a metade dos vagabundos do Rio. E olha que no Rio o que mais tem é vagabundo. Por isso que não volto mais lá. Aqui também tem gente que não presta. Todo lugar tem. (Segura Maria pelo braço) Cuidado com o cocô. Olha onde pisa, menina! (Volta ao assunto) Você tá viva, não tá!? Então. Agora, o negócio é dar a volta por cima. De preferência em cima de quem tem dinheiro. Porque em cima de pobre é só doença, criança e aborrecimento. Você é nova. Faz assim: você fica na Guaicurus por um tempo, junta um dindim, faz umas fotos, põe num site e vai estudar”.

João já começava a desconfiar da generosidade de Dorinha, quando ela explicou por que eles estavam sentados na praça com as malas no colo, às 7h daquela manhã fria: “Gato, a gente vai ter que esperar a Valdirene chegar. Ela já me mandou uma mensagem pelo celular dizendo que vem às 8h. Moro sozinha, mas como passei uma semana lá em Ponte Nova, deixei a minha chave com essa amiga, que trabalha naquele prédio ali, para ela tomar conta do Raul. Eu te falei do Raul? É o meu schnauzer. Sabe? Schnauzer? Aquele cachorro fofo, que tem um cavanhaque? O nome do meu é Raul porque ele é a cara do cantor, o Raul Seixas. Conhece? Ganhei do meu ex-namorado. Ele foi embora e ficou o Raul”.

Maria, no vagão abarrotado do metrô, de pé, nem viu o trajeto passar. Na cabeça, ainda se fazia ferroada o efeito da cachaça barata da noite passada. Na companhia de Claudete, desceu na Estação Lagoinha e seguiu para o hotel de trabalho, com quarto pago adiantado pelo mês. Logo na entrada, colega de carreira deu notícia: “Já ficaram sabendo? Fulana morreu. Ontem. No quarto. Onde vocês estavam? Parece que um noiado, depois do programa, quis roubar ela. Aí a fulana reagiu e o brocha enfiou a faca no bucho dela”. Claudete apenas lamentou a morte da conhecida. Não rendeu o assunto. Passou o braço pelos ombros de Maria e, juntas, subiram as escadas.

Às 8h10, no JK, Valdirene abriu a kitinete para João e Dorinha. Raul latia desafinado.

(Continua no próximo sábado)
Jefferson da Fonseca Coutinho - Vida Bandida - 30 de maio de 2009

sábado, 23 de maio de 2009

Uma rua chamada solidão (parte 5)

"Pagou a conta e levou-a cambaleante pela rua estreita. No 158F, colocou-a sob a água gelada da ducha encardida. O frio de trincar os ossos fez melhorar a bebum. Claudete teve pena de Maria quando soube da mãe morta na Zona da Mata"







Naquela madrugada fria, com a poltrona do ônibus inclinada, distante, João relembrava o jeito menina de Maria, mulher da vida. "Ponte Nova. Parada de 15 minutos", anunciou o motorista engravatado. Ele pensou não descer. Descortinou a janela para ver a cara do lugar. A lanchonete bem-cuidada foi convite para café. Aproveitou para espichar as pernas. Foi ao banheiro e jogou água no rosto. Olhou-se no espelho e alinhou o terno feito no corpo. No balcão, pediu meia dose sem açucar. O atendente, cheio de modos, ofereceu pão de queijo saído do forno. João mandou ver a boa massa com gosto e cuidado para não queimar a língua. Pouco depois, a buzina rouca anuncia hora de seguir viagem.

No São Gabriel, Claudete encontrou Maria debruçada sobre a mesa do botequim fedorento: "O que é isso, menina!?" Pagou a conta e levou-a cambaleante pela rua estreita. No 158F, colocou-a sob a água gelada da ducha encardida. O frio de trincar os ossos fez melhorar a bebum. Claudete teve pena de Maria quando soube da mãe morta na Zona da Mata. Abraçou-a como quem quer proteger rebento. No mundo da prostituição, 30 anos a mais parecem século. Claudete, a puta descolada, cinquentona carioca, sabia bem amparar as colegas. "Já fui menina perdida um dia, Maria. Sei o que é se sentir sozinha", disse, passando-lhe as costas das mãos enrugadas no rosto.

Em Ponte Nova, a poltrona vizinha, antes vazia, agora era ocupada por dona de perfume cítrico. "Dorinha! Muito prazer", apresentou-se extrovertida. João a cumprimentou com meio sorriso. "Vai para Belo Horizonte?", perguntou a mulher, puxando assunto. "Humhum", ele cortou seco. Insistente, Dorinha acabou conseguindo firmar conversa. "Pensei que fosse para Ouro Preto. Você tem cara de estudante". Contou-lhe que era cantora na noite. Falou que foi da equipe de dupla sertaneja famosa. Era dançarina. "Eu e as outras meninas ficávamos rebolando, enquanto eles cantavam dor de corno", gargalhou desinibida. "E você? Agora, fale de você. Quer chicletes?".


Na mesma cama barata, no barracão de fundos, dormiram grudados Maria, Claudete e o pequeno Julim. O banho gelado espantou o porre e abafou a tristeza no peito da puta, que dormiu sono de criança. Manhã de sol. Claudete, de pé e maquiada, saculejou a amiga: "Acorda, Maria! Hoje o dia vai ser longo. Só o trabalho para dar jeito na ressaca". Julim, banho tomado e cabelo penteado, partido de lado, tomava leite e comia pão com manteiga. Maria não quis o desjejum. "Toma, menina. Senão vai desmaiar debaixo do primeiro freguês", disse Claudete, oferecendo prato esmaltado com banana cozida.


Dorinha manteve João acordado de Ponte Nova até a rodoviária em BH. Ele não disse muito. Falou apenas que queria reencontrar amizade antiga na cidade. A mulher tanto fez que convenceu o evangélico a se hospedar em seu apartamento, no Edifício JK.


(Continua no próximo sábado)


Jefferson da Fonseca Coutinho - Vida Bandida - 23 de maio de 2009


quarta-feira, 20 de maio de 2009

Vincent

Da paixão por Van Gogh, trabalho solo desde 1995.

Trecho de "Vincent", peça inspirada em cartas do pintor Vincent Van Gogh, com textos de Antonin Artaud e William Shakespeare. Adaptação, direção e interpretação: Jefferson da Fonseca Coutinho. Supervisão geral: Marcello castilho Avellar. Direção de fotografia: Markão. Direção de produção: Ferdinando Ribeiro. Técnico: Gustavo Freitas.

sábado, 16 de maio de 2009

Uma rua chamada solidão (parte 4)

"Ela até pediu bebida mais forte ao velho banguela do jaleco encardido. Virou a dose amarela num só trago para trapacear os sentidos. Na cabeça, jogo cruel de imagens: a mãe morta e o sorriso do tímido João"


Maria entrou em boteco copo-sujo para beber sozinha. Enquanto isso, na rodoviária de Vitória, no Espírito Santo, moço evangélico de terno feito no corpo embarcava em ônibus para Belo Horizonte. Na plataforma, sob céu de poucas estrelas, o jovem estudante de administração mantinha o olhar profundo, marcado por lembranças. Aos 22 anos, contra a vontade do pai, pastor maranata, João não conseguia esquecer a bela mineira mulher da vida. Enquanto aguardava a hora do embarque, no andar lento dos ponteiros, reviu a vida na retina: Maria. Foi na época em que rebolava em boate vagabunda, explorada por traficante capixaba, que ela fez homem o menino protestante.

Por quase ano, ela, aos 20, e ele, aos 17, juraram amor sob lençóis em barracão à beira-mar. Dele ela nunca cobrou centavo. Nem na primeira vez. João, ao abrir a carteira, ouviu sussurro ao pé do ouvido: "Presente meu. Pelo carinho". De fato, por 20 minutos, ela se sentiu carinhada como jamais. O ex-marido, bandido foragido, só fez afundar-lhe a carne na Zona da Mata. Pesadelo que ela fazia questão de deixar enterrado. Amargura e falta de sorte endureceram Maria. Por fim, no caminho das drogas, foi jurada de morte. João, generoso, lhe arranjou trabalho em igreja carioca. Pouco depois, sem rumo, ela voltou a vender o corpo e decidiu matar o rapaz nos pensamentos.

Naquela noite, no botequim do Bairro São Gabriel, enquanto queimava cigarro de palha, Maria não conseguiu evitar João. Ele, silencioso, mais carinhoso que nunca, invadiu-lhe as ideias. Ela até pediu bebida mais forte ao velho banguela do jaleco encardido. Virou a dose amarela num só trago para trapacear os sentidos. Na cabeça, jogo cruel de imagens: a mãe morta e o sorriso do tímido João. Já tarde da noite, no barracão 158F, Claudete despertou de cochilo e estranhou a demora da amiga. Deixou Julim dormindo para ir atrás de Maria. "Ela só ia telefonar para a mãe… aonde se meteu essa menina?", pensou alto ao subir a rua estreita de pouco movimento.

No breu do ônibus estrada adentro, João recorria a meia dúzia de salmos decorados na infância. No carro de muitas poltronas, só barulho de marcha e motor. Combinação sinistra em canção de viagem que lhe trouxe lembrança recente de busca em vão no Rio de Janeiro, quando, sem notícias há dois anos, esquadrinhou Copacabana em busca de Maria. Distribuiu dinheiro e número de telefone para metade das putas do lugar. Meses depois de seu retorno a Vitória, voz rouca deu a dica: "Belo Horizonte". Fez mala e vestiu seu melhor terno para reencontrar Maria. Naquela madrugada fria, com o leito inclinado, olhos abertos, distantes, João repensava o jeito menina da mulher da vida.

"Ponte Nova. Parada de 15 minutos", anunciou o motorista engravatado.

(Continua no próximo sábado)

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 16 de maio de 2009

segunda-feira, 11 de maio de 2009

A quinta parede de Lenise Pinheiro


Jefferson da Fonseca

Não só aos amantes das artes visuais, mas também ao leitor que aprecia bons textos em imagens, Fotografia de palco, de Lenise Pinheiro, tem tudo para agradar. O livro da iluminadora e fotógrafa paulista, de 48 anos, reúne 571 registros que compõem parte importante da trajetória do teatro nacional. São cenas de espetáculos, bastidores, ensaios de atores, escritores e diretores dos mais respeitados do Brasil, organizados em seis capítulos: "camarim"; "ensaios pessoais"; "figurinos", "cenários"; "iluminação" e "cenas". A obra, recém-lançada, em seu conjunto, é uma espécie de quinta parede, que se sobrepõe à linha imaginária que separa o espectador do espetáculo.

Produzido em parceria pela Editora Senac São Paulo e Sesc Edições, Fotografia de palco documenta 25 anos do olhar de apuro e arte de Lenise. Parceira de realizadores como, Zé Celso Matinez Corrêa, Antunes Filho, Gerald Thomas e Daniela Thomas, a artista diz que a paixão pela fotografia veio cedo, ainda na infância, para valorizar os trabalhos de escola. "Talvez até para ajudar a superar uma certa timidez", revela. Contenção ainda percebida, em entrevista, acompanhada por conferência, pela assessora de imprensa. Lenise respondeu sobre sua obra, sem voltas ou rodeios, com prazer e orgulho. É de conversa comedida, comum aos que falam com o olhar.

Fotografia de palco fala po si. São 456 páginas de diálogo raro. Um espetáculo gráfico organizado e coordenado pela própria autora. É a celebração do instante, eternizado pelas lentes de Lenise. Em foco (ou fora dele), mestres na arte de dar vida a boas histórias. Para citar apenas alguns, imortalizados nas folhas de papel encorpado estão, Raul Cortez, Kazuo Ohno, Paulo Autran, Marco Nanini, Tonico Perreira, Pina Baush, Christiane Torloni, Glória Menezes, Amir Haddad, Diogo Vilela, Fernanda Montenegro, Fernanda Torres, Antônio Abujamra, Renato Borghi, Elias Andreatto, Ney Latorraca, Vera Holtz, Giulia Gam, Maria Della Costa, Maitê Proença, Irene Ravache, Paulo José, Walderez de Barros, Bete Coelho, Ariano Suassuna, Antônio Nóbrega, Cleide Yáconis, Lélia Abramo, Hilda Hilst, Luís Melo, Maria Padilha, Domingos de Oliveira e Laura Cardoso.

Não é preciso fazer andar muitas folhas para perceber a dedicação, o respeito e os cuidados de Lenise com o teatro e tudo o que nele contém. Como espectro, no esquadrinhar de bastidores, a fotógrafa demonstra absoluta intimidade com cada um de seus alvos, objetos móveis, vivos, personificados. Cenários, equipamentos e figurinos. Invisível e silenciosa, "rata de teatro" (como a define a atriz Bete Coelho), sempre em busca do ângulo menos óbvio. Longe do lugar-comum, ela captura mínimos detalhes e, até, os inimagináveis. Por exemplo, a bela fotografia de Christiane Torloni, em Ham-let, de 1994, páginas 18 e 19, onde Lenise assina homenagem em letras vazadas: "Atores e atrizes: os magos da minha profissão". Fascinantes também os registros selecionados no capítulo "Iluminação". Luzes e sombras, em dança de contrastes, parecem provocar com galhardia o leitor-espectador.

Talento de técnica, razão e sensibilidade, Lenise, hoje especialista em iluminação teatral, já passou pela arquitetura. Reconhece no estudo das formas ponto de partida fundamental para seu mergulho profissional na fotografia: "Foi muito importante para ajudar a direcionar um interesse particular pela imagem". Conta também que a convivência com o diretor Zé Celso Martinez, com quem trabalha desde o início dos anos 1990, lhe trouxe ainda mais intimidade com o fazer teatral. No livro, cúmplice, o encenador comparece: "Esta Santeira é do corpo sem órgãos. Em movimento permanente de transformação da Vida do Teatro, Mar de São Paulo (…) O coração do Teatro bate disposto a uma nova grandeza", escreve e assina a página 300.

Respeitada e com trânsito livre entre grandes nomes da cena nacional, Lenise Pinheiro, inspirada no fotógrafo alemão Fredi Kleemann (1927-1974), que imortalizou o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), derruba o mito de que o teatro, arte viva, é o momento. De que acabou, se foi, ficou para trás em alguma esquina dobrada pelo tempo. Na memória apenas da platéia. O olhar da artista, em Fotografia de palco, perpetua a realidade antiga. O instante, capturado por ela, ganha corpo e expressão, fôlego de infinito.

Fotografia de palco
De Lenise Pinheiro
Editora: Senac São Paulo e Sesc Edições
456 páginas

À margem da vida



Jim O'Connor e Amanda Wingfield, por Ana Cândida Aguiar Cardoso

sábado, 9 de maio de 2009

Uma rua chamada solidão (parte 3)

"Acendeu cigarro de palha e viajou nas cinzas da brasa quase apagada pelos tragos secos da garganta em nó"



Com as sandálias nas mãos, as duas putas correram molhadas pela fonte do Bulevar Arrudas. Maria e Claudete, molecas, fora da Rua Guaicurus, voltaram ao passado, em tempo de inocência e paz. Os passantes não entenderam a alegria fugaz das duas mulheres de roupas baratas, indecentes, na Praça da Estação. Cúmplices, caminharam até o Parque Municipal, onde comeram pipoca e tomaram sorvete. Divertiram-se imaginando as histórias dos coadjuvantes que lhes cruzavam o caminho. “Aquela ali, apressada, de chapinha no cabelo, corre para chegar em casa e preparar a comida do marido que, na certa, tem outra na cabeça”, disse a velha carioca. Maria, romântica, rebateu: “Vai ver tá correndo para ir ao cinema com o namorado que ela conheceu no pagode”.

Diante do Teatro Francisco Nunes, fechado para reforma, sonharam vida emprestada. Lembraram-se do movimento nas noites de espetáculo no Rio de Janeiro. Pensaram família, de mãos dadas, em passeio pelo jardim botânico. Juntaram trocados para alugar pedalinho e gargalhar no meio da lagoa esverdeada. Posaram para o lambe-lambe sorridente e gentil. O tempo se ia. Hora de voltar para o barracão de número 158F, no Bairro São Gabriel. Foram de metrô. Sempre gostaram do barulho e do arrocho nos trens de aço. Encararam estranhos, paqueraram e se sentiram queridas pelos homens de olhares curiosos. Já não havia sol na última parada. Da estação, a pé, contaram 18 quadras até a casinha simples de janelas com vista para paredes cruas.

Julim, o neto-filho de Claudete, comia macarrão sem sal com a vizinha grávida. Ficou feliz ao ver a mãe-avó chegar mais cedo do trabalho. Maria sentiu saudades da velha doente e desdentada, deixada na Zona da Mata. Decidiu usar orelhão na farmacinha da esquina. Cartão telefônico na mão, respirou fundo para ter notícias de dona Iracema. Do lado de lá da linha: “Ela morreu faz duas semanas. De pneumonia”, noticiou a voz seca de tia amarga e solteirona. Maria não conseguiu emitir som ou dizer palavra. Apenas devolveu o fone azul ao gancho de metal. A felicidade da tarde rara deu lugar a dor das mais doídas, abafada, sentida. Pensou não voltar para a casa da amiga. Quis abrir porta no vazio e desaparecer no nada. “Bom seria morrer agora”, pensou alto sentada na calçada.

Andou sem rumo e entrou em boteco copo-sujo para beber sozinha. A morte da mãe lhe abriu janela para tempos de criança, quando havia companhia de sangue. Acendeu cigarro de palha e viajou nas cinzas da brasa quase apagada pelos tragos secos da garganta em nó. Enquanto isso, na rodoviária de Vitória, no Espírito Santo, moço evangélico de terno feito no corpo embarcava em ônibus para Belo Horizonte.

(Continua no próximo sábado).
Vida Bandida - 9 de maio de 2009 - Vida Bandida - Jefferson F. coutinho

sexta-feira, 8 de maio de 2009

quarta-feira, 6 de maio de 2009

O poder da criação

Livro reúne depoimentos de autores das mais populares produções da Globo nos últimos tempos. Importância cultural da telenovela será debatida esta noite, no Palácio das Artes





“O espectador brasileiro é muito inteligente e sagaz, sabe que novela é ficção. É mentira dizer que fulano vai virar homossexual por causa do personagem da novela, ou que beltrano vai usar droga porque viu o outro usando na TV”
Alcides Nogueira



“O público não somente é conservador como está mais preguiçoso, mais prático, mais materialista. Ele quer a realidade. Acho que a imaginação se reduziu – não só na televisão, mas, de modo geral, no cinema, no teatro” (Ricardo Linhares)



Jefferson da Fonseca Coutinho

Há meio século na casa do telespectador, novelistas são meio homens, meio deuses. No mundo inventado da imagem e da voz, eles detêm o poder da criação desde o preto e o branco. Fazem nascer, dão rumo na vida de quem quer que seja, fazem matar e morrer. É verdade que, nos últimos tempos, com a era digital, andam cada vez mais assombrados pela baixa audiência. Contudo, se desdobram para segurar o público do que é, ainda hoje, o maior atrativo da TV aberta no país. Autores – História da teledramaturgia (Editora Globo, R$ 72) faz justa homenagem documental ao gênero. São dois volumes que, juntos, somam quase 1 mil páginas de entrevistas com os principais novelistas contratados atualmente da Rede Globo. Três deles, Alcides Nogueira, Ricardo Linhares e Maria Adelaide Amaral, estarão hoje em Belo Horizonte para promover o livro. O encontro será no Grande Teatro do Palácio das Artes, às 19h, com debate com a plateia e sessão de autógrafos.


Os depoimentos reunidos em Autores – História da teledramaturgia oferecem ao leitor um passeio pelos bastidores do mundo mágico da ficção. Falam de glamour, mas também revelam os espinhos da criação enquanto a novela está no ar. Para quase todo o time titular, a produção de seis capítulos por semana, a toque de caixa, impõe um ritmo de trabalho alucinante, com média de 40 laudas por dia. Há também consenso em relação à importância do trabalho em equipe. Além dos coautores, existem grupos de assistentes que colaboram, especialmente, em pesquisa e na elaboração dos diálogos. Quem conhece o trabalho do roteirista de TV sabe que das reuniões de pré-produção à telinha o caminho é longo e, muitas vezes, sofrido.


Por meio da obra, que faz parte do projeto Memória Globo, é possível entender melhor a cabeça de criadores como Silvio de Abreu, que, em 1985, em Guerra dos sexos, reinventou o humor na teledramaturgia, com cena pastelão protagonizada por Paulo Autran e Fernanda Montenegro. Os dois atores, eternizados pelos palcos, lambuzados por tortas na cara. Não menos fascinante, o leitor vai encontrar o universo rural que inspirou as tramas inesquecíveis de Benedito Ruy Barbosa, autor de Pantanal (1990), Renascer (1993) e O rei do gado (1996) e, atualmente, com o remake de Paraíso. Vai mergulhar também no “universo sarcástico e romântico” do Rio de Janeiro, segundo Gilberto Braga, responsável por sucessos como Vale tudo (1988), Celebridade (2003) e Paraíso tropical (2007).


Grande “ficcionista da realidade”, como é chamado por muitos, Manoel Carlos esclarece no livro que jamais teve uma paixão de nome Helena. No entanto, tem marcas profundas deixadas por suas protagonistas: Maitê Proença, Regina Duarte, Vera Fischer e Christiane Torloni. São dele, para citar apenas as três últimas, Laços de família (2000), Mulheres apaixonadas (2003) e Páginas da vida (2006). Glória Perez, criadora das mais bem-sucedidas desde Janete Clair, no ar em horário nobre com Caminho das índias, fala da busca por temas polêmicos e sociais que se sobreponham à ficção. Aguinaldo Silva, Antonio Calmon, Carlos Lombardi, Euclydes Marinho, João Emanuel Carneiro, Miguel Falabella, Walcyr Carrasco e Walter Negrão também falam com liberdade de suas histórias, na literatura, no teatro e no cinema.


A obra é documento para enriquecer bibliotecas. Goste ou não, é raro o sujeito que, em casa ou entre amigos, ainda não tenha sido pego envolvido em assunto de trama de televisão. Com a popularização dos televisores nas duas últimas décadas, o folhetim vem sendo a principal fonte de cultura e entretenimento para milhões de desfavorecidos. O que não deixa dúvida sobre a importância da teledramaturgia no Brasil.


“Nem todos os capítulos de Anjo mau (1997) que escrevi eram bons, porque em novela você escreve seis capítulos por semana. No atropelo, é natural que nem sempre você escreva boas cenas… Na minissérie é diferente. A gente tem possibilidade de fazer um capítulo com mais tempo e cuidado”
Maria Adelaide Amaral

(Fotografias: Cicero Rodrigues/Editora Globo)

sábado, 2 de maio de 2009

Uma rua chamada solidão (parte 2)

"Viu-se endurecida por tempos ruins. Lembrou-se, um a um, dos cinco abortos já provocados. Com as mãos trêmulas, parecia sentir o sexo sangrar em dor na alma"

Maria adiantou o pagamento do mês. Quartinho com água quente, privada e janela. Com vista para a Guaicurus, rua da solidão. Dali pode ver o movimento de curiosos e desfavorecidos que se amontoam na entradinha estreita do hotel. Manteve a porta de madeira barata fechada e repassou a vida como filme. Enquanto isso, em quadrado vizinho, Claudete, a velha prostituta carioca, já mentia prazer debaixo de gordo fedorento.

Com o corpo doído de viagem difícil, sem sono, Maria se deitou na caminha vagabunda e fechou os olhos. Ainda podia ouvir o último suspiro da nordestina de vida fácil, morta há dois dias por bala perdida no Rio de Janeiro. Também, fantasmas, podia ouvir os gemidos dos homens sem nomes que lhe compraram o sexo nos últimos anos. Cabeça às ferroadas, teve saudades da mãe doente deixada na Zona da Mata. Nos domingos de lágrimas secas, costumava falar com dona Iracema. Há mais de mês não tinha notícias da lavadeira aposentada, de pernas feridas e boca desdentada.

Viu-se endurecida por tempos ruins. Lembrou-se, um a um, dos cinco abortos já provocados. Com as mãos trêmulas, parecia sentir o sexo sangrar em dor na alma. Respirou profundamente e dormiu pesado na companhia de assombrações. Horas depois, despertou com os berros em chamado da amiga vizinha. “Pensei que tivesse morrido, mulher!”, foi o que ouviu ao abrir a porta esmurrada. Banhou o rosto e ajeitou o cabelo para almoçar bem em restaurante popular.

Pratos vazios, passearam pelo Shopping Oi para ver o preço das coisas. “Está tudo pela hora da morte”, comentou a mulher experimentada. “Julim queria videogame de aniversário, mas vai ter que esperar”, referiu-se ao neto de 9 anos. Claudete assumiu o rebento da filha logo que ela fugiu com homem velho para o Nordeste. Não gostava de tocar no assunto. Para o mundo, o garoto era seu, com registro em cartório fluminense e tudo. Segredo confiado a Maria, na época em que trabalharam em Copacabana.

Tiraram a tarde para conhecer melhor Belo Horizonte. “Vem comigo, Maria. Tô precisada de dindim, mas hoje a gente vai é andar pela cidade”. Quando chegou na capital mineira, Claudete só pensava no bem do pequeno Julim. “Aqui, vou dar vida decente a este menino, Maria”. Foi caminhando pela Avenida dos Andradas que as duas putas, pela primeira vez, falaram em futuro. Maria se encantou quando viu a Praça da Estação com suas águas apontadas para o céu. Sorriram meninas como há muito não faziam.

De sandálias nas mãos, correram molhadas, molecas, pela fonte do Bulevar Arrudas.

(Continua no próximo sábado)

Arte: George Grosz - Circe, 1927 - Vida Bandida - 2 de maio de 2009 - Jefferson F. Coutinho