Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Honras ao soldado morto

Na salinha triste só a mãe para homenagear o soldado Menor. No caixão vagabundo de tamanho miúdo mal cabia um adulto. O filho da dona Luzia, depois de seis meses de bons serviços prestados ao batalhão de chinelas, agora, submerso em flores comuns, descansava em paz. Pai o Menor nem conheceu. Na família, referência, até havia um tal Washington, irmão mais velho, sumido no mundo. Mas desse nem a mãe para saber mais o rosto. As irmãs pequenas, duas, estavam em casa de parente distante, em comunidade vizinha.

Menor, agora, de algodão nas narinas, até parecia sorrir. Dona Luzia, forte, não deixou rolar lágrima. Olhos secos, já tanta água derramada. Fazer o quê? Sentada ao lado do caixote barato, carinhava os cabelos curtos do corpo revirado pelo IML. Repetia baixinho: “A mãe tá aqui. A mãe veio, meu filho”. Na cabeça de dona Luzia, como num filme sem cor, as lembranças do moleque esperto, que sonhou ser bombeiro. Menor, pequeninho, só falava em combater fogo e salvar afogados. Quem sabe pelo primeiro brinquedo que ganhou na vida: carro vermelho da corporação do bem, com escadinha branca e tudo. Presente de mulher da igreja que, uma vez por ano, aparecia no morro.

Dona Luzia relembrou Menor, correndo, puxando o carrinho de plástico, amarrado num barbante, pelos becos estreitos do lugar. Época de satisfação com o rebento, que aprendeu a ler e escrever antes dos amiguinhos da mesma idade, naquela região. O pirralho também era bom de matemática e sabia a tabuada de cor. “Esse menino ainda vai ser alguém na vida”, dizia orgulhosa, para quem quisesse ouvir e saber. A cozinheira no asfalto, de poucos amigos, já sentia falta dos passeios com o filho. Nos últimos tempos, Menor não parava em casa. Andava ocupado demais com seu exército de calças curtas.

O pequeno Menor não era bom apenas com a tabuada. Revelou-se também grande talento para as armas. Capaz de esfrangalhar alvos a quilômetro, destacou-se em seu batalhão como o melhor atirador do agrupamento. Soldado tão eficiente, não demorou para que assumisse a guarda de comandante e de gente graúda. Mas disso Dona Luzia não sabia. Apenas desconfiava, já que o dinheiro começou a aparecer em casa como por força de milagre. “É trampo bom, coisa de responsabilidade, mãe”, justificava o soldado.

Fim de velório. Dois homens velhos, desdentados, funcionários do cemitério municipal, chegam para fechar o caixão. É hora de adeus. Só a mãe a seguir o carrinho barulhento, enferrujado. Ao descer de Menor – corpo seco de 16 anos incompletos – túmulo abaixo, tiros cortam o céu. Para Dona Luzia, talvez, salva em honra ao soldado morto. Para as redes de notícias, apenas mais uma troca de tiros no Complexo do Alemão.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 29/11/10
Foto: Evandro Teixeira

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O óbvio necessário

Droga barata que já vem arrasando a vida de gente graúda, o crack é mote de espetáculo bastante oportuno, em cartaz em Belo Horizonte. Te quero como queres, me queres como podes faz duas apresentações, amanhã e depois, no Teatro Sesi Holcim. De estrutura simples, limpa, com apoio cenográfico de projeção de vídeo, a produção aposta força bruta em texto e interpretação. Estão na poesia e no elenco o que há de pior e melhor em Te quero..., sob a direção geral de Orlando Orube.

Com pretexto e elenco de qualidade acima da média nas mãos, Orube bem que podia ter evitado o uso de clichês. O foquinho no cachimbo, de cara, por exemplo, é informação esfregada ao espectador. Capricho de mise-em-scène, apenas. O vídeo (ainda que tecnicamente bem realizado), em parte, também não escapa de quadros em composições óbvias ao tema, como mendicância e violência sexual. Está no jogo com o plano da realidade, no congelamento da imagem cenográfica, o melhor uso multimídia. Estabelece-se ali diálogo essencial à proposta mais requintada do diretor.

Percebe-se logo no off de abertura, interpretado por Maria Alice Rodrigues, que Te quero... é trabalho de ator. A atriz sabe bem como tratar a poesia e a enriquece com absoluta sinceridade. Enverga respiros, pausas e pontuações. Aliás, há de constar para registro a entrega das duas atrizes à empreitada. Renata Duarte Dutra, do começo ao fim, joga de igual para igual com Maria Alice. Juntas, completam-se em ação e fazem de tudo para não afrouxar nem mesmo as marcações mais pobres da direção – aquelas em que as duas se movimentam repetidamente, colada uma à outra.

Aos ouvidos, fica a sensação de que o texto de Aristides Vargas, na tradução e adaptação de Orube, é muito melhor poesia que teatro. A trágica história das meninas Catarina e Miranda, alinhavada com idas e vindas ao passado, tem tão mais força em atmosfera poética que, por vezes, chega a soar descolada no palco. Parece inverossímil que duas garotas de rua naquela condição “terminal” façam uso do vocabulário sofisticado trazido à luz. Ainda mais com tamanho empenho para caracterização realista – Renata e Maria Alice chegam a desaparecer completamente em Catarina e Miranda.

Além da performance valente das intérpretes, são muitos os motivos para não deixar passar batido Te quero como queres, me queres como podes. O trabalho de Orube e companhia é de grande contribuição na luta contra o crack. Mensagem obrigatória aos pais, educadores e homens de bem de todas as idades e camadas sociais. Talvez até, quem sabe, a peça contenha o óbvio necessário às vítimas do vício. Só o plano final na parede, imagem-corpo-poema, acrescido de suspiro e intenção, vale o programa e a lição.

Te quero como queres, me queres como podes
Amanhã e sábado, às 21h, no Teatro Sesi Holcim, Rua Padre Marinho, 6, Santa Efigênia, (31) 3241-7332. Ingressos: R$ 24 (inteira) e R$ 12 (meia-entrada).

Jefferson da Fonseca Coutinho - Estado de Minas
Foto: Marcílio Gazzinelli

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O peso das águas

Um caos a terça-feira de temporal em Belo Horizonte e Região Metropolitana. Cenas de destruição na TV e pela internet. Impossível pegar no sono depois de passar a madrugada na pilha por causa da chuva que resolveu pesar as águas. Cidadãos ilhados, carros tragados e passageiros de ônibus em estado de desespero. Verdadeiro cenário de horror na Avenida Cristiano Machado entre os Bairros São Gabriel e Dona Clara.

Os mais importantes sites de notícias de todo o Brasil estavam atentos à forte frente fria litorânea que atinge Minas Gerais. No Portal Uai teve até entrevista com meteorologista do Centro de Climatologia TempoClima/PUC Minas. Félix de Souza disse – vejam só que loucura – que durante a madrugada choveu mais de 60% do volume da chuva esperado para todo o mês de novembro em BH.

Fiquei preocupado porque tenho muitos conhecidos que moram em regiões que, nesta época do ano, são bastante castigadas pelas águas. A situação ainda pode se complicar nos próximos dias, já que a previsão é de muita chuva e tempo instável. O velho Botelho ligou cedo do Espírito Santo. Acompanhou tudo pelos telejornais da manhã. Conversamos um tempão a respeito das chuvas de fim de ano.

Lembramo-nos dos apertos passados com as enchentes do Rio Arrudas, na Praça da Estação, até o início dos anos 1980. O pai reviveu na lembrança, com a voz grave embargada, a vez em que a gente quase foi embora na enxurrada, perto do Parque Municipal. Eu ainda era moleque de colo. Devia ter uns 2 ou 3 anos. "Te segurei firme e pensei: ‘Se tiver que ser agora, vamo junto, filho", disse do outro lado da linha.

Filosofamos também sobre o crescimento das grandes cidades. Para o velho Botelho é a eterna batalha do homem contra a natureza: "Estão transformando o mundo numa grande selva de pedra. É só asfalto, carro e poluição. Uma combinação que custa muito caro ao homem. Não dá para saber até quando a Terra vai suportar tanta pressão. E uma construção atrás da outra.
Carros aos milhares, todos os dias, tomando conta das ruas".

O velho Botelho tem andado indignado com os engarrafamentos. Por isso, decidiu deixar Belo Horizonte para viver em Marataízes. Depois que desligamos o telefone, por umas duas horas, fiquei a rabiscar a caderneta com as ideias voltadas para os desastres naturais. Uma loucura. Pensar que, com o avanço de nossas ambições, estamos fazendo muito mal à mãe Terra.

Mais tarde, depois do almoço, soube que a sobrinha do Osmar enfrentou o maior apuro na Avenida Cristiano Machado. Estava dentro do carro, sendo arrastada pela força da correnteza. Não fosse um sujeito de coragem e bom coração, não estava viva para contar a história. É. Como dormir com tanta goteira? Vou ter que trocar o telhado. No pé da página de papel pautado, depois de riscos e rabiscos, uma última frase: estamos cimentando o planeta e a natureza pede passagem.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 24/11/10

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Dragoberto, o rei do espeto

Não havia churrasqueiro como o Dragão, marido da Tininha. Um especialista na arte, pecados e prazeres da carne. Depois que inventaram a pelada sem bola então, só dava o cinquentão Dragoberto no manejo da espada de aço. "Futebol é pretexto pro golo. Aqui, perna de pau que é perna de pau vai direto ao assunto", discursa o Beiçola, orgulhoso, fundador do Clube do Jacaré - espécie de confraria de funcionários dos grandes frigoríficos da capital. Mas nas peladas sem bola do Clube do Jacaré, nas noites de segunda-feira, Dragoberto corta e tempera apenas. Há muita gente para cuidar da brasa. O sujeito reina é nas festas em casas de família, nos fins de semana.

Tininha, fogosa, mulher e companheira, até gosta de exibir o almoxarife: "Sabe tudo de carne o Dragão. Nem me importo em emprestar o marido para o churrasco na casa dos outros. Ele é tão bom na coisa que seria muito egoísmo da minha parte Junim", comentou certa vez no salão, enquanto recebia um trato nas madeixas. Na agenda do rei do espeto, pelos próximos oito meses, mal havia tempo para comparecer em casa, no Bairro São Geraldo. Para complicar a situação, uma festa puxava outra, que puxava outra e mais outra. Com o Dragão, o boca a boca não falha. "O senhor bem que podia fazer uma carne dessas, qualquer dia desses, lá em casa", implora a mulherada, enlouquecida.

Para a turma do Clube do Jacaré, Dragoberto podia fazer fortuna com tanta demanda. Toda segunda-feira era a mesma história: "No seu lugar eu tava rico, Dragão. Bota preço. Bota preço, meu velho! O Juca, do Assacabrasa, começou assim e hoje tá bem na fita. O cara virou uma potência. Ouvi dizer que já tem Assacabrasa até no estrangeiro. Você é o cara, Dragão! Aqui você só corta e tempera porque já tem muita gente pra girar o espeto. Bota preço, Dragão. Bota preço!", engrossava o coro o presidente Beiçola. Só que o Dragoberto nem pensava cobrar. "É por prazer. Por prazer", suspira em particular, cheirando as mãos.

E não havia preço mesmo. O talento natural do churrasqueiro, almoxarife na carteira de trabalho, fazia ele se sentir útil, importante. No frigorífico, era crachá qualquer. Apenas mais um a carimbar notas e contar volumes por vencimento minguado. Já com as carnes, não. Ali, havia Deus e o diabo entre os dedos do Dragão. Baixinho e barrigudo, entendia charme e privilégio o dom e a virtude. Sentia-se querido, importante: amigo dos homens e desejado pelas mulheres. Não sabia muito bem o segredo. Verdade é que as moçoilas, dos 18 aos 80, se desmanchavam aguadas com os cortes temperados do Dragão.

Diferentemente do que pensa o leitor mais assanhado, sexo o Dragoberto só faz em casa. Debaixo, ao lado ou em cima da Tininha, aos gemidos de "espeta, espeta, Draaagaaão!!!"

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 22/11/10

sábado, 20 de novembro de 2010

A vida num sopro

Lilian Lemmertz – sem rede de proteção é a mais recente biografia lançada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Até o fim deste ano somam-se 300 os títulos da Coleção Aplauso, que, desde 2004, vem contribuindo com importante registro histórico de parte da cultura nacional. Escritores, críticos e jornalistas de várias regiões do Brasil, com experiência na cobertura das artes cênicas e audiovisuais, assinam as publicações. Para contar a história da atriz Lílian Lemmertz (1938-1986) o escolhido foi o pernambucano Cleodon Coelho, que, ao lado de Mauro Ferreira, já havia escrito Nossa Senhora das Oito, em homenagem à novelista Janete Clair.

Em edição especial, com 292 páginas e bom preço (R$ 30), Lilian Lemmertz – sem rede de proteção apresenta com riqueza de fatos e fotos a carreira construída de uma das atrizes mais completas que a cena brasileira conheceu. Das aulinhas de dança no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, ao sucesso estrondoso da novela Baila comigo, pela TV Globo, no início dos anos 1980, ao lado de Fernando Torres, no papel da mãe dos gêmeos interpretados por Tony Ramos. Embora a televisão e o cinema a tenham projetado para todo o Brasil e também para o exterior, foi o teatro a revelar a atriz. E não foi em pecinha qualquer, dessas que se veem aos montes. Lilian Lemmertz subiu aos palcos como intérprete pela primeira vez como Laura Wingfield, em À margem da vida, de Tennessee Williams, dirigida por Antonio Abujamra.

A biografia assinada por Cleodon Coelho mostra que o teatro, então, arrebatou a jovem modelo, musa do chapeleiro Rui Spohr – hoje, famoso costureiro do Rio Grande do Sul. Lilian trocou as passarelas pelos palcos e sets da TV Piratini – onde participou de novelas ao vivo – e não demorou para conquistar São Paulo, convidada pelo casal Walmor Chagas e Cacilda Becker. Quando se mudou para a capital paulista, Lilian já estava casada com o ator Linneu Dias, com quem teve a pequena Júlia Lemmertz. Sobre a estreia da atriz em Onde canta o sabiá, Cleodon registra:

“No dia 24 de outubro de 1963, exatamente um mês após sua chegada, Lilian e Linneu estreavam nos palcos da Paulicéia desvairada. O trabalho era pesado: as peças ficavam em cartaz de terça a domingo, com sessões seguidas aos sábados e, ainda, vesperais. Aquela região do Bexiga era uma espécie de Broadway de São Paulo, tamanha a quantidade de teatros espalhados por suas ruas. Apesar da pouca grana, os artistas vibravam por participar de um momento tão efervescente da cena local”.

O autor de Lilian Lemmertz – sem rede de proteção revela o ritmo alucinado de trabalho da atriz, que emendava um trabalho no outro. Conta ainda que, muito exigente com o que suas peças tinham a dizer, viveu momentos de grande insatisfação com realizações menores. Num depoimento registrado na biografia, Lilian questiona: “Toda vez que eu mudava de produção, o salário dobrava. Mas artisticamente o nível baixava. A cada novo trabalho, tinha menos a fazer. Só desfilava no palco. Teatro é isso?”.

A volta por cima veio com Quem tem medo de Virginia Woolf?, de Edward Albee, com direção e produção de Maurice Vaneau, em 1965. Na peça, Lilian reencontrou o bom teatro ao lado de Cacilda, Walmor e Fulvio Stefanini. O espetáculo teve grande repercussão junto ao público e à crítica de São Paulo e do Rio de Janeiro. Cleodon em Lilian Lemmertz – sem rede de proteção reúne farto registro em recortes de matérias e resenhas que comentam o êxito da montagem.

Cinema e vida

A passagem de Lilian pelo cinema ganhou capítulo: “E era tão linda de se admirar” encabeça 20 páginas de textos e fotos do feliz encontro da atriz com o cineasta Walter Hugo Khouri. Tudo começou em O corpo ardente, de 1966, mas bem que poderia ter sido antes, em Noite vazia, quando Lilian recusou o convite do diretor para protagonizar a trama. “Li o script. Sei que muita gente não acredita, mas achei o papel grande demais pra mim. Para quem nunca fez cinema, era muita responsabilidade. Disse a ele: ‘Me desculpe. Preciso me acostumar com a ideia. Outra vez, quem sabe? Ele achou que eu era uma louca”, revelou a atriz à imprensa, anos depois. Lilian esteve em mais de duas dezenas de filmes. Seu último trabalho na telona foi em Patriamada, em 1984, de Tizuka Yamazaki.

Na biografia de Lilian Lemmertz, estão no fim os trechos mais emocionantes alinhavados por Cleodon Coelho. Menina ainda, aos 48 anos, ida num sopro, vítima de infarto, a atriz partiu em dia de Copa do Mundo. Foi em 5 de junho de 1986, entre dois jogos da seleção de Telê Santana. “Os bons serviços prestados no teatro, no cinema e na TV fizeram de Lilian um dos maiores nomes de sua geração. Como lembra Antonio Abujamra, o homem que a lançou no ofício de representar, ela se jogava sem rede de proteção. E como foram belos os saltos. De Tennessee Williams a William Shakespeare, de Edward Albee a Ivani Ribeiro, de Walter Hugo Khouri a Manoel Carlos”, escreve Cleodon.

Entre as mais tocantes homenagens impressas à atriz, o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu publicou em O Estado de S. Paulo: “Agora, no fim da noite de domingo, longe do colo morno do amor, a morte visita o apartamento e fico pensando em como recuperar minha imortalidade após este próximo ponto final, preciso dela, amanhã de manhã. Quando o mundo continuará igual. Só que sem Lilian. E, portanto, um pouco mais feio, um pouco mais sujo. Mais incompreensível, e menos nobre”.


Lilian Lemmertz – sem rede de proteção
De Cleodon Coelho. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 292 páginas. R$ 30


Pensar - Estado de Minas - Jefferson da Fonseca Coutinho

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

"A vida gosta de quem gosta da vida"

Ainda não pude ir ao cinema ver A suprema felicidade, obra do cineasta e jornalista Arnaldo Jabor. O que sei é que críticos de todo o Brasil caíram de pau. Não podia ser diferente. O camarada, com seus comentários inflamados na TV e nos jornais, arranjou monte de desafetos. Criticá-lo é vitrine de dar gosto para muita gente. Em casos assim – o crítico do outro lado da pena –, é o que chamam telhado de vidro. Agora é aguentar, Jabor. Não tem remédio. Mas, sinceramente, não tenho nada contra o moço. Para falar a verdade, gosto bastante de sua escrita. Lá em casa, ele é bastante respeitado. Violeta e eu já até saímos de casa duas vezes para assistir A suprema felicidade, mas não teve jeito. Imprevistos. Coisas que acontecem. No próximo fim de semana, sem falta, vamos lá conferir o filme. O Chico e a Neidinha disseram que é uma beleza.

Aliás, vale deixar registrado neste quintal, o casal amigo, sábado à noite, só falou no filme do Jabor. Foi aniversário da Sueli, lá no Bairro Glória. Festão para barão nenhum botar defeito. A turma reunida, antes do bolo, só deu A suprema felicidade. O Chico até que estava empolgado, mas a Neidinha, amigo leitor… só repetia uma fala: "A vida gosta de quem gosta da vida". O Jabor, com essa frase, acertou o coração da minha amiga em cheio. O olho da moça estava que era puro brilho ao repetir e repetir. É claro que não podia deixar de sacar minha caderneta e tomar nota:

"Gente, olha que tudo: ‘A vida gosta de quem gosta da vida’. O personagem do Marco Nanini fala isso com a boca cheia. Na hora que eu ouvi isso, sei lá, deu um treco, uma coisa, cutuquei o Chico na hora. Eu sempre pensei assim… num é, Chico!? A gente sempre conversou sobre isso. Só que com outras palavras, porque a gente não sabe dizer o que a gente sente que nem o Arnaldo Jabor. ‘A vida gosta de quem gosta da vida, claro!’. Olha só, gente: a quantidade de gente que a gente conhece que não ta nem aí pra vida. Tudo gente infeliz, que só sabe é reclamar e reclamar… credo. Não dou conta. Nunca dei. Tenho a maior preguiça de gente assim. Na nossa casa, a coisa pode tá difícil do jeito que for, a gente gosta da vida. A gente gosta muito de viver. Dinheiro? Depois a gente dá jeito. A saúde em ordem é o que interessa. É preciso saber viver a vida. Tem gente que não sabe nem quer aprender".

Foi uma alegria sentir o entusiasmo da Neidinha com a vida. "Viver é uma festa", brindou o Chico, erguendo a caneca de cerveja. Foi uma farra das boas, como há muito não se via. A aniversariante era a Sueli, mas quem comandou a noite foi a Neidinha. Não passou dos 27 pontos no karaoquê, mas a moça era só alegria. E no fim de cada canção ela emendava: "A vida gosta é de quem gosta da vida". E tome palma. Sueli e Neidinha são unha e carne. Primas. Crescidas e criadas na mesma rua. São até parecidas, igualmente bonitas. Só no trabalho que cada uma tomou um rumo: Sueli é motorista e Neidinha, professora.

Fim de festa, já na madrugada de domingo, formou-se coro comandado pelo casal amigo: "Felicidades, Sueli! A vida gosta de quem gosta da vida"!

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 17/11/10

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Minibiblioteca do ator


HISTÓRIA MUNDIAL DO TEATRO (Margot Berthold)

Com mais de 400 ilustrações, Berthold aborda o teatro primitivo, das civilizações islâmicas, indo-pacíficas, da China, do Japão, da Grécia, de Roma e Bizâncio; analisa a arte do palco da Idade Média, da Renascença e do Barroco; passa pela era da cidadania burguesa, e do naturalismo até o presente, na companhia de vasta bibliografia.


DICIONÁRIO DE TEATRO (Patrice Pavis)

Obra conhecida em várias partes do mundo, que enriquece enormemente a nossa bibliografia especializada. Trata-se de valioso instrumento para o ensino e o conhecimento do teatro. Em seus 560 verbetes, traduzidos por professores e pesquisadores do campo, são sintetizadas e discutidas as grandes questões da dramaturgia, da encenação, da estética, da semiologia e da antropologia da arte dramática.


A PREPARAÇÃO DO ATOR (Constantin Stanislavski)

O livro difunde idéias que transcendem interesses meramente profissionais ou de estudiosos dos problemas do teatro. É, na verdade, o romance da fascinante aventura do homem em busca de conhecimento maior de si mesmo e de seu semelhante.


A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM (Constantin Stanislavski)

Neste livro, a ênfase recai na atuação como arte e na arte como a expressão mais alta da natureza humana. Sua volta constante ao estudo da natureza humana é o que distingue aquilo que se tornou conhecido como o ‘Sistema Stanislavski’.


A CRIAÇÃO DE UM PAPEL (Constantin Stanislavski)

A criação de um papel é leitura obrigatória para todos os profissionais e estudantes de teatro. Stanislavski trata do trabalho do ator no desenvolvimento de um papel e de problemas que o intérprete poderá enfrentar no palco. Faz avaliações de cenas, estuda as atitudes dos personagens em relação ao texto e ao contexto das obras.


MANUAL MÍNIMO DO ATOR (Dario Fo)

O Manual de Dario Fo aponta, de forma didática e divertida, como construir personagens, cenários e o texto teatral. O autor escreve também sobre a importância da improvisação.


O ATOR INVISÍVEL (Yoshi Oida)

Neste surpreendente manual prático da arte de representar, o ator, diretor e professor japonês Yoshi Oida – integrante desde 68 da companhia teatral de Peter Brook, em Paris –, demonstra toda a amplitude e profundidade de sua experiência das técnicas de representação, do Oriente e do Ocidente, do tradicional e do experimental, do texto escrito e do improvisado, do cinema e do teatro, do corpo e da voz.


A ARTE DO ATOR (Jean-Jacques Roubine)

Ao caracterizar a arte do ator hoje, em toda a sua diversidade, este livro não dispensa referências históricas que chegam ao teatro grego, à commedia dellarte e à cena romântica.


O TEATRO E SEU DUPLO (Antonin Artaud)

Ensaio em que Artaud desenvolve a ideia da necessidade, para o teatro moderno, de reencontrar a dimensão metafísica presente em tudo o que é mistério.


IMPROVISAÇÃO PARA O TEATRO (Viola Spolin)

A bíblia dos educadores em jogos dramáticos. Manual útil para amadores e profissionais na arte do teatro. Dispensa comentários. É ler para aprender.



LEIA MAIS:


Barba, Eugenio. A Canoa de Papel. São Paulo, Ed. Hucitec, 1994.

Grotowski, Jerzy. Em Busca de um Teatro Pobre. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1987.

Kusnet, Eugênio. Ator e Método. Rio de Janeiro, Serviço Nacional de Teatro - Ministério da Educação e Cultura, 1975.

Lewis, Robert. Método ou loucura. Fortaleza, Edições UFC; Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1982.

Meyerhold, Vsevolod. O Teatro de Meyerhold, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1969.

Barba, Eugenio. A Arte Secreta do Ator. São Paulo, Ed. Hucitec, 1995.

Barba, Eugenio. Além das Ilhas Flutuantes. São Paulo, Ed. Hucitec, 1991.

Boleslavski, Richard. A Arte do Ator. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1992.

Laban, Rudolf. Domínio do Movimento. São Paulo, Summus Editorial, 1978.

Roubine, Jean-Jacques. A Arte do Ator. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1987.

Serrano, Raúl. Tesis sobre Stanislavski en la educación del actor. México, Ed. Escenología, 1996.

Stanislavski, Constantin. Minha Vida na Arte. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1989.

Strasberg, Lee. Um Sonho de Paixão. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1990.

Appia, Adolphe. A Obra de Arte Viva. Lisboa, Ed. Arcádia, s/ data.

Aristóteles. Poética. São Paulo, Ed. Abril Cultural, 1979.

Benjamin, Walter. Obras Escolhidas, vol. I - Magia e Técnica, Arte e Política,São Paulo, Ed. Brasiliense, 1993.

Bertherat, Thérèse. O Corpo tem suas Razões. São Paulo, Martins Fontes, 1977.

Bornheim, Gerd. Brecht, a Estética do Teatro. São Paulo, Ed. Graal, 1992.

Brook, Peter. A Porta Aberta. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1999.

Brook, Peter. O Ponto de Mudança. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1994.

Brook, Peter. O Teatro e seu Espaço. Petrópolis, Ed. Vozes, 1970.

Carvalho, Olavo de. A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci. Rio de Janeiro, IAL & Stella Caymmi, 1994.

Correa, Rubens & outros. Artaud, a nostalgia do mais. Rio de Janeiro, Numen Editora, 1989.

Craig, Edward Gordon. Del Arte del Teatro. Buenos Aires, Libreria Hachette S.A., 1957.

Diderot, Denis. Paradoxo sobre o Comediante - in Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultura, 1979.

Eliade, Mircea. O Mito do Eterno Retorno. Lisboa, Edições 70, 1978.

Feldenkrais, Moshe. Consciência pelo Movimento. São Paulo, Summus, 1977.

Kantor, Tadeusz. Le Théâtre de la Mort. Lausanne, Ed. L’Age de l’Homme, 1977.

Meyerhold, Vsevolod. écrits sur le Théâtre (4 volumes). Lausanne, La Cité - L’Age d’Homme, 1980.

Oida, Yoshi. Um ator errante. São Paulo, Beca Produções Culturais, 1999.

Ostrower, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda., 1977.

Pronko, Leonard C. Teatro: Leste & Oeste. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1986.

Ripellino, A. M. Maiakóvski e o Teatro de Vanguarda. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1986.

Ripellino, A. M. O Truque e a Alma. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1996.

Roubine, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral - 1880-1980. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982.

Teixeira Coelho Netto, José. Em Cena, o Sentido. São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1980.

Teixeira Coelho Netto, José. Uma Outra Cena. São Paulo, Ed. Polis, 1983.

Vakhtangov, Eugênio B. Lecciones de Regisseur. Buenos Aires, Editorial Quetzal, 1987.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Antes que o amanhã aconteça (final)

Menina Ariela sacou da bolsa o celular cor-de-rosa e pediu pizza marguerita. Na espera, pai e filha se olhavam, simplesmente. Havia muito entre eles. No silêncio que diz à beça, laço remoído de passado, infelicidade e ausência. “Diabos! Como está parecida com a mãe”, pensava Ananias ao ver a filha ajeitando os dois únicos pratos da quitinete sobre a mesa. O policial aposentado viu na filha a ex-mulher, grande amor e dor de cabeça. O entregador chegou logo com a massa de excelente qualidade. Ariela fez questão de pagar com dinheirinho ganho à tarde, suado nos quadris.

Comeram com gosto. Ananias se rendeu ao sabor em boa companhia. Há dias sem sair de casa, passava apenas a conhaque, café amargo e miojo. Ariela disparou a falar coisa com coisa sem tocar no tempo presente. Também não fez perguntas nem tocou assunto sério. O pai, tímido, até esboçou sorriso seco com comentário da menina: “O senhor ainda tem o mesmo cheiro. É bom”. Ariela, quando pequeninha, vivia a brincar com o desodorante do pai. Um papo puxou outro e, no avanço da madrugada, Ananias insistiu para que a filha ficasse. A menina adormeceu na cama do velho, que não pregou o olho. Trouxe à cena garrafa de conhaque escondida e viu passar a vida no gargalo. Olhou para o corpo feito da filha, de 20 anos incompletos, e ficou a remendar histórias.

Com o sol a lamber as vidraças do JK, Ariela acordou com o pai transtornado, irreconhecível. Ananias havia revirado a bolsa e o celular da filha enquanto ela dormia. Imaginou coisas e, tomado por ideias ruins, construiu teorias de traição. A menina se ofereceu para passar café e foi sabatinada pelo velho. Para a discussão foi um passo. Das perguntas e ofensas às agressões: Ananias retirou do armário taco velho de sinuca, quebrou-o violentamente na mesa e partiu para cima da menina, que conseguiu recuperar a bolsa, abrir a porta e ganhar o corredor. “Não sou mais seu pai, vagabunda! Some da minha vista! Some!”. Daí, o amparo da vizinha.

De volta ao presente, no apartamento da cantora Dorinha, galopam os ponteiros na velocidade do pensamento. As duas mulheres já se entendiam amigas e confidentes. Foi o cão Raul, o schnauzer, o primeiro a reagir ao estampido vindo da quitinete ao lado, emprestada por conhecido ao velho Ananias. Dorinha e Ariela correram para a porta fechada do ex-policial. “Pai”, foi só o que deu conta de soprar a filha com a garganta embargada. Do lado de dentro, ao som de “Perfídia” tocado na vitrola por um tal Trio Irakitan, Ananias sangrava despedida, caído, com um 38 na mão.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 15/11/10

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O Enem e outras trapalhadas

Muito triste toda essa avacalhação em torno do 14º Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Tenho amigos e filhos de amigos que estão muito chateados, pois passaram horas do último fim de semana debruçados em cima de 180 questões para, agora, assistir a esse carnaval. Sem falar no tempo de dedicação, preparo e estudo para as provas. O Enem é assunto muito sério. Não pode ser tocado de maneira tão irresponsável. Não pode ser tão difícil assim, já que, por exemplo, o Brasil é referência no trato das urnas eletrônicas em tempos de eleição. Mesmo que uma coisa pareça não ter nada a ver com a outra, são assuntos de responsabilidade do poder público e que mexem com a vida de milhões. Ao que parece, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), responsável pelo Enem, devia tomar umas aulas com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Se o Inep levasse o Enem a sério como a Camila, moradora do Bairro Sagrada Família e moça muito querida, a história seria outra. Camila, que acaba de completar 18 anos, até adoeceu na semana que antecedeu às provas. Passou dias com febre, inflamação na garganta e preocupação. Há meses, desde o início do ano, deixa de lado o lazer para se dedicar aos estudos. Pretende cadeira nas salas de Engenharia química da UFMG. Centrada, orgulho dos pais, há tempos vem se preparando para a universidade. Só para o amigo leitor ter uma ideia, no ano passado, treinante, conseguiu passar no vestibular da Federal. Queria ganhar experiência, saber como é o vestibular. Enquanto outros jovens de sua idade estão na balada, Camila estuda. Não por pressão ou cobrança da família. Estuda porque aprendeu cedo que é esse o caminho dos homens de bem. Esse Inep parece ter esquecido isso. Talvez se o instituto consultasse a menina Camila reaprendesse algo sobre educação e dignidade.

De volta à universidade, estou muito ligado aos estudos. Vejo de tudo. Outro dia, Osmar e Sueli estavam discutindo sobre as diferenças entre o jovem que estuda e o que não quer saber da escola. Rendeu boa meia hora o assunto. Fiquei no canto, calado, só ouvindo e tomando nota (os amigos já até estão acostumados com a minha mania de anotar tudo). Depois, em casa, fui reler e refletir sobre o assunto. A Sueli tem toda razão quando entende que o gosto pelo estudo não está ligado diretamente com os recursos financeiros da família. Está assim de rico que não gosta de estudar e pobre que tem gosto pelos livros. Conheço gente assim aos montes.

O dinheiro ajuda, é verdade. Mas, sabemos todos, não compra postura. Buscar conhecimento, para mim, é questão de postura. Tem gente que leva boa parte da vida para entender isso. Não conheço uma só pessoa de pouco recurso que, querendo de verdade, não tenha conseguido estudar e avançar na vida. E não vale dizer que não pôde estudar porque teve que começar a trabalhar cedo. As salas de aulas de todo o Brasil estão abarrotadas de trabalhadores que se desdobram em três turnos. O segredo é a vontade. Quando não há vontade, postura, o sujeito se atrapalha na vida. Como o Enem hoje, grande avacalhação, vexame nacional.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 10/11/10

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Os primeiros passos de Barrault

Em tempos de estudo (sempre) – é assim o caminhar do ator –, muitos textos me ganharam a cabeceira. Jean Louis Barrault (1910-1994), mímico francês, homem de teatro, deixou escrita de grande valor. O texto que segue é um trecho do capítulo 2 das Réflexions sûr le Théâtre, onde Barrault fala de seu encontro com Étienne Decroux e da pesquisa que ambos desenvolveram sobre o mimo. (In “Réflexions sûr le Théâtre”, Jean-Louis Barrault, Jacques Vautrain Editeur, Paris, 1949, págs. 34-35. Tradução de Roberto Mallet). Na foto, Michel Simon e Barrault (D), em Drôle de drame ou L'étrange aventure de Docteur Molyneux.


Sobre o Caminhar, por Jean-Louis Barrault


"Não há nada mais difícil do que caminhar e pode-se descobrir o homem pela maneira como caminha. O estudo excessivo do caminhar me deformou tanto que levei bem uns dez anos para reencontrar um caminhar normal… (e ainda hoje recaio nisso!…). Há um tempo atrás, um dos maiores cozinheiros da França confiou-me que um dos pratos mais difíceis de se fazer é: um ovo ao prato. Trata-se de cozinhar a gema ao mesmo tempo que a clara. Isto só pode ser feito com uma chama tão fina quanto a de uma vela. De fato são as coisas mais simples as mais difíceis de realizar.


Saber ler, por exemplo. Saber ler exatamente aquilo que está escrito, sem deixar escapar nada do que está lá e, ao mesmo tempo, sem acrescentar nada. Saber captar exatamente aquilo que está contido nas palavras que se lê. Saber ler! Saber escrever também! Saber fixar sobre o papel o seu pensamento com precisão, com o auxílio de palavras que não o deformem em nada e que possuam o som justo, o mesmo som, exatamente, que se ouve no mesmo instante ressoar na cabeça. Saber escrever!



Saber caminhar!


Aquele homem caminha como se esperasse que seus pés o conduzam. Ele permanece vertical e espera. Seus pés, um após outro, cegamente, deslocam-se para a frente e apóiam-se sobre os calcanhares. E somente quando o homem se sente “assegurado” assim pelo calcanhar é que ele completa seu passo. Aquele homem não caminha. Ele se deixa conduzir pelos seus pés. Aquele outro tem pés estrábicos, o que nós [os franceses] denominamos de pés en dedans. Aquele outro, tem as pernas afetadas, os bailarinos por exemplo. As pernas dos bailarinos parecem experimentar uma tal alegria em se deslocar que parecem pasmar-se no ar. O homem, acima delas, as segue.


Ora, um homem que caminha é um TODO que se desloca. O caminhar não tem o seu centro nem na ponta do pé nem no calcanhar. Ele tem o seu centro à altura do peito.


É o peito, sustentado por essa flexível coluna vertebral, que deve exprimir uma vontade de deslocar-se. E sob essa vontade de deslocar-se, as pernas desdobram-se.


É digno de nota que todo ponto do corpo sobre o qual nos concentramos (sob a condição de haver uma concentração suficiente) atrai a atenção de quem nos observa. Como se esse ponto fosse luminoso.


O homem que caminha não deve atrair a atenção para os seus pés, nem para os joelhos, mas para a frente do peito; é, se assim posso me exprimir, o peito que dá o primeiro passo. O homem que caminha tomou a decisão de se deslocar; e o que ele desloca primeiro é o centro dele mesmo; essa caixa mágica e oca graças à qual ele respira e que o sustém, como um emblema de vida, pela haste mais flexível do mundo: sua coluna vertebral. Primeiro o homem todo se compromete; ele acredita em si mesmo; ele vai para a frente, confiante no reflexo de suas pernas. E suas pernas seguem-no, servem-no; elas ondulam sob ele. É um homem que se desloca e não um homem que segue seus pés. O ponto mais avançado de seu peito não deve jamais deixar-se ultrapassar pela ponta do pé que está à frente.


Eis ao menos o caminhar em estado puro.


Sabendo-se isso todos os caminhares são permitidos. Cada homem tem seu caminhar pessoal que o revela sem que ele o saiba. Cabe ao ator trabalhar o caminhar de seu personagem. Mas esse caminhar puro, como o saber ler, como o saber escrever, como o saber cozinhar um ovo ao prato, é a coisa mais difícil de executar".

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Antes que o amanhã aconteça (9)

No retrocedor do tempo, na carona dos ponteiros que contam passos, voltamos as horas: meia-noite. Ariela toca a campainha do apartamento do pai. Ananias assiste a programa qualquer de televisão. Irrita-se sem saber quem poderia ser tão tarde. Mal pôde crer ao identificar a filha do outro lado do olho mágico. Parou para pensar por instante, antes de abrir a porta. Por fração de segundo, pensou não atender. A saudade envergou a vergonha do velho, que girou a tetra-chave. Pai e filha frente a frente, dois tristes anos passados.

Primeiro foi o silêncio. Depois, abraço e choro sem lágrima. Ele deixou a passagem da porta livre, em convite, para que a menina entrasse. Abaixou o som da televisão, sentou-se no antigo sofá em couro de dois lugares, e, com os olhos e uma das mãos no estofado apenas, ofereceu espaço ao seu lado. Das duas partes, por ausência e acontecimentos, havia muito a ser dito. “Quer um café? Vou passar pra você”, foi só o que ele conseguiu dizer. Levantou-se desconcertado e deu meia dúzia de passos até a cafeteira sobre a pia, enquanto Ariela observava o ambiente.

A quitinete não oferecia nenhum conforto. Cortinas desbotadas e uma cama de solteiro ao fundo, ladeada por cadeira improvisada como criado-mudo. Um abajur barato, com fio branco dependurado, emendado por fita isolante. Algumas revistas Seleções amareladas e uma bíblia. Uma cômoda com seis gavetas servia de suporte para o pequeno aparelho de TV, com antena interna. Ao lado do sofá, mesinha de canto com vitrola e alguns discos de vinil, com músicas românticas, dessas que tocam em bailes para a terceira idade. Chumbada na parede, bem próxima à pia, tábua com dobradiças, armada sobre as duas banquetas de madeira escura. Era tudo o que havia no cômodo com um armário embutido. Foi o velho a trazer palavra e quebrar o gelo:

– Ainda tá meio improvisado, mas é por uns tempos. É só até o inquilo entregar a casa lá do Bairro Padre Eustáquio. Aqui é de um amigo da polícia. Estava fechado e ele me emprestou até as coisas se ajeitarem.

– Simpático. Fica perto de tudo. Bom que o senhor pode ir a pé pro mercado.
– Eu tenho ido. Às vezes passo o dia todo lá. Você ainda gosta de café água-rala?
– Tanto faz. Aprendi a tomar café de qualquer jeito.
– Você tá com fome?
– Um pouco.
– Tem miojo. Posso fazer pra você.
– Prefiro pizza. Vou pedir para nós dois. Posso?
– Você ainda gosta dessas porcarias?
– Gosto. Tenho o telefone de uma pizzaria que fica pertinho, na Avenida Amazonas. Eles entregam até tarde. Conheço o dono de lá. O senhor quer de quê?

(Continua na próxima segunda-feira)

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 8/11/10

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Boa sorte, Brasil!

Agora é torcer por Dilma Rousseff, primeira mulher presidente do Brasil. Aqui, desço a caneta no fluxo do pensamento, assim, cidadão, desenhador de letrinha profissional. E, embora tenha pensamentos a rodo para colocar no papel, hoje, não posso deixar de deixar registrado o meu desejo de boa sorte ao país, terra em que vivo, estudo e trabalho para dar conta de oferecer a melhor educação possível aos meus filhos. Cuidar da família não é tarefa nada fácil, todos sabemos. Perdoe-me o amigo leitor – desde já deixo o pedido de desculpas – se faço nossa Bandeira dois desta quarta-feira parecer pretensiosa. Talvez até seja um pouco mesmo – é bem possível que não consiga fazer diferente com o tema em questão. Sem mais delongas, vou ao assunto:

Tem a ver com família. Imagino nosso país uma grande família. E vejo o Presidente da República como o chefe de casa. Aquele que precisa dar exemplo, que pensa em ajudar até quando se faz duro, definitivo. Que não dá nada de mão beijada, por assistir simplesmente. Que pretende abrir caminhos para que seus filhos andem com as próprias pernas. Afinal, são mais de 190 milhões de brasileiros à espera – no mínimo – de oportunidade e justiça. Sou pequeninho demais para imaginar, do terço, a reza – em boca miúda – que rola nos bastidores de uma eleição para presidente. Conchavos, alianças, concessões, negociatas mil. Parece-me que política é assim. No entanto, acredito no homem. “O homem é bom”, é o que sempre ouço do velho Botelho, avô, pai, grande liderança da minha pequena família.

É. O homem é bom. O que o estraga, muitas vezes, são as más companhias. É uma verdade – pode ser. Na praça, conversamos bastante sobre isso. Já o Irineu pensa diferente. Diz que o homem não presta. Os que se salvam são bem poucos, raríssimos. Para o amigo de batente basta que o sujeito, no poder, tenha uma oportunidade de obter favorecimento para não pensar duas vezes e sair da linha. “Umazinha só, Josiel. Tenho certeza. Este é o país da vantagem. É só gente querendo levar vantagem. Só para você ter uma idéia, até um conhecido meu, gente boa até, que eu acreditava ser diferente, pisa na bola. Fiquei muito decepcionado. Soube que ele é chegado numa falcatrua para não pagar imposto. E que até se gaba disso. Vê se pode? Anota isso aí, porque eu sei que você vai querer escrever mesmo”, ditou-me, no domingo, o Irineu.

Mas a intenção hoje não é falar de quem sai da linha. É, unicamente, a de desejar boa sorte ao Brasil nas mãos dessa ilustre dama, cheque em branco assinado pelo povo brasileiro. Verdade seja dita a presidente eleita derrotou um candidato insosso, fraquíssimo. Ganhou por falta de melhor opção. Ouvi muito sobre política nos últimos meses. Na grande maioria das vezes a conversa era sempre a mesma: “O negócio e votar na candidata do Lula. Não tem outra opção mesmo, né!?” Nem dá para contar a quantidade de vezes que tenho isso anotado nas cadernetas. Nada contra. Tudo a favor. Do povo brasileiro, é claro. Agora, é esperar para ver e torcer para que tudo dê certo. Avante, Brasil! O homem é bom. Será?
Bandeira Dois - Josiel Botelho - 03/11/10

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Antes que o amanhã aconteça (8)

Por tudo que Ariela contou sobre a mãe, Dorinha foi arrebatada ainda mais pelo passado da ninfa. Sentiu-se no dever e na obrigação de retribuir na mesma moeda da sinceridade:


– Estou de cara com você, menina. E eu achando que fui a única a ter problemas sérios com a família... Sua história é tão dura e, talvez, até pior que a minha. Nem sei.

– Sua mãe também é assim, da pá virada?

– Mais ou menos. O caso dela é outro. Foi com a bebida. Matou o meu pai de desgosto. Lembro-me, em diversas ocasiões, de vê-lo sair para buscá-la nos bares da minha cidade, no interior. Ela tomava todas, até cair. Todos os dias. Bebia, fumava feito chaminé e vivia entre gente que não prestava. Aquilo foi matando meu pai aos poucos. Um dia, ele simplesmente não amanheceu.

– Como assim?

– Morreu dormindo.

– Sinto muito.

– Eu tinha acabado de fazer 15 anos. Foi na semana do meu aniversário. No velório dele, na sala da minha casa, minha mãe, bêbada, aprontou o maior escândalo. Meu avô, pai do meu pai, a expulsou de casa e mandou que ela sumisse da cidade. Aí, ela sumiu. A gente nunca mais teve notícia. Uns dizem que ela morreu. Outros, que ela, envergonhada, saiu do país para trabalhar com uma prima nos Estados Unidos.

– E você e seus irmãos?

– A gente foi criado na fazenda desse meu avô.

– Eu não me lembro muito dos meus avós. Por partede mãe, que eu saiba, eu só tive vó. Os outros morreram quando eu ainda era criancinha.

– Minha avó morreu no ano passado e o meu avô tem andado sem saúde.

– Entendo. O meu pai também, pelo que me disseram na delegacia, não anda muito bem. Parou até de pescar com os amigos. Ontem à noite, tentei saber o que estava acontecendo, mas ele desconversou.

– Você dormiu aqui no JK, na casa dele?

– Dormi. Cheguei já era quase meia-noite. Ele me recebeu bem. A gente pediu pizza, conversamos até. Ele quis que eu ficasse e agora, pela manhã, estava irreconhecível. Eu estava fazendo café para ele quando começamos a discutir.

No retrocedor do tempo, na carona dos ponteiros que contam passos, voltamos as horas: meia noite. Ariela toca a campainha do apartamento do pai.

(Continua na próxima segunda-feira)

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 01/11/10