Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Tem Van Gogh no Teatro da Assembleia


Neste fim de semana, "Vincent e O comedor de batatas" se apresenta no Teatro da Assembleia (Rua Rodrigues Caldas, 30 - Bairro Santo Agostinho - Tel. 2108-7826). Hoje (sexta) e amanhã (sábado), às 21h, e domingo, às 19h. Boa oportunidade para quem ainda não viu nosso espetáculo inspirado na obra do pintor Van Gogh. Com alegria, divido a cena com dois bons companheiros: Emílio Zanotelli e Ferdinando Ribeiro. Os ingressos custam R$ 30 (inteira); R$ 15 (meia) e R$ 10 (convênios). Apareçam!

Ano passado, no jornal Estado de Minas, por ocasião das comemorações dos 15 anos de "Vincent", João Paulo, editor de Cultura, escreveu:


Luz e sombra

Programa duplo reúne as peças Vincent e O comedor de batatas, tendo como traço de união o destino Van Gogh e a busca do sentido da vida

Van Gogh é um personagem único da história da arte. Amado por milhões de pessoas em todo o mundo, suas principais obras são hoje referência na pintura ocidental. O artista holandês é também um dos casos mais marcantes no longo caminho do sofrimento humano: não obteve reconhecimento em vida, frustrou-se nos amores, na religião e na família. Além disso, o pintor de dos girassóis foi também autor de uma das correspondências mais profundas e intensas de seu tempo. Juntar todos esses aspectos é o objetivo do monólogo Vincent, do ator e diretor Jefferson Coutinho, que completa 15 anos de trajetória.

Para marcar a data, a peça ganha apresentação especial, em programa duplo, com a montagem O comedor de batatas, do mesmo diretor, com os atores Ferdinando Ribeiro e Emílio Zanotelli. O nome é uma referência a um dos mais conhecidos trabalhos de Vincent Van Gogh. Ao reunir as duas peças em espetáculo único, os artista pretende criar um diálogo entre os textos, as técnicas expressivas e, sobretudo, responder à pergunta que perseguiu Van Gogh durante toda sua vida: “Existe algo dentro de mim?”.

Vincent é composto de cartas que o pintor escreveu ao irmão Théo. Van Gogh vivia momento de grande incerteza, solidão e melancolia. Sua correspondência é um documento humano, mas de grande força literária. “Comecei a decorar as cartas e vi que era possível fazer teatro a partir delas. Algumas pessoas diziam que era chato, que nada acontecia. Não acontecer nada, na realidade, foi um ponto de partida”, conta Jefferson.

As cartas de Van Gogh se tornaram leitura de cabeceira do ator, que foi memorizando dezenas delas até perceber a necessidade de estruturar o espetáculo. Novos elementos foram chegando: o texto de Antonin Artaud (Van Gogh e o suicidado da sociedade); algumas ideias foram se tornando obsessivas, como a noção de fuga e de amor; e o espetáculo foi sendo desenhado de dentro para fora. “Tinha nas mãos um teatro de bolso, de 35 minutos. Fiquei um ano fazendo no bar do Paco Pigale ,muita vezes para uma única pessoa”, lembra.

Se engana quem acha que se trata de um teatro triste, para poucos. Van Gogh atrai interessados de todos os lugares e idades. “A peça tinha potencial para se tornar objeto de estudo. Fiz um trabalho com rede particular de ensino e depois com escolas públicas. Apresentava o espetáculo e debatia com os alunos. Foram mais de 100 mil alunos em Minas e no Espírito Santo. Em algumas ocasiões, apresentei para mais de 1,2 mil pessoas. De um a 1,2 mil, sempre com a mesma emoção”, garante o ator.


ABSURDO E REALIDADE

A outra montagem que compõe o programa nasceu de um personagem de um quadro de Van Gogh. Mas O comedor de batatas é trabalho de ficção, com toques de teatro de absurdo, com influências de Beckett e Ionesco. A estrutura é semelhante, o clima igualmente intimista e perpassa a mesma sensação de ausência de saída. A proposta de fusão dos dois espetáculos parte dessas identidades. Quando termina O comedor de batatas é hora de Vincent entrar em cena.

Jefferson da Fonseca credita ao monólogo os melhores momentos de sua vida de ator. “Em algumas ocasiões o personagem perdeu os limites do palco. Em Curitiba, depois de uma apresentação, fui convidado por um grupo de punks para ir com eles beber na noite da cidade. O convidado foi Vincent, que foi caracterizado e desafiado a improvisar sobre a realidade que enfrentava”, conta. Para o ator, foi mais uma das lições de Van Gogh. “Vincent é uma aula de humildade.”, sintetiza.

O ator defende atualidade da peça exatamente nessa busca de relativizar os valores. Assim como o pintor não sabia qual seria seu destino, os homens e mulheres de hoje estão perdidos na confusão de valores. “Existe algo dentro de mim?”: Vincent e O comedor de batatas são peças para quem faz perguntas.


VINCENT E O COMEDOR DE BATATAS
Com Jefferson da Fonseca Coutinho, Ferdinando Ribeiro e Emílio Zanotelli. Sexta e sábado, às 21h; domingo, às 19h, no Teatro da Assembleia, Rua Rodrigues Caldas, 30, Santo Agostinho, (31) 2108-7826). Ingressos: R$ 30 (inteira); R$ 15 (meia-entrada); R$ 10 (estudantes de teatro).

Fotos:
Allan Calisto e Marlos Ney Vidal

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Amigos dos gatos


Bandeira dois já estava pronta, quando e-mail mais ameno – não menos urgente – fez apitar a caixa postal. Foram linhas e mais linhas de rascunho em páginas de papel pautado antes de passar a coluna para o computador. O tema: o nó que a queda da ponte sobre o Rio das Velhas, em Sabará, deu na Região Metropolitana de Belo Horizonte, causando transtorno sem fim para milhares e milhares de pessoas. Por fim, o recado eletrônico que noticia a criação da Associação dos Amigos dos Gatos do Parque derrubou o que estava pronto por razão bem simples: já que ninguém do poder público dá conta do trecho da morte da BR-381, melhor falar dos gatos. Da rodovia falamos depois porque, pelo que parece, infelizmente, assunto não vai faltar tão cedo.

A mensagem é uma convocação para encontro no próximo sábado, às 10h, em frente ao portão do Parque Municipal Américo Renne Gianetti, na Alameda Ezequiel Dias, com o objetivo de mobilizar o maior número possível de pessoas em defesa dos gatos abrigados no parque. Segundo levantamento de entendidos, são cerca de 140 animais, sob proteção de agrupamento de voluntários, vivendo no lugar. Nos últimos tempos, desde a interdição do espaço por mais de 80 dias, há rumores de que a prefeitura trabalha na criação de um gatil. Quando, no início do mês, os portões do parque foram reabertos à população, o que era ruído ganhou força com matéria publicada no jornal Estado de Minas, que confirmava a intenção da PBH.

Assinado por biólogos e entidades protetoras de animais, o e-mail demonstra força e organização no sentido de garantir o melhor desdobramento para a situação. Parece que os líderes do movimento não aceitam o argumento do poder público de que a retirada dos gatos do parque se faz necessária em função da ameaça que eles representam para os passarinhos do lugar. Sem os pássaros, a praga do cupim devora as árvores e compromete a natureza. É o que dizem os especialistas da prefeitura. O e-mail chama a atenção e anuncia dura queda de braço. Em defesa dos gatos, trecho do texto diz:

“O maior predador do parque foi o animal humano com suas sucessivas administrações e prefeituras que foram ‘comendo’ o parque para ceder a maior parte de suas terras aos vários edifícios do entorno, a saber: Ciências Médicas (escola particular), Hemominas, Faculdade de Medicina, Residência Estudantil Borges da Costa, Hospital da Previdência e outros. Internamente, o Colégio Imaco, o Palácio das Artes, o orquidário, o Teatro Francisco Nunes. Qual é então o animal mais predador do parque? O animal humano!”.

A briga é boa e me faz deixar um pouco de lado o caos provocado pela trinca da ponte sobre o Rio das Velhas que quase ilhou a cidade. Melhor pensar nos gatos, meus amigos desde a infância e que não fazem mal a ninguém.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 27/4/11

terça-feira, 26 de abril de 2011

Os gatos do parque

Depois de grande repercussão, atendendo a pedidos, Vida Bandida republica, com imagens inéditas, matéria especial sobre a situação dos gatos abrigados no Parque Municipal de Belo Horizonte. A reportagem foi publicada domingo, 10 de abril, no Caderno Gerais do jornal Estado de Minas. (Texto e fotos: Jefferson da Fonseca Coutinho)




















Adoráveis vagabundos

Cerca de 140 gatos que vivem no Parque Municipal, Centro de BH, recebem cuidado especial, mas a prefeitura os quer longe de lá por considerá-los exterminadores de aves predadoras de cupins


Nem mocinhos nem bandidos. Sobreviventes. Pode-se chamar assim os cerca de 140 felinos habitantes do metro quadrado mais puro do Centro de Belo Horizonte. O Parque Municipal Américo Renné Gianetti, antiga Chácara do Sapo, que em 1908 viu nascer o time do Galo, há muito é abrigo de luxo de gatos abandonados. Na calada da noite, geralmente aos sábados, domingos e feriados, pretos, fêmeas e filhotes – os mais rejeitados – são largados à beira do cercado de ferro do complexo que faz divisa com as avenidas Afonso Pena e dos Andradas, a Rua da Bahia e a Alameda Ezequiel Dias.

A legião de gatos, enturmada, segue marota entre pombos e marrecos no patrimônio ambiental mais antigo da capital, inaugurado em 1897. Não é preciso esforço para vê-los imponentes, esparramados sob o verde que rodeia o Teatro Francisco Nunes, o coreto, o lago, entre as pequenas vias que cortam o parque, que, em fins de semana, chega a receber 60 mil visitantes. Mas eles podem perder esse privilégio de viver em liberdade. São predadores de pássaros e a prefeitura quer tirá-los de lá porque, sem pássaros, os cupins se proliferam e atacam as árvores.

Odiados e rejeitados por uns e amados por outros, os bichanos do parque não passam fome nem se multiplicam desordenadamente graças ao trabalho de voluntários como Jane Penna, da Associação Bichos Gerais, organização não governamental vinculada à Sociedade Mundial de Proteção Animal (WSPA). Há 15 anos, ao menos três vezes por semana, Jane é protetora dos pequenos domesticados do parque. Acompanha e alimenta os bichos, dá carinho a eles e os leva ao veterinário. Também os leva para casa, quando se envolve além da conta. O que não é raro.

“Às vezes, não resisto. Tenho dó. Muitos são maltratados. Eles não precisam de muito. Só respeito. Desde pequena, gosto de gatos.” E como gosta. Em casa, mostra com orgulho fotografias em preto e branco, dos tempos de criança, vestida de gatinha, fazendo pose, abraçada a filhotes de variados tamanhos, raças e cores. No Bairro Sion, na Rua Washington, em ampla morada de andar inteiro, vivem com ela Catira, Minalva, Lolita, Baiana e outros tantos temporários,em recuperação ou à espera de adoção. A ambientalista não quer aparecer. Não permite ser fotografada e pede publicidade apenas para a defesa dos animais. Aposentada, acometida por um acidente vascular cerebral (AVC), Jane se emociona: “São os gatos que me mantêm viva”.

Os recursos financeiros vêm do próprio bolso. Média de R$ 5 mil por mês, gastos com ração, remédios e castrações. Quem ajuda a fazer as contas é a socióloga Marília Andrade, outra voluntária apaixonada por felinos, amiga e fiel escudeira de Jane. Mesmo com o espaço fechado ao público por 81 dias – de 14 de janeiro a 4 abril –, Jane Penna teve autorização especial da administração para, no período, transitar pelo parque na companhia de funcionário da prefeitura. De táxi, dentro dos 182 mil metros quadrados de diversificada vegetação, são horas de trajeto e empenho sistemáticos, além de dois sacos de 10 quilos de ração da melhor qualidade.

Às segundas-feiras, Jane captura para castração e cuidados clínicos. O resto da semana fica para visita e alimentação. Generosa, explica que os gatos são marcados para controle do agrupamento: furo na orelha esquerda para os machos e na direita para as fêmeas. Lamenta, especialmente, o enorme preconceito contra os gatos negros. “São os mais dóceis. É muita ignorância.” No porta-malas do carro branco, de aluguel, ela mostra a comida superpremium e a gaiola especial, americana, para captura e transporte dos mais necessitados. “É preciso uma tampa na parte de cima. Por baixo, eles não entram de jeito nenhum.” O atendimento médico também é de primeira e cabe ao especialista Marcelo Lobão, da Clínica Veterinária de Urgência, na Rua Aquiles Lobo, 39, Bairro Floresta, Região Leste de BH.

Liberdade ameaçada

Com a reabertura dos portões do parque, terça-feira, depois de tempos de paz com o fechamento para vistoria de quase 4 mil árvores, os gatos estão para ganhar nova morada. É um gatil, segundo projeto da Fundação de Parques Municipais, ainda em fase de estudos. Solução para um problema de desequilíbrio natural, que pode ter contribuído com a proliferação dos cupins, comprometendo árvores. A explicação parece simples: os gatos exterminam pássaros e répteis que se alimentam de cupins. Os cupins se proliferam e atacam árvores. Com isso, segundo o ambientalista Homero Brasil, diretor do parque, a situação fica delicada e a fundação está tomando os cuidados necessários para que os gatos recebam um novo espaço, com instalações apropriadas e mão de obra qualificada. “Tudo com a maior dignidade possível”, ressalta.

Para Jane Penna os gatos não podem ser responsabilizados pela população de cupins. “Se há um vilão, ele é o pessoal que abandona os bichos no parque. Os gatos são muito bem alimentados e estão sob controle. Eles não precisam caçar passarinhos. Os pássaros estão lá. Sempre os vejo, os ouço. Não basta retirar os gatos. O que precisa ser feito é uma grande campanha de conscientização, caso contrário as pessoas vão continuar abandonando seus animais.”

O outro lado, a gestão pública, pisa em ovos e trabalha para não dar brechas aos defensores dos animais. Paixão à parte, para a chefe da Divisão de Manejo e Operações do Parque Municipal, Tatiani Cordeiro, é preciso ir além e considerar tudo o que envolve a questão. Segundo a bióloga, de fato, levantamentos mostram redução significativa de répteis e aves que ajudariam no combate aos cupins. Indicam também que o parque não é o melhor lugar para a sobrevivência dos gatos, considerando que lá eles também sofrem maus-tratos.

SOS bichos
Todos os animais são protegidos por lei. Abandoná-los ou maltratá-los é crime e pode render pena de três meses a um ano de detenção e multa (Lei Federal 9.605/98 e Decreto-Lei 24.645/34).


Para denunciar maus-tratos

Cia. de Polícia Militar de Meio Ambiente: 2123-1600, 2123-1610, 2123-1614, 2123-1616

Polícia Militar: 190

Disque-denúncia : 181

Delegacia de Ecologia – Divisão do Meio Ambiente, Rua Piratininga, 105: (31) 3212-1339;

Ibama – Linha Verde: 0800-61-8080 linhaverde@ibama.gov.br

Contato para adoção

Marília Andrade: (31) 2516-7386 ou 9924-4699


Como eles vivem

• Em média, o gato tem de seis a quatro quilos e 80cm de comprimento, da cabeça ao rabo. É formado por 245 ossos e 517 músculos

• Plantas venenosas representam perigo. Alguns gatos gostam de mastigar folhas

• A expectativa de gastos com veterinário para um gato é de cerca de R$ 160 por ano

• A expectativa de vida do gato dobrou desde 1930: de oito para 16 anos

• Um gato criado em casa vive, em média, 15 anos. Expectativa que baixa para no máximo cinco anos para o gato de rua

• O gato passa mais de 30% de seu tempo cuidando de higiene e beleza

• Diferentemente dos cães, os gatos têm muito pouco ou nenhum cheiro

• Os gatos têm cerca de 100 sons vocais e os cães apenas 10

• Por ser um animal do deserto, o gato bebe pouca água e é capaz de concentrar muita urina

• O gato pode ficar vários dias sem comer

• Chega a dormir 16 horas por dia, divididas em vários períodos

• Assim como os humanos, os gatos roncam desde a primeira semana de vida, especialmente quando estão felizes


Estado de Minas - Jefferson da Fonseca Coutinho - 10/4/11

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Florbela e o enfermeiro

De romance a tragédia incendiária, de único ato. Florbela quis mandar o amor para o inferno e ateou fogo no marido. “Descanse em paz, desgraçado!”, e tome fósforo na madrugada, no corpo cinquentão encharcado de álcool. O enfermeiro acordou em chamas e tentou correr para o banheiro, mas a mulher, no momento, não queria fracassar e fez de tudo para bloquear o caminho. “Morre, infeliz!”, dizia entre dentes, cercando-o, andando de lado, quem nem caranguejo valente. A vizinhança agiu rápido e a polícia também foi ligeira. Salviano, sapecado na brasa, em estado gravíssimo, foi levado às pressas para o João 23. Já Florbela, quem diria, aposentada, viúva honesta, boa mãe de família, de camisola, foi ver a lua sumir quadrada na delegacia.

Pausa para pensar na vida. Pelo que diz a vizinhança o Salviano não era lá flor de cheiro. Gostava bem de estapear a mulher. Nada que justifique, é claro, a atitude da aposentada fogosa. O que ninguém entendia é que havia muita química entre os dois. Uma loucura. Viviam grudados para lá e para cá. Foi só no último mês que a situação tomou rumo de destempero. No início, três anos atrás, a coisa foi bem outra e o fogo era o da paixão, daquele que só faz é chamuscar os sentidos. Entre quatro paredes rolava o diabo entre Florbela e Salviano. No bairro Milionários, comentário era geral: “Velhos que nada! Com aqueles dois é todo dia. Todo dia!”.

Nicolau, dono do inferninho do Irajá, se lembra bem como e quando o casal amigo se conheceu. Logo quando soube do ocorrido, fez questão de ir à delegacia e contar tudo o que sabia ao delegado Viana: “Como podia esquecer, doutor!? Foi lá no meu estabelecimento num sabadão de rela-rela. A Florbela estava uma beleza, vestida de vermelho e com um cabelo assim... pra cima... como é que se diz? Isso mesmo: coque. Sei bem porque o pescoço dela tava bonito demais com um colar colorido. Aí, o Salviano, que desde que foi largado pela ex-mulher dele, tava sempre lá, ficou doido com a Florbela. Mas não foi só ele que ficou assim não, todo mundo lá ficou de olho nela. Só que a danada tava dando mole mesmo era pro Salviano. Dançava com um, com outro, mas não tirava o olho do Salviano. Até que os dois se atracaram num forró. Aí, quase que foi lá mesmo que os dois arrancaram a roupa. Parecia até adolescente em festa de 15 anos. Acho que já saíram do meu estabelecimento e foram morar juntos”, concluiu.

Depois de ouvir o depoimento voluntário do Nicolau, o delegado Viana, linha-dura, corretíssimo, quis conhecer de perto a tal incendiária. Primeiro ficou a observá-la através do vidro da sala. Parecia um anjo alourado, boa avó e mãe de família. Linda a mulher madura. Estava sentada, distante, com uma mão na outra, brincando de rodar a aliança no dedo anelar esquerdo. A cabeça da criminosa estava a mil. Talvez por arrependimento, talvez por saudade, simplesmente. Ao ver o delegado Viana ganhar a cela, Floberla desembargou a garganta e deixou falar o brilho nos olhos: “E então, doutor... deixa meu homem morrer, não! Deixa não! Pelo amor de Deus!”.


Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 25/4/11

quarta-feira, 20 de abril de 2011

É preciso saber ouvir adeus

Passo o dia sem conseguir me desligar da notícia de um sujeito, ex-marido, de 24 anos, que manteve a ex-mulher, de 21, em cárcere privado, sob a ameaça de um revólver. O crime ocorreu de segunda-feira até ontem, lá em Aracaju. Ainda bem que o invasor se rendeu. A situação, muito tensa, durou cerca de 30 horas. Que Deus proteja os envolvidos de mais essa triste história de amor. Especialmente, que acolha o garoto de 5 anos, filho do jovem casal recém-separado. Ao que tudo indica, o homem não se conforma com o fim do relacionamento.

Histórias assim sabemos aos montes na praça. Algumas, infelizmente, têm desfecho trágico para muita gente. É preciso saber ouvir adeus para seguir vivendo. Não é fácil. Quem já passou por essa situação sabe bem o que isso significa. E como sabe. Já passei por isso e posso dizer com conhecimento de causa, sem medo de parecer conversa de botequim ou psicologia barata. Sofri horrores em tempos de caos, no passado. Uma tragédia de único ato que enterrou um casamento e, junto, agrupamento muito querido de amizades. Mas o tempo é o melhor remédio e descobri logo, poucos meses depois, que o ocorrido foi a melhor coisa que podia ter me acontecido.

Hoje, muito mais feliz e em melhor companhia, olho para trás e acho até graça daquele desespero abobalhado, quase infantil. Meus companheiros mais chegados, que acompanharam a “tragédia”, enchem a boca para dizer: “Rapaz, você tirou foi a sorte grande. Renasceu das cinzas para encontrar pessoa muito melhor”. Foi o que disse o Adelson logo que conheci a Violeta. Meu pai, o velho Botelho, foi objetivo por ocasião da minha separação: “Não era para ser com quem já era. É para frente que se olha, Josiel. Para frente”. À frente, depois de aprender um bocado, de me dedicar mais aos filhos, aos estudos e ao trabalho, surge novo amor para compensar a agrura. E o melhor: com o coração mais forte, cicatrizado e pronto para amar mais e melhor.

Sofrimento descabido por amor, paixão, é tolice. Só se for para tirar proveito e para ficar mais forte. Fazer besteira por amor não correspondido é idiotice pura. Falta de amor-próprio. Acabou é porque não tinha que continuar. Não tem salvação? Não tem jeito mesmo de tentar mais uma vez? Fazer o quê… respirar fundo e se apegar ao que de fato tem valor. Amar e ser amado. O resto é perda de tempo. A gente tem que gostar, que amar de verdade, que saber retribuir. Tem que valer a pena para os dois. Se só um está no lucro, algo está errado. O segredo é somar para dividir. Um precisa acrescentar ao outro, fazê-lo melhor. É preciso crescer juntos. Não dá para perder tempo com problemas imaginários, alimentar tolices e cometer desrespeito de qualquer natureza.

O amor é outra coisa. Amar e amar, simplesmente. Sem violência ou falta de juízo. Ama-se sempre pronto para renascer, amar mais e mais. Pelo respeito à vida, nem tudo pode se perder. Se esse alguém não quer, tem muita gente querendo.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 20/4/11

segunda-feira, 18 de abril de 2011

O homem que não amava as mulheres

Desde pequeno, embora filho de boa mãe, Jabiró não curtia o sexo feminino. Não gostava mesmo, de graça. Talvez coisa de outra vida, porque, do dia em que foi plantado no ventre de dona Mocinha em diante, grandes motivos não haviam para o sujeito não gostar de meninas. Em casa, o pai, homem correto, não era lá o que se pode chamar modelo de educação, mas agredir dona Mocinha, isso, o “seu” Joaquim nunca fez. Contudo, toco de gente ainda, Jabiró, filho único, vivia de sentar a mão em quem quer que usasse saia ou não tivesse gogó.

Não. Jabiró não era homossexual. Era estúpido e ignorante demais para levar adiante certas delicadezas. Não gostava das fêmeas, simplesmente. Cresceu avesso àquelas curiosidades tão comuns aos garotos serelepes em fase de descobertas. Quando mocinho, nas férias com a Tia Augusta, em Uberlândia, em casa com sete gatinhas – todas primas de primeiro grau –, Jabiró comandava as brincadeiras. “Vamos brincar de casinha! Por favor, por favor, por favor!!!”, elas pediam em coro. Já Jabiró só queria brincar de Ultraseven e Ultraman. “Vocês são os meus monstros. Aí, eu chego e tenho que vencer todas vocês”, ordenava. E, implacável, vencia.

A farra no Triângulo Mineiro teve fim quando ele machucou para valer a Nanda, filha mais velha da Tia Augusta. Das sete, a lourinha era a maior e mais forte. Três anos mais velha que o primo, numa dessas brincadeiras de Ultraseven e Ultraman, a Nanda resolveu que o monstro ia vencer e deu uma surra daquelas no Jabiró – com direito a soco no olho, telefone e bicudão na parte baixa. Mesmo envergado e com a cara roxa, Jabiró apelou e quebrou uma cadeira na cabeça da menina. Desse dia em diante, o moleque nunca mais voltou a Uberlândia. Por mais de mês, diante do espelho, com o olho esquerdo caído, lembrava da priminha Nanda: “Desgraçada!”.

Jabiró cresceu feio por dentro. Por fora, chegado em puxar ferro e outros cuidados com o corpo, até que atraía a mulherada. Só não gostava de estudar. Sem estudo ou inteligência útil, acabou indo parar nas ruas como tomador de conta de automóveis. Tipo achacador profissa, nas regiões de bares e casas de espetáculos de Belo Horizonte e Região Metropolitana. Depois do batente, vez por outra, cedia aos olhares de alguma garota para mais tarde sentar-lhe a mão. Até que ano passado, depois de achacar e desacatar um juiz federal em Contagem foi parar no xilindró. Lá, aos 40 anos, virou moça para um tal Jaspion, gigante, chegado num seriado japonês.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 18/4/11

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Teatro de guerrilha

Ninguém melhor do que o próprio Eid Ribeiro para definir o teatro de Eid Ribeiro: “Absurdo, poético, grotesco e alegre”. Beirando meio século de carreira, o diretor e dramaturgo, aos 67 anos, ganha homenagem do Grupo Trama, com mostra de espetáculos e ciclo de leitura dramática. A partir de amanhã, o público poderá conferir a programação, que vai até 8 de junho. Estão em pauta os espetáculos O pastelão, John e Joe e Os três patéticos, além dos textos Lágrimas de guarda-chuva, O cachorro de três pernas e O chapéu do meu avô – os dois últimos inéditos.

Depois de um 2010 turbulento, no olho do furacão em meio a polêmicas em torno do vai-não-vai do Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte (FIT-BH), do qual era o principal curador, Eid dá sinais de que sai, sobrevivente, sem grandes mágoas. No entanto, não evita tocar no assunto nem poupa críticas à falta de respeito, experimentada e testemunhada por ele em relação à cultura por parte da Prefeitura de Belo Horizonte. “Querem privatizar os teatros. Curitiba administra tantas casas e aqui eles acham que não precisam assumir as salas, que podem agir assim. É só ver a situação do Francisco Nunes e do Marília, caindo aos pedaços”, reclama.

Longe do imbróglio com os gabinetes, o criador está de volta. Acaba de escrever texto de único ato, que promete dar o que falar: O cachorro de três pernas. Dois velhos palhaços, no asilo, travam “uma conversa atravessada”, antecipa ele. Quem conhece a obra de Eid Ribeiro, rumo ao topo da maturidade (“mais pra lá do que pra cá”, ele brinca) e sem fazer concessões, já pode imaginar as duras críticas que já estão no papel.

Engajado, formado pelo Teatro Universitário, o TU da Universidade Federal de Minas Gerais, nos anos de chumbo, companheiro de homens da arte de projeção nacional, como Alcione Araújo, Neville D’Almeida e José Antônio de Souza, Eid, que passou anos dividido entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro, sempre assumiu a vocação para o teatro de grupo. Com esse espírito de compartilhamento e pesquisa, surgiu o grupo Geração, no fim dos anos 1960, trazendo à luz denúncias contra a censura, a prisão e a tortura. Daí para frente, o “teatro de guerrilha” de Eid Ribeiro ganhou voz e corpo, influenciando muita gente.


Mais absurdo

Em período de paz, embora a inquietação seja constante – característica de sua pena –, o teatrólogo que lançou às grimpas o Grupo Galpão, com Corra enquanto é tempo (1988) e Álbum de família (1990), está de volta à sala de ensaio com novo Beckett. A adaptação se baseia em novelas do escritor irlandês, ícone do teatro do absurdo. Em cena estarão Rodolfo Vaz, do Galpão, e Kelly Crifer, do Grupo Teatro Invertido. A estreia é prevista para julho, inaugurando outro espaço na Funarte, na Casa do Conde. Na sequência, Eid prepara o lançamento de livro com cinco peças: Uma noite e tanto, A verdadeira história de D’jeca Tattoo, Lágrimas de guarda-chuva, O cachorro de três pernas e Os três patéticos.

Andante do mundo, especialmente quando curador do FIT por 16 anos, Eid lamenta a falta de valorização do teatro de rua no Brasil. Cita a Espanha e a França como modelos admiráveis de apoio ao circo e à rua. “Lá há subvenção, sindicatos organizados. Fazem grandes produções. Tem de tudo, muito benfeito, da tenda com cama de casal, um moribundo e cinco pessoas por vez na plateia às megaproduções”, comenta. Aqui, ele cita o Galpão como importante apoiador do gênero, com o projeto Pé na rua. Mas é muito pouco, considerando-se a extensão do país.

Eid conta que essa foi a grande dificuldade que o FIT enfrentou durante anos. “Trazer grupos brasileiros de teatro de rua era a coisa mais complicada do mundo. A gente procurava e não achava, justamente por essa falta de valorização. A mesma dificuldade observamos na África”, compara. “Só trouxemos um grupo africano, uma vez. Vi-o na Argentina, mas, para você ter uma ideia, a sede ficava na Alemanha”.


No canto

De bem com a vida, Eid Ribeiro não faz carnaval com a homenagem que recebe do Grupo Trama. Brincalhão, diz até que “é uma encheção de saco” essa história. “Prefiro ficar no meu canto, quieto, trabalhando, fazendo as minhas coisas”.

Num barracão de fundos, no Bairro Santo Antônio, Eid guarda pouco material impresso sobre as dezenas de montagens que realizou. Mas o olhar traz brilho especial quando cita vários de seus trabalhos – especialmente a direção de Toda nudez será castigada, na Venezuela, em 1994, além da obra para crianças. São dele os infantis Bicho-de-pé, pé de moleque (1991), Anjos e abacates (1992) e De banda pra lua (2007). O último com o Grupo Armatrux, com quem fez o adulto No pirex (2010), um dos melhores trabalhos inspirados no teatro do absurdo feitos recentemente em Belo Horizonte.

Avesso a entrevistas, o diretor não é do tipo que gosta de aparecer fora do texto e do palco. Ao fazer o balanço de quase meio século de dedicação e amor à arte, Eid Ribeiro repete Nelson Rodrigues. E deixa este conselho luminoso para a juventude: “Envelheça”.


Grupo Trama

Com a autoridade de quem assistiu a espetáculos da maior parte do planeta, Eid Ribeiro elogia o teatro de grupo feito em Minas Gerais. “É um dos melhores do Brasil, sem deixar muito a dever lá fora. Em alguns casos, estamos até muito à frente dos estrangeiros”. Lamenta, entretanto, a falta de público e o desinteresse das pessoas por espetáculos encenados ao longo do ano, fora da campanha de popularização e do projeto Verão arte contemporânea, que atraem muita gente, mas apenas de janeiro a março.

Eid Ribeiro lamenta a perda, por falta de recursos, da sede do Grupo Trama, no Bairro Floresta. Com gratidão e respeito, fala do trabalho da companhia: “Voltei a dirigir praticamente por causa do Trama. Fiquei muitos anos só no FIT, porque viajava muito e gosto de dirigir uns seis, nove meses, ensaiando sem data para estrear. Aí, me convidaram para fazer Os três patéticos, em 2004. A gente ficou um ano e meio em ensaios, sem saber o que ia fazer. Gosto muito do trabalho artístico e social do grupo, levando arte à periferia, assim como o Zap 18”, afirma, referindo-se ao grupo de Cida Falabella, com sede no Bairro Serrano.


Programação

O PASTELÃO (foto)
Amanhã, às 20h
. Centro Cultural Padre Eustáquio (Rua Jacutinga, 821, Bairro Padre Eustaquio)
Sábado, às 20h
. Ponto de Cultura COR-Tição. Sede do Grupo TNA (Rua João Gualberto de Abreu, 170, São João Batista)
Domingo, às 10h30
. Centro Cultural Pampulha (Rua Expedicionário Paulo de Souza, 185, Urca)

JOHN & JOE
5 de maio, às 20h30
. Centro Cultural Pampulha (Rua Expedicionário Paulo de Souza, 185, Urca)
7 de maio, às 20h30
. Casa do Beco (Av. Arthur Bernardes, 3.876, Aglomerado Santa Lúcia)

OS TRÊS PATÉTICOS
2, 3 e 4 de junho, às 20h30
. Teatro Marilia (Av. Alfredo Balena,
586, Centro)


CICLO DE
LEITURA DRAMÁTICA

Os textos Lágrimas de um guarda-chuva, O cachorro de três pernas e O chapéu do meu avô serão lidos pelos grupos ZAP 18, Cia. Candongas e Mayombe.

6 de junho, às 20h30
ZAP 18 (Rua João Donada, 18, Serrano)

7 de junho, às 20h30
Casa de Candongas (Av. Cachoeirinha, 2.221, Cachoeirinha)

8 de junho, às 20h30
Esquyna – Espaço Coletivo Teatral (Rua Celia de Souza, 571, Sagrada Família)



* Entrada franca. Ao final do espetáculo, os artistas “passam o chapéu”. No caso de Os três patéticos e John & Joe, senhas devem ser retiradas uma hora antes das apresentações.

(Foto: Maria Tereza Correia)

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Defunto sem choro

Chamam de “defunto sem choro”, cadáver largado, que ninguém reclama. Assim como está ocorrendo com o que sobrou do atirador Wellington Menezes de Oliveira, ex-aluno da Escola Municipal Tasso da Silveira, que, ao menos até o fechamento de nossa Bandeira Dois, continua engavetado no IML do Rio de Janeiro. Tentei evitar tocar no assunto. Não deu. Ainda tira-me o sono o massacre em Realengo. Sou pai de família. Meus filhos, a todo instante, pululam os meus pensamentos, o meu juízo, a minha paz. Há dias (e noites) penso nessas crianças que se foram tão tragicamente. Martelam-me a cabeça todas as famílias atingidas pelo atirador-terrorista.

Semanas atrás trouxemos a questão do bullying a este quintal. Na praça, o assunto rendeu e já não aguentava mais ouvir sobre o tema. Aí, ocorre o que o Brasil inteiro, doído, acompanhou. Veio tudo à tona, de novo. “Bullying”. Que triste. É hora de força-tarefa para encerrar de vez a questão. Por amor e pelo futuro de nossas crianças. Não que seja o único fator responsável por mais essa trágica história brasileira. Há muito mais em questão. Certamente, especialistas graúdos ainda vão ter muito a dizer sobre a mente doentia desse jovem de 23 anos.

Em meio as trevas, um ponto de luz. Achei bom exemplo de busca pela paz a atitude de alguns moradores de Realengo, que limparam a pichação na casa da família do criminoso. Está correto. Os irmãos, filhos dos pais adotivos, não têm nada a ver com o que aconteceu. Não podem ser punidos por nada. Tomara que os mais afoitos entendam isso o mais rápido possível para que essa pobre família possa retomar a vida em paz. Já basta a tristeza que vão levar para todo o sempre.

O fato de o corpo do atirador ainda não ter sido reclamado me faz lembrar uma história triste, que me contaram há tempos. O caso de um sujeito beberrão e afastado de Deus, que negou um filho até a morte. Perdido na vida, sem amigos ou parentes, toda vez que era procurado pelo moço tratava-o com o maior descaso. Quem me contou, gente muito íntegra, disse que o rapaz só queria aproximação, amizade e o nome do pai na certidão de nascimento.

O nome no documento, depois de exame de DNA, ele conseguiu na justiça. O tempo passou e o filho sempre por perto, mesmo rejeitado pelo homem. Até que o pai morreu e ficou às moscas no IML. Quando o rapaz soube, foi ele quem fez o reconhecimento do corpo e deu um enterro com mínimo de dignidade ao sujeito. No sepultamento, além dos coveiros, apenas quem me contou e o bom moço, que não derramou uma só lágrima pelo falecido.

O defunto sem choro, largado no Rio de Janeiro, ainda me perturba as ideias. Foram muitas páginas de caderno de papel pautado até conseguir chegar neste ajuntamento de letras. Coragem e força para seguir adiante. É o que desejo aos familiares dessas tantas crianças mortas. Fica a esperança de que dias melhores virão.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 13/4/11

segunda-feira, 11 de abril de 2011

O terrorista de Realengo

O Sheik também foi garoto em Realengo. Passou pela escola e, certamente, acreditou num futuro melhor. Deixou as salas de aula para tocar adiante a vida como outros tantos rapazes de sua idade. Filho adotivo, de comportamento fechado e de poucos amigos, foi viver sozinho em casa herdada do pai. Lá, perturbado – desafio para especialistas de muitas ciências –, mergulhado na rede mundial de computadores, encontrou semelhantes, poder e respeito no plano das idéias. Pesquisador voraz, buscou conhecimento para armar os pensamentos. Sem antecedentes criminais, histórico de vadiagem ou má conduta, ninguém podia apontar Sheik indivíduo do mal. Impossível saber o muito ou o pouco que havia em seu coração.

Menino ainda, anos atrás, Sheik achou bonito o que fizeram num tal 11 de setembro, no estrangeiro. Aquilo o impressionou para burro. Tanto que passou anos querendo atentar contra o monumento Redentor, de braços abertos, na cidade maravilhosa. Chegou a lançar aviões de papel, já que os outros custavam caros demais. Pensando no Cristo, o Sheik, sem querer, é claro, acabou por se distanciar de Deus. Depois que perdeu a mãe, então. Passava horas diante da sepultura de dona Dilcéa, no Murundu, na saudade do seu abraço. Imaginou-se ali, junto à cova, para a eternidade. Como? Já que saúde física não lhe faltava e esbanjava vigor de jovem soldado pronto para a guerra. Moleque, porém, decidiu tornar-se homem. Mas ninguém se faz homem da noite para o dia e Sheik resolveu deixar a barba crescer, assim, até o peito. Mesmo rala, meio de menino, meio de senhor, conseguiu chamar alguma atenção.

Homem feito, vez por outra, o sujeito de Realengo passava retalhos de tempo a recordar o passado: sua escola municipal e coleguinhas uniformizados, sorridentes, quase sempre. Falam que, quando aluno, sentia-se rejeitado e intimidado por pessoas de lá. É o que dizem. A verdade trancafiada em Sheik ninguém sabe. Não se tem notícias de conversas dele sobre o assunto. Talvez, quem sabe, alguma verdade anônima lhe tenha escapado pelos dedos em fóruns e salas virtuais da internet. É bem possível até que segredos bem profundos estejam criptografados em seu computador pessoal. Para que continuem secretos, ele incendiou a máquina e tentou não deixar rastos.

Sheik não queria publicidade. Não esse tipo de publicidade. Queria dar ao Brasil e ao mundo o seu espetáculo de horror e medo. “Melhor a morte do que não existir”, pensava. Invisível, comprou revólveres e munição suficiente para encarar seus demônios. Estava disposto a enfrentar o passado e destruir o futuro. Raspou a barba e escreveu oração confusa, em letras de despedida, com pedido de sepultamento e perdão. Condenou os impuros e doou seu único bem aos animais abandonados – estes sim, dignos de sua bondade. Por fim, sorrindo, executou seu plano de terror e de causa vazia: mirar as crianças de Cristo e acertar os filhos de Deus.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 11/4/11

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Uma mensagem de amor

Não sou especialista em cinema nem em religião. Longe de mim. Aliás, não sou especialista em nada, porque acho esse negócio de saber muito complicado. Os entendidos estudam, se preparam, têm conhecimento para pontuar uma ou outra questão, mas, no fundo, bem no fundo, a verdadeira arte se dá no encontro do objeto com o seu observador. Portanto, respeito os comentaristas profissionais, mas não mais do que o que há de particular na opinião de cada espectador. Existem as questões técnicas, é verdade, mas, honestamente, em relação à arte e às religiões, sou mais a mensagem. Se tem algo a dizer, beleza. Está valendo. E em matéria de ter o que dizer, esse As mães de Chico Xavier, em cartaz na cidade, é bom programa.

Não gosto do ritmo lento, arrastado e da musiquinha triste ao longo da fita. Parece que é forçar a barra em busca de emoção. Também tem algumas interpretações de doer. No entanto, amigo leitor, a mensagem que fica é de respeito e de valorização da vida. O recado está lá. Independentemente do credo de cada um – espírita, católico ou protestante, não importa. O que importa é que viver é bem precioso, destacado com inteligência nesse As mães de Chico Xavier. Natural que ao kardecista, conhecedor do tema e da filosofia, o filme toque mais profundamente. Também ao cidadão antenado com os assuntos da paz e do amor, sem dúvida, é de fazer pensar e repensar caminhos.

Violeta, Karla e eu, domingo, passamos toda a tarde debatendo religião. O assunto rendeu porque a Karla, sobrinha da Violeta, é moça letrada que gosta do tema. Conhece bem a Igreja Católica, assim como os evangélicos e a doutrina espírita. Violeta e eu falamos, mas, na presença da Karla, fomos levados a ouvir muito mais. Até tomei nota de trecho e pedi permissão para reproduzi-lo, aqui, em nosso quintal:

“Tem muita gente que confunde religião com negócio. O fiel vira cliente. Conheço protestantes e católicos cegos, que aceitam informação que vem pronta, sem debate ou discussão. Culpa, pecado… bobagem. Isso tudo é invenção do homem. Confessar, dar dinheiro, campanha disso, campanha daquilo, coleta aqui, ali… na maioria das vezes é negócio. Para mim, o homem precisa muito mais de inteligência, de conhecimento, do que de igreja. E isso não tem nada a ver com fé. Não podemos perder a fé, mas não podemos deixar que ninguém faça disso moeda de troca. Solidariedade, compaixão, isso é outra coisa. Conheço muita gente que vive para ajudar os outros e não exige absolutamente nada em troca. Vive de fazer o bem pelo bem, apenas”.

Violeta completou: “As igrejas, de maneira geral, abusam porque sabem que, em meio às dificuldades provocadas por problemas sociais graves, como miséria e violência, têm papel importante para o indivíduo. Afinal, como o Josiel sempre diz, ‘mais vale um fanático com a Bíblia na mão do que um viciado com um cachimbo de crack na boca’”. E a conversa rendeu. Até que voltamos ao filme e concluímos que em As mães de Chico Xavier, mensagem de amor é o que fica.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 6/4/11

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Um dia de sombra

“Todo mundo é feito de luz e sombra”, Aloha lia todas as noites. Estava na página 27 do livro de cabeceira, escrito por seu guru indiano. Um tal Osho, que gostava de carro, sexo e diversão – não necessariamente nessa ordem. Luz e sombra. Aloha ensinava também, já que era professora de ioga, das boas. Vinha ajudando muita gente a andar no eixo. E como. Trouxe equilíbrio até aos mais desacertados da família, com conselhos simples, nos almoços na casa da avó. Evitou que muito parente fizesse bobagem. Ainda não tinha 30 anos e era exemplo entre os seus mais sérios. “Aloha é a personificação da paz. Um exemplo”, orgulhava-se o tio-padrinho, Severo, delegado.

Claro – ninguém é de ferro –, Aloha tinha lá suas fraquezas. O trânsito de Belo Horizonte, por exemplo. No entanto, dominava técnicas de bioenergética e sabia respirar como ninguém. Não precisava ir além do cinco na contagem do centramento: 1, 2, 3... pronto. Alinhava-se no sopro, como o mais virtuoso dos samurais. O resto era festa. O namorado, Luan, era o maior fã de Aloha. “Essa pequena é uma loucura”, elogiava. O rapaz, depois que conheceu a professora, até aprumou na vida. Largou as drogas e resolveu ouvir o “vai trabalhar, vagabundo” firme do Severo, tio da moça. Só não conseguiu deixar o reggae – aquele batidinho bom, que vem em ondas.

Com o corpo, Aloha fazia coisas do arco-da-velha. Parecia invertebrada. Tinha jogo de pernas de fazer inveja ao mais experiente contorcionista. Só não sabia voar. Mas de tão leve, pluma, não surpreenderia ninguém selevitasse de repente. A moça não era mesmo de lugar qualquer. Podia bem ser asiática, não fosse a carinha de menina de Minas, do Anchieta. Concentradíssima, arrasava nos estudos e em boas maneiras. Divertia-sehorrores com os fiu-fius dos pedreiros. Ignorava desaforo e até achava graça nos playboys do Chalezinho. “Como é que a Aloha consegue?”, perguntavam as amigas mais inteligentes. Ninguém a entendia. Uma estrela. Um ponto de luz.

Como o mundo, Aloha também era sombra. E no dia em que amanheceu sem sol, uia, puxou até arma branca para o polícia. Foi no trânsito que deixou vazar escuridão. Bebeu além da conta e resolveu encarar o volante. Discussão besta por batidinha leve, bem comum entre os barbeiros, aos borbotões, que fazem e acontecem no gargalo da cidade-garrafa. Embriagada, no breu, muito agressiva – quem diria –, a professora de ioga foi parar na delegacia para prestar declarações. O tio delegado foi avisado. Lá, samurai embestada, Aloha sacou canivete contra o sargento. Algemada, sob a guarda do padrinho linha-dura, a bela acabou dormindo em cana para recobrar o juízo.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 4/4/11