Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

segunda-feira, 30 de abril de 2012

A mulher do capeta


Fala-se muito no diabo. Mas pior que o coisa ruim é a mulher dele. Quem já viu de perto sabe bem da flor que não se cheira e se repete - de tempos em tempos nasce uma praga disfarçada de rosa. São do tipo que, nos assaltos, atiram sem dó, com a vítima rendida. E no final do século 20, num redemoinho na Região Hospitalar de Belo Horizonte, nascia Demolina. Feia não tinha a cara da maldade. No entanto, os mais antigos percebiam sem demora, no fundo do olho em trevas, tratar-se do cão chupando manga. 

A mãe, coitada, nada teve a ver com a semente do mal. Embarrigou-se do vento em noite de bebedeira. Logo depois do parto, a pobre mulher teve o ventre seco e morreu de colapso sem explicação. Findou-se, simplesmente, no dia em que trouxe à luz a pequena diaba. Indigente, sem pai ou qualquer parente presente, Demolina foi parar no colo de assistente social, cinquentona viúva, solitária, cheia de boa intenção. A mulher, Iracema, até que teve dúvida. Por fim, não resistiu e tomou para si o mal em corpo de criança.

Adormecida, a fêmea do capeta cresceu na criança até o corpo feito de mulher. No aniversário de 18 anos, a menina comum se transformou da noite para o dia. Dona Iracema, a mãe adotiva, soube logo pela manhã a falta de coração da sujeita. Do nada, como o ventre seco da progenitora morta, a assistente social sentiu aperto no peito que fez arder a alma. Mesa posta para duas, como de costume: pão e frutas em toalha bordada à mão. Ali, Demolina fulminou Iracema: infarto. A mulher definhou sem a menor atitude da filha de criação.

Herdeira da casa e de todos os pertences da viúva, Demolina tratou enterro barato e botou tudo fora pelo dinheiro que apareceu, vindo das mãos de enviado de irmão de dona Iracema. Um tio distante, pastor, que nunca se enganou com a figura. Logo que a irmã apresentou a menina à família, Agenor foi quem disse na lata: “Besteira. Isso aí não presta”. O homem juntou esposa, filha recém-nascida e sumiu rumo ao Espírito Santo. “Não vamos ficar por perto para ver crescer a desgraça”, foi como se despediu da irmã.

Iracema sepultada, Demolina ajeitou mudança e fez de inferninho casa velha no Bairro Floresta. Lá, indecente, por seis meses, acabou com a vida de todo sujeito casado que encontrou pela frente - chegou a enterrar dois no fundo do quintal. A  diaba saiu do armário e decidiu também ferrar as moças. Virou ao avesso o quadril de ao menos uma dúzia das mais fracas. Até que, por obra do destino, se engraçou com a filha do tio pastor. A menina tinha acabado de chegar do Espírito Santo para estudar medicina. Quando soube, Agenor não titubeou: comprou 38 na Grande Vitória e descarregou tambor na mulher do capeta.

domingo, 29 de abril de 2012

Alice ao avesso em Araxá



Hoje, no Tauá Grande Hotel de Araxá, às 21h, tem Alice ao Avesso. Montagem da Querida Companhia de Arte, o espetáculo dá sequência ao trabalho de investigação teatral da trupe, iniciado em 2005, com Chovia, mas os ladrões não usavam guarda-chuvas. No elenco, Ana Cândida Cardoso, Emílio Zanotelli, João Porto, Lílian Campomizzi, Paula Sá e Wallison Reis. Amanhã, segunda-feira, Alice se apresenta na Fundação Calmon Barreto.






A lógica do absurdo

Por Marcello Castilho Avellar

O romance Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll (1832-1898), pertence a uma categoria integrada por poucos membros. Mais do que contar uma história ou apresentar personagens e peripécias, propõe ao leitor uma lógica que pertence exclusivamente ao universo da ficção, que não finge ter vínculos objetivos com as lógicas do mundo real, e povoa-a com arquétipos. Talvez por isso sua adaptação para outras linguagens seja tão difícil, como verificamos recentemente no filme homônimo dirigido por Tim Burton. O espetáculo Alice ao avesso, que Jefferson da Fonseca dirigiu para a Querida Companhia, vence exatamente por compreender a singularidade do material em que se inspira.

Alice ao avesso não pretende simplesmente recontar no palco o livro de Lewis Carroll, nem explicá-lo. Na essência, aceita sua lógica absurda, assume seus arquétipos e verifica sua atualidade. Arquétipos, como entes do inconsciente humano, tendem à atemporalidade. Se no século 19 criaturas como Alice ou a Rainha de Copas falavam das contradições da Inglaterra vitoriana, no Brasil do século 21 elas continuam capazes de dizer algo, mesmo que este algo seja diferente do que era há século e meio atrás. Uma festa, música eletrônica, piadas e situações contemporâneas constituem o material colocado sobre a estrutura criada pelo autor. No processo, Alice ao avesso fala ao espectador tanto de seu tempo quanto do que ele divide com milênios de história humana, dos medos contemporâneos ao fascínio pelo desconhecido que parece inerente à humanidade.

É produção que confia mais no elenco que em recursos materiais. E os jovens intérpretes se saem bem, transformam em algo que parece ser deles a história escrita por outro e sonhada por muitos. Se não chega a fazer de sua precariedade material um manifesto estético, Alice ao avesso pelo menos é capaz de incorporá-la a certo clima de teatro underground que combina tanto com o espaço em que se apresenta – o Sesi Holcim é apertado, claustrofóbico – quanto com o clima onírico que propõe. O resultado é algo que consegue produzir desconforto mesmo enquanto diverte.

Estado de Minas - 26/1/11

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Uma vida pelos pobres


Na Igreja de Santo Antônio, no elevado da Rua Madre dos Anjos, tudo é muito simples e bem mais perto do céu. Da modesta casa de Deus muito bem cuidada, arejada, em pintura esverdeada, também abrigo paroquial aos fundos, é possível avistar boa parte da Região Norte de Belo Horizonte, nos limites dos bairros Providência e Primeiro de Maio. É onde o padre italiano, coordenador diocesano da Pastoral Metropolitana dos Sem-Casa, Pier Luigi Bernareggi (foto), o padre Pigi, de 73 anos, prepara a missa de domingo: “Da coragem de viver. Não por causa das nossas fracas possibilidades, mas por causa da força da ressurreição de Cristo”, ensina. No Brasil desde 1964, padre Pigi abraçou a causa dos moradores de favelas e dos sem-casa, participando ativamente do assentamento e da conquista de títulos de propriedade para milhares de famílias da capital e região metropolitana. Empenho que lhe rendeu prisões, ameaças de morte e muitos desafetos.

Padre Pigi é a personificação da renúncia. Deixou o conforto da família de posses, do ramo de aço, em Milão para viver pelos desfavorecidos mineiros. Seminarista, bastou uma oportunidade – depois de ouvir dom João Resende Costa e dom Serafim Fernandes de Araújo, em missão na Itália – para que ele e  três colegas se mudassem para o Brasil.

Dos quatro conterrâneos, apenas Pigi e Alberto Antoniazzi, falecido há dois anos, se firmaram em Belo Horizonte. Pigi conta que a grande alegria do seu grupo de estudantes, nas horas vagas, era vencer as cercas dos fundos para visitar os aglomerados. “O mundo favelado sempre foi uma preciosidade. As favelas são um rio de humanidade que preenche a cidade todas as manhãs com o sol de seus operários”, considera. Para o padre, aglomerados são áreas de famílias. “Em Belo Horizonte, o tráfico está mais presente na Savassi do que nas favelas”, considera.

Na salinha mínima, feita escritório, nos fundos da Igreja de Santo Antônio, não há computador. De tecnologia, uma máquina de xerox apenas. Em evidência, uma surrada Olivetti num apoio de canto, abastecida com folha de trabalho em curso. Sobre a mesa, números. “Não são meus. São do IBGE: em Belo Horizonte, uma pessoa em cada sete é favelada. Uma outra, também em cada sete, é sem-casa. Esses são os mais sofridos porque são invisíveis. Estão jogados nas moradias muitas vezes indignas dos pais ou sofrendo para dar conta de pagar aluguel”, diz com sotaque milanês. Pigi tem em mãos, listados, 11 grandes terrenos, que, segundo ele, dariam para abrigar 86 mil famílias. “Nosso déficit é de 70 mil. Mas o poder público não vai atender os sem-casa, com desculpas ambientalistas”, avalia.

Com a autoridade de quem conhece a fundo as batalhas sociais desde os anos 1960 – atualmente, ajudando na assistência a 35 mil moradores de 10 comunidades –, padre Pigi critica políticas públicas “assistencialistas” e chama de “agiota mundial” o poder econômico internacional, recorrendo ao pensamento deixado pelo Papa Pio XII: “Não haverá paz no mundo enquanto não houver um governo único”. Ele lamenta ainda o vazio cada vez maior no coração dos homens. Para Pigi, todo aquele que abandona Deus se torna carrasco dos pobres.

Chinelas, enxadas e facões

Não se abraça causa tão complexa, com tamanha intensidade, sem fazer inimigos. No fim dos anos 1990, para proteger 3 mil famílias que sonhavam erguer suas casas em terreno pago em prestações na região metropolitana, padre Pigi conta que, “ameaçados de morte por jagunços armados até os dentes”, ele e as famílias enfrentaram autoridades e gente mancomunada. “Os jagunços chegaram e tomaram conta do terreno que já estava sendo pago. Foi numa segunda-feira de manhã, não esqueço. Se o dinheiro pago pelo grupo de pobres, revoltados, não tivesse sido devolvido até o fim de semana, certamente teria sido a maior tragédia da terra da história de Minas Gerais”. Acolhidos pela liderança de padre Pigi, os sem-casa recuaram com suas chinelas, enxadas e facões.

Preso várias vezes, sempre à frente de desfavorecidos, o homem de fé não se abate. Avesso à tecnologia, Pigi dá valor à liberdade e reúne forças para manter seus contatos sempre ao alcance dos olhos, custe o que custar. “Fiz questão de não aprender a usar o computador para não ser escravizado pela informática”, conta. Diz não fazer uso de telefone celular pelo mesmo motivo. Com a saúde prejudicada, à espera de novo tratamento contra o câncer, o defensor dos pobres e oprimidos não se dá por vencido. No entanto, revela vontade frustrada no coração. “Viemos para Belo Horizonte com o sonho de criar comunidades cristãs nas escolas secundaristas e nas universidades. Pelo futuro. Não conseguimos. As pessoas acham que não é possível criar comunidades cristãs no ambiente de estudo. Isso é um equívoco e contribui para o esvaziamento do espírito, da concepção cristã da vida”.

Pigi, sem esconder o cansaço dos males que tem enfrentado, fala com alegria sobre maio, quando vai ser iniciada uma série de encontros preparatórios para a IV Assembleia do Povo de Deus. Até o fim do ano, leigos e religiosos concentram esforços em busca de novas diretrizes para os novos tempos. Para o padre, pelo futuro, o momento é de ações ainda mais localizadas. “Nossa paróquia atende 10 comunidades de bairros e estamos batalhando para criar comunidades de rua”, explica. Hoje, no entorno do Bairro Primeiro de Maio, Pigi conta com o apoio do padre Cássio Ferreira Borges, de 45, responsável pela Paróquia de Todos os Santos. Passado de vitórias e derrotas revolvido, de sandálias de borracha e camisa de malha furada, padre Pigi ajeita os óculos para suspirar, sorrir e encerrar a entrevista. Ao fundo, na parede da cor da esperança, reluz o retrato de belas ovelhas em pastos verdejantes.

Estado de Minas - Gerais - Jefferson da Fonseca Coutinho - 25/4/12
Foto: Beto Magalhães

Exemplo em Belo Vale


Estive em Noiva do Cordeiro, em Belo Vale, na Região Central de Minas, a 100 quilômetros de Belo Horizonte e fiquei encantado pela família Fernandes, descendente de dona Senhorinha. Impressionante a beleza, a força e a educação da comunidade de 300 pessoas. Lá, todos vivem uns pelos outros. Não há espaço para a vaidade besta ou para as competições tolas. Menos ainda lugar para o egoísmo, a  culpa e a inveja, tão comuns nas grandes cidades. Em Noiva do Cordeiro, homens, mulheres e crianças são exemplo da vida em verdadeira comunhão. Passei poucas horas no lugarejo. Tempo suficiente para sair de lá transformado e rever a vida.

É preciso que o amigo leitor saiba que nem tudo sempre foram flores em Noiva do Cordeiro. Até pouco tempo atrás, toda a família Fernandes sofria horrores, vítima de preconceito. É que os mais conservadores condenavam a vida livre, longe das imposições das religiões. Mas isso é passado e, por força, coragem e determinação de quatro gerações, está enterrado. Belo Vale amadureceu e pouco a pouco parece ter aprendido que das lições de Deus as mais importantes são o respeito e o amor ao próximo. O fato é que poucas vezes na vida fui tão bem recebido quanto em Noiva do Cordeiro. E pelo que soube de amigos – homens e mulheres –, que já estiveram por lá, a simpatia é sempre de impressionar. As roupas e os artesanatos produzidos pela comunidade são de excelente qualidade e de muito bom gosto.

Além de bons lavradores, os moradores de Noiva do Cordeiro são também artistas de mão cheia. Não bastasse o talento para o campo e para a costura, há ainda, desde os anos 1990, a capacidade admirável para o canto, para a dança e para o teatro. Pude assistir pelo vídeo, em salão comunitário da família, algumas atuações e fiquei ainda mais admirado pelos filhos de dona Delina, de 67 anos. Almoçamos juntos comida caseira feita com o amor de quem sabe compartilhar. Fui na companhia dos amigos Beto e Amauri. Na volta, estrada de terra e asfalto, o assunto foi as lições aprendidas na comunidade. Na primeira oportunidade, faço questão de levar Violeta e meus filhos para conhecer a boa gente de bem de Noiva do Cordeiro. É assim que sempre quis criar os meus filhos: livres e felizes. Vida longa aos Fernandes! (Jefferson da Fonseca Coutinho)

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 25/4/12
Foto: Beto Novaes

segunda-feira, 23 de abril de 2012

A pérola de Belo Vale





Jefferson da Fonseca Coutinho
Enviado especial

Belo Vale – Como no conto de fadas, a abóbora se fez carruagem e levou, dos campos para os palácios da cultura, “Lady Gaga” e suas meninas. Que não se engane quem pensa que a bela cover, incorporada por Keila Fernandes, de 27 anos, sucesso do momento, é a principal performance de Noiva do Cordeiro, comunidade de Belo Vale, a 100 quilômetros de Belo Horizonte, na Região Central de Minas. A superação é regra no distrito de 300 habitantes. Depois de mais de século de preconceito, tempo em que mulheres de bem eram tratadas como prostitutas, a comunidade venceu a segregação, ganha respeito e se mostra referência multiplicadora de arte na região. Hoje, com 32 artistas qualificados por oficinas de dança, teatro e música, o Noiva do Cordeiro Show, fundado em família, cumpre agenda intensa em projeto itinerante de inclusão social. No mês passado, o quadro de Keila no papel da conhecida intérprete norte-americana foi a sensação para mais de mil pessoas emuma praça da cidade e ganhou a aldeia global, movimentando as redes sociais nas ondas da internet. Mas no palco havia mais. Além de Vânia, Elen, Tatiane, Glaiciele, Dayse e Daiane, companheiras dançarinas de Keila, se apresentaram duplas de stand up, repentistas, cantores e grupo masculino. Talento de quem resolveu reescrever as cenas da vida e transformar a história de exclusão em uma peça de sucesso. “A repercussão desse trabalho, para nós, é como ganhar o mundo”, resume Flávia Emediato, de 27, coordenadora artística.

Vinte quilômetros de estrada de terra separam a sede do município de Belo Vale do povoado de Noiva do Cordeiro. Acesso difícil, que ainda impede o avanço da comercialização de artesanato, lingerie e agricultura para outras paragens. Celulares não funcionam. Telefonia fixa, só a de um orelhão solitário. Mas, vencidos os tropeços do caminho, a hospitalidade é à melhor moda mineira, como os antigos que dão valor ao sorriso e ao aperto de mão. A beleza da estradinha de campos verdes e cheiro cítrico – garantido pelos pés de tangerina ponkan, da qual a região é grande produtora – se repete em corpo e alma na família de dona Delina Fernandes Pereira, de 67.

Destacam-se a liberdade, a beleza e o carisma dos homens, das mulheres e das crianças do vilarejo. Assim como o poder produtivo da comunidade, onde cada um trabalha pelo bem de todos. As moças, estrelas no palco, nada têm de estrelismo: pegam pesado na lavoura, na arrumação da casa e na confeccão de roupas. Já os rapazes, bons de cena, além de trabalhar também na enxada levantam paredes e embalam seus filhos. A mesa posta no salão comunitário exibe a fartura e o prazer em compartilhar com as visitas.

Casa de educação exemplar, livre de imposições e sem a assombração da culpa, as obrigações são naturais apenas às carências comuns. Ninguém foge ao trabalho. Arodi Fernandes, de 42, o Van Damme, diz que ali, mesmo desgarrados das igrejas, todos estão cada vez mais próximos de Deus. “Aqui, a gente se apega ao que entendemos de mais importante na palavra de Deus: o respeito e o amor ao próximo”, resume.

Na comunidade, de fato, percebe-se que todos os irmãos se amparam. Rosalee Fernandes Pereira, de 47, filha de dona Delina, aprendeu com a mãe a liderança de quem ama e protege. A líder comemora o salto da família, próspera e em paz. Especialmente, no momento, o avanço artístico da trupe Noiva do Cordeiro Show. “É tempo de colher. O primeiro passo foi o trabalho de capacitação com o teatro, com a música e com a dança. Agora, com o grupo capacitado, podemos mostrar para o município que todo mundo é capaz. Nosso projeto busca a inclusão social. É uma porta de oportunidades para as novas gerações”, diz.


O palácio do futuro

Para o ator, diretor e dramaturgo belo-valense Walmir José, nome de destaque das artes cênicas de Minas, performances como as que estão rodando o mundo pela internet ainda estão muito distantes do verdadeiro potencial do grupo. Walmir acredita que os artistas que ele, professor e grande admirador da comunidade, ajudou a formar em Noiva do Cordeiro, bem orientados, vão ainda mais longe. Desde 1999, com festivais amadores, o teatro é objeto de estudo entre os integrantes da família Fernandes.

Agora, as palavras do veterano encenador já ecoam no futuro. Com projeto de Raul Belém Machado e Mariluce Duque, o Palácio da Cultura Chico Fernandes está para sair do papel. As plantas sobre a mesa refletem o empenho de Rosalee na captação de recursos e na realização da obra, pré-aprovada pelo Ministério da Cultura. O projeto do centro cultural de dois pavimentos, com 1,6 mil metros quadrados de área construída, prevê estacionamento, salões de ensaio, sala multimídia, ateliê de produção, três camarins, elevador, auditório e teatro com capacidade para 200 pessoas. Rosalee sonha ter o espaço aberto para toda a população de Belo Vale antes da Copa do Mundo.

Enquanto o palácio não fica pronto para receber o público, o Noiva do Cordeiro Show, patrocinado pela Companhia Vale, se apresenta como pode, com seus shows e oficinas pelos distritos de Belo Vale. Todos os 32 integrantes se desdobram nas mais variadas funções dentro e fora das quatro paredes da cena itinerante. Eliene Leite Fernandes, de 28, entre outras tantas tarefas, cuida da comunicação do grupo. Dedicada, cheia de orgulho dos parentes atores, dançarinos e cantores, Eliene, braço direito da líder Rosalee, organiza a agenda e faz de tudo para garantir o sucesso das oficinas comandadas pela cantora e professora Eda Costa – outra artista profissional que agrega ainda mais valor ao projeto de inclusão da associação comunitária.

Os olhos brilhantes de dona Delina

Keila, a Lady Gaga da companhia, conta que o trabalho cover tem lhe trazido muita felicidade. Vestida de vermelho, em figurino sexy inspirado na musa internacional e produzido pelas costureiras da comunidade, a jovem atriz vem fazendo a alegria da filha Ângela, de 5, e das outras crianças do lugar. Já são cinco as coreografias em repertório. “A gente está trabalhando para tentar trazer a essência da Lady Gaga, sempre muito preocupada em combater o preconceito. O que combina com a gente, porque já sofremos muito com isso. As pessoas não são só aparência. São coração também”, ressalta. Keila diz que sua principal motivação é sua mãe, dona Delina. “Ver os olhinhos dela brilhando quando estou no palco é tudo na minha vida”, emociona-se. O marido, Marcelo, de 26, seu primo, é dançarino do grupo e outro grande fã da superstar de Belo Vale. Sorridente, de mãos firmes e cabeça erguida entre a parentada de várias gerações, a matriarca se despede das visitas para retomar a liderança serena, convencida de que todas as escolhas de sua vida foram acertadas: “Eu já era tão feliz, meu filho, e nem sabia”.


Da discriminação ao reconhecimento

No fim do século 19, Maria Senhorinha de Lima, natural de Roças Novas, povoado de Belo Vale, se casou com o francês Arthur Pierre. Três meses depois, infeliz, abandonou o lar e foi morar com Francisco Augusto Fernandes de Araújo, onde hoje está a comunidade de Noiva do Cordeiro. A atitude foi condenada e os dois, rotulados de pecadores, tiveram amaldiçoada sua descendência por gerações. Nos anos seguintes, em toda a redondeza, a atitude corajosa de Senhorinha ganhou mais olhares de reprovação. Mas o casal tocou a vida, construiu casa e criou 12 filhos. A situação se complicou novamente em meados do século passado, quando Anísio Pereira, neto de Francisco e marido de dona Delina, fundou a seita protestante Noiva do Cordeiro, que batiza o lugarejo, e converteu toda a família, agravando as relações com parentes vizinhos e católicos. Novo período de polêmica e perseguições. Em 1990, um rompimento completo abalou a comunidade, permanecendo no local, que tem 46 moradias e onde todos são parentes, apenas os que defendiam uma sociedade temente a Deus, mas sem qualquer religião. Em 2007, o Estado de Minas trouxe a público a história da família, que ganhou documentário de TV e rodou mundo. Hoje, respeitada pela maioria dos belo-valenses, a comunidade tem ajudado a promover a cultura na região.

Estado de Minas - Caderno Gerais - 22/4/12

Fotos: Beto Novaes/EM/D. A Press


Sem roupa, sem documento

Não era fácil para a Lucinha viver com o Lima. No início até que não foi tão sofrido, mas, poucos meses depois do enlace na capelinha de São José, o que era doce teve desfecho trágico. O camarada, de 37 anos, era sujeito bicho-homem no pior sentido da espécie. Não podia ver um rabo de saia para se portar feito galo dono de terreiro. E o Lima tinha um talento incrível para atrair galinhas. No encalço dele, tão cheio de penas, uma dúzia da mesma plumagem para as indecências sem compromisso.

Não era o caso de Lucinha, mulher à moda antiga, em busca de amor e sexo num só coração. Filha de pais apaixonados, em Bodas de Diamante, farmacêutica, Lucinha havia completado 28 anos quando conheceu o Lima, instrutor de academia das mais chiques. Foi numa festa junina. Ela já estava sozinha há quase dois anos, depois de sofrer grande desilusão nas mãos de outro sujeito besta, taxista, estúpido e mulherengo. Como sempre, mesmo sem grandes vaidades, estava linda.

Lucinha nem precisava usar nenhum tipo de maquiagem para exibir o rosto perfeito, com olhos grandes, castanhos claros, e lábios carnudos. Nariz desenhado a mão, orelhas pequenas e cabelos cheios para o alto. Usava vestido florido, rodado e bem comportado. Ainda assim, impossível não deixar à mostra a perfeição do corpo negro. O personal, todo enrolado com uma porção de donas moderninhas, ali, só teve olhos para a Lucinha.

Chegou macio, galante, como só ele sabia e ganhou a doutora, carente, muito afim de encontrar novo amor. O Lima ficou maluquinho pela “moça pra casamento” – foi o que disse ao colega de salão de ginástica. “Chega uma hora que a gente quer é um pouco de paz. A vadiagem também cansa, né não, Marcelão!?” O amigo recém-casado, feliz da vida, deu a maior força para o Lima. “É isso aí, Limão!”.

A fidelidade do Lima durou sete meses e 18 dias. Bastou pintar uma periguete da Zona Sul, chegada num sexo casual, para o instrutor chifrar a Lucinha. Daí, trair e coçar foi só começar. Lima, casado, voltou ao velho esquema dos quadris mais oferecidos. Lucinha descobriu e ficou em frangalhos. Chorava todas as noites mais uma desilusão no amor. No entanto, não tinha coragem de tocar no assunto. A paixão tem suas lá as suas tolices.

Chegou a pensar que o problema estava nela e tentou fazer de tudo para salvar o casamento. Comprou novas lingeries e aprendeu a fazer novos pratos para o Lima comer cada vez melhor em casa. Nada. Cachorrão, o sujeito queria mais e mais fora de casa. Esgotada, fora de si, a farmacêutica aplicou sonífero no suco de gabiroba em jantarzinho especial. Amarrou o sujeito nu na cama e cortou-lhe sem dó os documentos.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 23/4/12

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Depois do cinema, o 'Buteco'


 Ainda que eu prefira os cinemas, não dá para negar que o Comida di Buteco é uma beleza. Nesta edição, o queijo (foto) é o ingrediente obrigatório nas criações. Sábado passado estive com alguns passageiros entendidos do assunto. O chef Fábio José Pires, de 29 anos, conta com satisfação os 59 pratos vendidos na estreia do Bar Casa Velha. “Nas tranças da imaginação”, por R$ 22,90, feito com lombo, queijo, batata, molho de alecrim e cebola, fez a alegria da banda Timbalada, que compareceu à Rua Além Paraíba, no Bairro Lagoinha, depois de show pelo Axé Brasil. Só na primeira noite de festival, das 17 às 0h, a comerciante Márcia Moreira, de 45, calcula 400 pessoas na esquina de Rua Jequery, em ponto da família desde 1973. O prato do chef promete.

O vendedor de automóveis Marco Aurélio Gonçalves, de 43, acompanha o evento desde sua primeira edição, em 2000, quando eram apenas 10 bares, e diz que o melhor é o profissionalismo que existe hoje entre os concorrentes. “A cerveja agora é mais gelada e o tira-gosto é mais caprichado. Sem falar que o atendimento melhora e os banheiros nunca foram tão limpos”, compara. Reclamação mesmo só com os preços que, para ele, “estão cada vez mais salgados”. Com o livrinho do festival no bolso da camisa florida, estufada, o comerciante já se programou para viver verdadeira maratona até 13 de maio. “Primeiro, procuro prestigiar os estreantes. Tem muita gente boa, desconhecida”, diz.

No Bairro Caiçara, na Região Noroeste de Belo Horizonte, parece Copa do Mundo para o Bar do Véio, campeão de 2007 e vencedor de higiene (2003 e 2004) e atendimento (2005). A tarde de sábado de sol é de casa cheia, gente bonita e exigente. Por volta das 15h30, mesa livre só mesmo na calçada da Rua Itaguaí. A estudante de Administração, Iara Silveira Rodrigues, de 22, saiu do Bairro São Geraldo para experimentar a mais recente invenção da casa: “Espetando Bolinha no Bar do Véio” – prato com almôndegas empanadas e espetinhos de frango com queijo.

Para Iara, o melhor deste ano é o queijo minas como ingrediente obrigatório. Luisa Duarte Pimenta, de 27, do Bairro da Graça, há três anos acompanha o festival e aprovou o prato do concorrente do Caiçara. A professora vê no evento grande oportunidade de valorização das “boas coisas de Minas”. Já para a estudante de odontologia, Bárbara Gonçalves, de 20, o melhor é que a competição apura não só a qualidade dos botecos, mas, também, o paladar da clientela, cada vez mais exigente. Violeta e eu já anotamos o endereço de 10 bares concorrentes. Vamos com os amigos conferir o que eles armaram para esta edição. Depois de um cineminha, claro.

Confira a lista completas da 13ª edição do Comida di Buteco 2012:
http://www.comidadibuteco.com.br/belo-horizonte/botecos/

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 18/4/12

domingo, 15 de abril de 2012

Hoje tem espetáculo!

Hoje, às 20h, tem apresentação do grupo de marmanjos mais serelepe do teatro brasileiro. Os sem vergonhas, sob a direção de Guilherme Leme, montagem da Cangaral Produções Artísticas, vão endoidar o público de São Gonçalo Do Pará, na Região Oeste de Minas Gerais. Na foto, André Prata, Jefferson da Fonseca Coutinho, Maurício Canguçu, Ilvio Amaral, Leri Faria e J. Bueno.

sábado, 14 de abril de 2012

A menina das flores


Até onde você iria para alcançar uma flor? A mineira Livia Echternacht Andrade, de 28 anos, foi longe. Foi à Rússia em busca de exsicatas (amostra prensada e em seguida seca numa estufa) de sempre-vivas. Nascida em Juiz de Fora, e vivendo em Belo Horizonte desde os 12 anos, a estudante tem andado até pela flora brasileira. Doutoranda pela Universidade de São Paulo (USP), com cotutela do Museu de História Natural da França, a jovem pesquisadora, além de Inglaterra, Holanda, Suécia, Dinamarca e EUA, já percorreu Paris, Berlim, Genebra e São Petersburgo no rastro de eriocauláceas. No Brasil, Livia esquadrinhou cerca de 1 mil quilômetros da Serra do Espinhaço, que se estende por Minas Gerais e pela Bahia. Estudiosa, lazer só mesmo entre uma flor e outra, nos riachos e cachoeiras que correm montanhas. Perigo também em caminhos de muitos percalços.

Não podia ser diferente. Foi numa casa na Alameda das Petúnias, no meio da mata, terra de macacos e esquilos, que o Estado de Minas encontrou Livia. No Bosque do Jambreiro, em Nova Lima, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, durante pausa nos relatórios, a bolsista relembrou histórias da paixão pelas plantas que veio cedo, ainda adolescente, com os acampamentos na Serra do Cipó. Incentivada pela mãe, médica e professora, veio a entrega ao curso de biologia da UFMG: “Logo que comecei a estudar, percebi que havia uma defasagem muito grande em relação à biodiversidade vegetal e decidi trabalhar com a flora na graduação”, conta.

Fora as disciplinas básicas, foram três anos de inventoriamento de cerca de 600 espécies na Estação Ecológica da Mata do Cedro, em Carmópolis de Minas, na Região Centro-Oeste do estado. Logo depois da monografia aplicada, em 2006, Livia emendou mestrado no Museu de História Natural, em Paris, com dissertação voltada para as eriocauláceas da Serra do Espinhaço – uma das áreas mais ricas do mundo em biodiversidade. “São mais de 2 mil espécies na vegetação da serra”, ressalta. Só da família de sempre-vivas (eriocaulaceae) estudadas por Livia são cerca de 400, sendo a maior parte de microendêmicas.

Para a cientista, é muito estimulante percorrer terras estrangeiras em busca das pequenas flores extraídas do Brasil. “Mais da metade dos tipos coletados aqui estão nos herbários estrangeiros”, revela. Livia diz que os grupos brasileiros de pesquisas estão se sobressaindo na Europa. “A USP foi a primeira universidade brasileira a desenvolver uma linha de pesquisa com a flora da cadeia do Espinhaço. É uma universidade pioneira na botânica no Brasil”, elogia. Em junho, com o apoio da UFMG, a bióloga encerra sua tese. “Quero continuar com o trabalho de pesquisa e com o estudo da biodiversidade”, planeja, sem esconder o desejo de se casar e de ser mãe. “Antes preciso de um emprego, não é!?”, sorri. A intenção da doutoranda é ganhar as salas de aulas, enquanto se prepara para os concursos de entrada em universidades públicas.

Nem tudo são rosas Politizada, atenta ao crescimento de sua terra natal, Livia Echternacht tem olhar apurado e crítico no que se refere ao meio ambiente – para ela, um grande paradoxo do Brasil emergente. Se por um lado, nos últimos anos, nunca houve tanto cuidado com a pesquisa, por outro a destruição das reservas naturais do país nunca foram tão assustadoras. “Ao mesmo tempo que temos bolsas e financiamento para a pesquisa como jamais tivemos, a destruição da natureza nunca foi tão acelerada. Provavelmente centenas de espécies são extintas sem ao menos serem descritas”, lamenta.

Entre os campos visitados pela menina das flores, a Amazônia não podia ficar de fora. Os olhos verdes de Livia brilham para falar da imensidão que a fez suspirar ainda mais fundo. “É o único lugar do mundo onde você pode estar a 200 quilômetros de distância de qualquer cidade. Um ambiente de muitas riquezas, onde a flora e a fauna, infelizmente, ainda são pouco estudadas”, lembra. Além das questões políticas e econômicas, a bióloga fala das dificuldades e impedimentos de trabalho percebidos na floresta amazônica em 2008 e 2009.

“Quando se fala em Amazônia as pessoas costumam pensar apenas em mata. No entanto, há uma diversidade enorme de ambientes”, diz. Durante a semana que passou em campo nas proximidades do Rio Uatumã, no entorno da Usina Hidrelétrica de Balbina – duramente criticada por especialistas como o maior desastre ambiental da história do Brasil, nos anos 1980 –, Livia comenta a complexa logística de apoio, necessária ao trabalho dos pesquisadores na região. “Aqui no Espinhaço, posso trabalhar em campo na companhia de uma só pessoa. Lá, são necessárias equipes de dezenas de pessoas”.

Da Bahia à Rússia


No rastro das plantas raras, aventuras não faltam na vida de Livia, que já teve de beber muita água “em copinhos de bromélias”, durante as caminhadas mais longas por lugares desconhecidos. Em Jequié, na Bahia, em 2009, a bióloga conta ter vivido sufoco em local de desova de cadáveres. “Subimos a montanha numa trilha a pé. Depois da coleta, voltamos por outro caminho e saímos atrás de umas casinhas. Só seria possível voltar à estrada passando por elas. A gente se identificou como botânicos, mas os moradores não queriam deixar a gente passar. Por fim, uma velhinha pegou no braço do meu colega e perguntou: ‘Vocês não mataram ninguém não, não é?”.

Também foi na Bahia, em Gentio do Ouro, que a pesquisadora viveu momento emocionante ao encontrar comanthera floccosa, espécie branca das mais raras de sempre-viva. Do sol escaldante do Nordeste do Brasil ao frio de rachar os lábios na Europa. Em 2010, foram 15 dias num herbário em São Petersburgo, na Rússia. “A experiência foi incrível. Os russos foram os primeiros a descrever a diversidade de eriocauláceas no Brasil. A coleção recolhida no século 19 estava muito desatualizada. Lá, pude identificar centenas de espécimes que não estavam identificadas com tal”, conta. Livia ressalta a importância da identificação dos tipos para a ciência. “É preciso ver o tipo para entender como é a espécie”.


Planta em risco de extinção

Sempre-viva é o nome popular dado a várias espécies. Vem da aparência viva de seu conjunto de flores, mesmo seco, tempos depois de colhido. As principais famílias comercializadas são as euriocauláceas e as xyridáceas. A principal região de ocorrência dessas famílias é a cadeia do Espinhaço. Elas brotam nos campos rupestres, um ecossistema composto por rochas expostas e com influências da mata atlântica e do cerrado. Geralmente, surgem em altitudes superiores a 900 metros. Além de sua importância econômica, as sempre-vivas contribuem para a biodiversidade do Vale do Jequitinhonha. Sua comercialização desordenada representa risco de extinção das espécies. Está em curso o Plano Nacional de Conservação de Euriocauláceas pelo Ministério do Meio Ambiente. Livia Echternacht faz parte da equipe de cerca de 40 pesquisadores que elaboraram 54 ações prioritárias de preservação até 2016. O grupo realiza simpósio em Diamantina nos próximos dias 23 e 24.

Estado de Minas - Jefferson da Fonseca Coutinho - 14/4/12
Foto: Gladyston Rodrigues

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Made in China



Gosto dos chineses. Muito. Não entro no assunto da falsificação ou do contrabando. Menos ainda se os produtos vindos de lá prejudicam o comércio neste ou em qualquer outro país. Não sou economista, empresário e, menos ainda, especialista em comércio internacional. Sou cidadão trabalhador, pagador de tributos, que, aos 8 anos, começou a vender jornais nas ruas para ajudar a família. E é justamente na questão da labuta que me identifico com os chineses.

Do pouco que sei da cultura dos mocinhos e mocinhas de olhos apertados, não receio em dizer: é gente que jamais faz corpo mole. Heng, meu amigo chinês, de 32 anos, é das pessoas mais exemplares que conheço. Diferentemente de muitos brasileiros – que adoram um barranco e uma mamata –, os chineses não fogem à luta. Nisso, eles têm a minha admiração. Não se esforçam por necessidade, simplesmente. E sim, por brio e vocação.

Envergonha-me ver a quantidade enorme de jovens brasileiros, preguiçosos, encostados nos pais, sem se importar com o duro que estes sujeitos dão para não deixar faltar comida e boa educação à mesa. Domingo, fui almoçar na casa do Aldeir, no Bairro Dona Clara. Ele é divorciado e pai de dois marmanjos de mais de 20 anos. Com prazer e alegria, meu amigo passou a manhã na cozinha, preparando o almoço para os filhos e seus convidados.

Violeta e eu ajudamos com as carnes, com a salada e com a massa. Enquanto isso, a juventude, que levantou só lá pelo meio-dia, fervia no videogame. De pernas para cima, à espera de tudo na mão, a tempo e a hora. Caramba. Não pode estar certo. Nem deram as caras na cozinha para oferecer ajuda. Minto. Foram até lá. Para detonar a geladeira e deixar ainda mais sujeira para o pobre do Aldeir limpar.

Aquilo me chateou sobremaneira. Mesa farta, toda arrumada no maior capricho pelo amigo descasado, quarentão e bom pai de família. Calado – afinal, estava na casa dos outros –, imaginei que os marmanjos iam, ao menos, ajudar na limpeza da cozinha depois da comilança. Nada. Nem um copo lavado pelas mãos do futuro do país. Aldeir e eu passamos mais de hora para ajeitar as louças. O amigo insistiu: “Deixe disso, Josiel. Você e Violeta são convidados”.

A gente não podia deixar o Aldeir na mão. Era serviço demais para ele sozinho. Quando terminamos, não dei conta e tive que perguntar: “Seus filhos não ajudam, Aldeir?”. A resposta me fez pensar ainda mais nos chineses. O companheiro, boa praça até, sorriu e disse: “Querem é aproveitar a vida, Josiel. São incapazes de passar uma vassoura na casa. Não peço. Fico na esperança de um dia eles acordarem pra vida. É a juventude de hoje, meu amigo”.

Estamos perdidos. É o que posso crer. Que juventude é essa que não tem noção da importância dos menores gestos de ajuda dentro da própria casa? Heng, amigo chinês em Belo Horizonte desde 2010, ainda não domina o português. Mas soube o suficiente para conversar comigo sobre o assunto na segunda-feira. Disse-me que a falta de atitude assim, como lá na casa do Aldeir, é uma vergonha para o povo chinês. “Todos se ajuda, Josié! Todos!”.

Falou e disse, Heng. Salve a China!


Bandeira Dois - Josiel Botelho - 11/4/12

segunda-feira, 9 de abril de 2012

O homem que não fazia questão


Batata e os colegas de obra viviam de sonhar com a mulher do patrão. Dona Leonor se aproveitava, já que o marido, Ludovico, há tempos, não era de comparecer entre as paredes do casão em que moravam. A bela e fogosa dona, dos seios fartos e das pernas roliças, gostava tanto de se saber desejada, que não somava semana sem dar as caras na construção. Quando o Ludovico não estava, claro – para não dar bandeira, era ela quem cuidava da agenda do marido, agiota e construtor de ocasião.

A coisa toda teve início numa viagem do Ludovico com um amigo afeminado, colunista social, para San Francisco. Por telefone, ele orientou: “Aqui tá osso. Volto só mês que vem. Você vai lá na obra do Castelo e me pega um dinheiro com o Batata, que ele tá me devendo. É só o juros: R$ 317. Conta direito pra ver se tá certo, hein!?”. Sem filhos, a coroa nunca gostou de se envolver nos negócios do companheiro, muito sistemático. Vez por outra, não tinha jeito. E lá se foi ela para o predinho de quatro andares, em construção.

Leonor estacionou o carrão branco de cabine dupla e desceu absoluta para cruzar o tapume. Os operários chegaram a apertar os beiços para o assovio em coro. Logo que perceberam se tratar da mulher do patrão afetado travaram o sopro. Em roupa de ginástica, coladinha no corpo suado, cabelos grandes, negros, amarrados para cima, com decotão generoso e calça da moda, sem marca de peça íntima, a gostosona caminhou macio. “Isso é que é mulé! Que belezu... Ai, Jesus!!!”, pensou alto o sujeito do último piso, que quase despencou do andaime, com a visão do paraíso.

O Batata não conseguiu tirar os olhos do decote e dos quadris do monumento. “Batata? Seu Batata... Tudo bem?”, quis saber Leonor, charmosa. Ele, aturdido, mandou na lata: “A senhora desculpa, mas é que nunca vi na vida mulé mais gostosa que a senhora! Tá aqui o dinheiro do patrão”. Leonor recebeu o envelope e tentou fazer cara de sem graça. Em vão. Carente de homem, deixada sempre na mão pelo tal Ludovico, a boazuda não conseguiu esconder a satisfação pela sinceridade do almoxarife. Juntou o sujeito num canto de cimento grosso e deu-lhe chave de pernas de cinema.

Daí em diante, generosa, ao menos uma vez por semana, Leonor dá mole na obra para o operariado. Depois do Batata, veio o Agenor, o Lucélio, o Careca, o Jonas, o Elber, o Canarim, o Cabeção e o Zé Maria – aquele que quase caiu do andaime. O predinho do Castelo já está quase acabado. E já tem planta nova aprovada na prefeitura para o lote ao lado. Ludovico, viajante, agiota profissional, está cada vez mais cheio da grana e de trejeitos. Já a mulher, serelepe, decidiu dar de grila o que o marido não faz mais questão.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 9/4/12

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Heleno: gênio ou craque problema?



É muito bom sair do cinema depois de assistir a um filme brasileiro de qualidade. Ainda não temos a sensibilidade dos argentinos para falar de coisas simples. Tampouco os recursos tecnológicos dos norte-americanos ou a delicadeza dos iranianos, é verdade. Contudo, estamos avançando bastante na arte de amarrar boas histórias. É o caso de Heleno, dirigido por José Henrique Fonseca, que conta, em preto e branco, o drama de grande estrela do nosso futebol nos anos 1940. Trata-se de Heleno de Freitas (1920-1959), mineiro de São João Nepomuceno, de vida bastante conturbada dentro e fora dos gramados.

O jogador sofreu com sífilis, doença que o enlouqueceu. E o levou à morte, aos 39 anos, num sanatório em Barbacena. Para muitos, obcecado pela vitória dentro das quatro linhas, Heleno foi “gênio” e “craque problema”. Em 235 partidas pelo Botafogo, entre 1940 e 1948, o atacante marcou 209 gols. No estrangeiro, pelo Boca Juniors (Argentina) e pelo Junior de Barranquilla (Colômbia), Heleno não avançou. No Brasil, depois dos tempos de estrela maior do Botafogo, até pareceu dar novo fôlego à carreira no Vasco. Mas, a partir de 1952, decadente, Heleno viu a vida se esvair num sopro.

Há muito para ser dito sobre o filme. Especialmente sobre o roteiro acertado, não linear, sem grandes firulas ou invencionices com a bola. Diretor e roteiristas, ainda que com boas doses de ficção, optaram pela vida do craque fora dos gramados, nos bastidores e na relação de Heleno com suas paixões – com ele mesmo, particularmente. A produção encontrou ator à altura do desafio: Rodrigo Santoro. O intérprete “incorpora” Heleno e repete a extraordinária performance de Bicho de sete cabeças, de 2001. Em comum nos dois longas a loucura.

Além do protagonista, da fotografia e do roteiro, as interpretações do filme são outros grandes acertos da obra. Angie Cepeda, a cantora amante, encanta e convence em cenas por demais difíceis. A bela atriz colombiana de Pantaleão e as visitadoras, de 2000, mostra timing e carisma ainda mais maduros. E, para minha surpresa, topo com Maurício Tizumba – meu passageiro das antigas, ator e músico de respeito em Minas Gerais – fazendo bonito na fita. O moço tamboreiro , que já foi meu vizinho, está mandando cada vez melhor na telona.


Bandeira Dois - Josiel Botelho - 4/4/12

segunda-feira, 2 de abril de 2012

O mago da cena

Arquiteto é pouco. Um mestre das artes cênicas de Minas. Nos últimos 50 anos, são bem poucos os bons espetáculos produzidos em Belo Horizonte que, direta ou indiretamente, não tiveram a participação de Raul Belém Machado. Seja no teatro, cenário, figurino, objetos ou adereços projetados por ele, seja pela presença de algum de seus inúmeros aprendizes na ficha técnica. Professor dos principais cursos de arte da cidade, vindo de Araguari, no Triângulo Mineiro, Raul entra em cena no fim dos anos 1960 para mudar o conceito de cenário e figurino no Brasil. Este mês, ao completar 70 anos, o cenógrafo que já foi carnavalesco tem muitas razões para comemorar: câncer combatido – que quase o fez sucumbir no ano passado – e a agenda retomada por força produtiva sem igual.

Antes de Raul Belém Machado, as roupas para a cena vinham de casa e os móveis, emprestados ou doados por artistas e amigos. Recém-formado em arquitetura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Raul cria o cenário da montagem Procura-se uma rosa, de Gláucio Gil, sob a direção de Carlos Alberto Ratton. Em seguida, ambienta espetáculo dirigido por Rogério Falabella: Geração em revolta, de John Osborne. A partir do encontro com o Teatro Experimental (TE), de Jota Dangelo, emenda um trabalho no outro e dá projeção ao profissional de cenário e figurino no tablado nacional. Trabalho e dedicação reconhecidos em Raul Belém Machado – O arquiteto da cena, lançado pela Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, em 2009. O livro faz parte da memória do Palácio das Artes, principal palco da capital mineira, onde Raul passou a maior parte de sua carreira.

“Hoje, todos os produtores são cenógrafos e figurinistas. Também não pode ser assim. Isso não é bom”, critica, defendendo mais apuro e cuidado técnico com os espetáculos. Licenciado da Fundação Clóvis Salgado (FCS), inquieto, retoma o ritmo intenso de produção, depois de árdua batalha pela vida. Nas redes sociais, criou-se corrente de fé pela saúde de Raul. Amigos, fãs e ex-alunos acompanharam notícias e torceram por sua recuperação. Valente, amante da vida, os três últimos anos não foram fáceis para o arquiteto. “Primeiro, um infarto, depois uma picada de cobra, uma jararaca adulta, e, no fim de 2010, o câncer”, conta, certo das boas razões para não se abater. O novo amor e o amparo da família, fundamentais para a sua recuperação.

No apartamento no Bairro Serra, Região Centro-Sul de Belo Horizonte, na prancheta, esboços para o futuro: outra morada, em lugar mais apropriado para a idade que chega, e muitos trabalhos. Uma nova Carmen, de Bizet, para o Teatro Castro Alves, em Salvador, com direção de Francisco Mayrink; um espetáculo de Nelson Rodrigues e a recuperação de importante casa brasileira de espetáculos – segredo guardado a sete chaves. O escritório de arquitetura cênica e cenotécnica de Raul vai bem, cheio de propostas, bem no ritmo de sua recuperação. Ao lado da parceira Mariluce Duque e de outros arquitetos agregados, Raul comenta que há muito a realizar. Ainda mais agora, longe do Centro Técnico de Produção (CTP) da FCS, criado por ele em 2004, nos galpões de uma fábrica de tecidos, em Sabará, Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Empenho e decepção

O CTP é um capítulo à parte na biografia de Raul Belém, com 30 anos de serviços oficiais prestados ao estado. Lá, espaço idealizado pelo arquiteto, professor e diretor, para armazenamento do acervo da FCS, tudo foi pensado para funcionar também como ateliê de criação e execução de cenários e figurinos e ambiente de ensino de maquinaria cênica, alfaiataria, maquiagem e criação de adereços. Raul não esconde a mágoa de ruptura melancólica com o departamento: “Tem uma ferida aberta que não vai cicatrizar. Por um jogo político perverso por parte de alguns indivíduos, fui humilhado, desrespeitado e posto nos corredores”, desabafa. Sem entrar em detalhes, diz apenas que, operário da arte, “leal e íntegro”, não costuma olhar para trás e ver maldades. “Tudo na fundação era ‘Raul dá conta’. Dois meses para colocar de pé uma ópera, que exigia no mínimo três. Quantas vezes, sozinho, no sábado, peguei um chapéu para fazer às 14h e terminar às 22h? Não foram corretos comigo”, lamenta.

Os aborrecimentos nos dois últimos anos na FCS fizeram com que Raul questionasse a sua opção por ficar em Belo Horizonte. “Sempre me perguntaram por que fiquei em Minas. Pensava: ‘Por que a pergunta? Será que Minas não merece seus artistas? Tive várias oportunidades para ir morar no Rio ou em São Paulo. E ouvia sempre as pessoas dizendo que ‘isto aqui é pequeno demais’. Nunca concordei com esse pensamento. Hoje, depois de tanto desrespeito, tenho minhas dúvidas”, reconsidera. Mesmo com o coração em Belo Horizonte, Raul é sempre lembrado fora dos limites do estado. Foi dele a aula inaugural em 2010 na SP Escola de Teatro, em São Paulo, no primeiro centro de tecnologia de espetáculos do Brasil. O arquiteto participou ainda do Resgate e Desenvolvimento de Técnicas Cênicas, projeto do Instituto Brasileiro de Arte e Cultura (Ibac), com apoio da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Estado de Minas - Jefferson da Fonseca Coutinho - 1/4/12
Foto: Renato Weill

O doutor e a prostituta


Na noite em que Abigail nasceu não havia uma única estrela. No entanto, no instante em que ela escorregou do ventre de Isadora, um meteorito negro, vindo das profundezas do céu, arrebentou um cômodo do imóvel da família no Norte de Minas. Os moradores da rua sem saída correram para ver o estrago: de um lado, na sala, cratera com quatro metros de diâmetro; do outro, no quarto de casal, de olhos muito vivos, Abigail, pesando 3 quilos, trazida ao mundo pelas mãos de velha parteira. A mãe, surda-muda, em horas, teve os seios murchos e sentimento estranho, que a fez temer o rebento. Mau presságio.
Filha única de Isadora e Dirceu, delegado, Abigail ganhou fama no lugarejo: “Que cegonha nada... a filha do doutor veio foi no rabo do cometa”, comentavam em boca miúda. A menina cresceu e com ela o diabo no corpo. Para o desespero do pai, a sujeita não gostava de usar calcinhas e vivia em saias curtas a provocar tudo o que era macho do lugar. Por ciúmes do pai – muito agarrado com a mulher –, a garota colocou veneno de rato na comida da mãe. Enquanto Isadora agonizava, sem voz para pedir ajuda, a filha assassina passou-lhe a mão pelos cabelos e ainda soprou canção de ninar: “Dorme, mamãe...”
Abigail não só ajudou a preparar cuidadosamente o corpo da mãe, como fingiu chorar tristeza, abraçada ao pai, ao lado do caixão. Arrasado, o delegado sofreu horror a ausência da companheira. Já Abigail seguia rasteira a se enrabichar às escondidas com os rapazes mais corajosos da região. Pouco tempo passado, aos 19 anos, a coisa ruim resolveu se mudar para Belo Horizonte. Depois de fazer amizade com gigolô na internet, decidiu vencer na cidade grande. “Com o seu tipo, vais fazer o maior sucesso por aqui, princesa...”, escreveu o pilantra, vendo as fotos da sujeita. Não deu outra: Abigail roubou economias do pai, cada vez mais atento às tramas da filha, e alugou apartamento no Bairro de Lourdes.
Carioca, o tal “amigo” das redes sociais, cuidou de tudo. Até buscou a nova mercadoria na rodoviária: saltos de meio palmo, mini-saia rodada, blusinha de oncinha, decotada e os cabelos aloirados. Levou-a para o novo apartamento e, lá, os dois passaram o dia em indecências. “Onde se ganha o pão não se come a carne, mas você é o diabo, princesa! O diabo!”, sussurrou Carioca, suando em bicas embaixo de Abigail. O primeiro cliente já havia pago adiantado pela “Ninfa Meteoro”, anunciada no site de encontros. Comprou-a pela foto de corpo inteiro. Na suíte 802 de hotel de luxo, em nova noite sem estrelas, findou-se a tragédia: o delegado fuzilou a filha para se matar em seguida.
Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 2/4/12