Jefferson da Fonseca Coutinho
Enviado especial
Belo Vale – Como no conto de
fadas, a abóbora se fez carruagem e levou, dos campos para os palácios
da cultura, “Lady Gaga” e suas meninas. Que não se engane quem pensa que
a bela cover, incorporada por Keila Fernandes, de 27 anos, sucesso do
momento, é a principal performance de Noiva do Cordeiro, comunidade de
Belo Vale, a 100 quilômetros de Belo Horizonte, na Região Central de
Minas. A superação é regra no distrito de 300 habitantes. Depois de mais
de século de preconceito, tempo em que mulheres de bem eram tratadas
como prostitutas, a comunidade venceu a segregação, ganha respeito e se
mostra referência multiplicadora de arte na região. Hoje, com 32
artistas qualificados por oficinas de dança, teatro e música, o Noiva do
Cordeiro Show, fundado em família, cumpre agenda intensa em projeto
itinerante de inclusão social. No mês passado, o quadro de Keila no
papel da conhecida intérprete norte-americana foi a sensação para mais
de mil pessoas emuma praça da cidade e ganhou a aldeia global,
movimentando as redes sociais nas ondas da internet. Mas no palco havia
mais. Além de Vânia, Elen, Tatiane, Glaiciele, Dayse e Daiane,
companheiras dançarinas de Keila, se apresentaram duplas de stand up,
repentistas, cantores e grupo masculino. Talento de quem resolveu
reescrever as cenas da vida e transformar a história de exclusão em uma
peça de sucesso. “A repercussão desse trabalho, para nós, é como ganhar o
mundo”, resume Flávia Emediato, de 27, coordenadora artística.
Vinte
quilômetros de estrada de terra separam a sede do município de Belo
Vale do povoado de Noiva do Cordeiro. Acesso difícil, que ainda impede o
avanço da comercialização de artesanato, lingerie e agricultura para
outras paragens. Celulares não funcionam. Telefonia fixa, só a de um
orelhão solitário. Mas, vencidos os tropeços do caminho, a hospitalidade
é à melhor moda mineira, como os antigos que dão valor ao sorriso e ao
aperto de mão. A beleza da estradinha de campos verdes e cheiro cítrico –
garantido pelos pés de tangerina ponkan, da qual a região é grande
produtora – se repete em corpo e alma na família de dona Delina
Fernandes Pereira, de 67.
Destacam-se a liberdade, a beleza e o
carisma dos homens, das mulheres e das crianças do vilarejo. Assim como o
poder produtivo da comunidade, onde cada um trabalha pelo bem de todos.
As moças, estrelas no palco, nada têm de estrelismo: pegam pesado na
lavoura, na arrumação da casa e na confeccão de roupas. Já os rapazes,
bons de cena, além de trabalhar também na enxada levantam paredes e
embalam seus filhos. A mesa posta no salão comunitário exibe a fartura e
o prazer em compartilhar com as visitas.
Casa de educação
exemplar, livre de imposições e sem a assombração da culpa, as
obrigações são naturais apenas às carências comuns. Ninguém foge ao
trabalho. Arodi Fernandes, de 42, o Van Damme, diz que ali, mesmo
desgarrados das igrejas, todos estão cada vez mais próximos de Deus.
“Aqui, a gente se apega ao que entendemos de mais importante na palavra
de Deus: o respeito e o amor ao próximo”, resume.
Na comunidade,
de fato, percebe-se que todos os irmãos se amparam. Rosalee Fernandes
Pereira, de 47, filha de dona Delina, aprendeu com a mãe a liderança de
quem ama e protege. A líder comemora o salto da família, próspera e em
paz. Especialmente, no momento, o avanço artístico da trupe Noiva do
Cordeiro Show. “É tempo de colher. O primeiro passo foi o trabalho de
capacitação com o teatro, com a música e com a dança. Agora, com o grupo
capacitado, podemos mostrar para o município que todo mundo é capaz.
Nosso projeto busca a inclusão social. É uma porta de oportunidades para
as novas gerações”, diz.
O palácio do futuro
Para
o ator, diretor e dramaturgo belo-valense Walmir José, nome de destaque
das artes cênicas de Minas, performances como as que estão rodando o
mundo pela internet ainda estão muito distantes do verdadeiro potencial
do grupo. Walmir acredita que os artistas que ele, professor e grande
admirador da comunidade, ajudou a formar em Noiva do Cordeiro, bem
orientados, vão ainda mais longe. Desde 1999, com festivais amadores, o
teatro é objeto de estudo entre os integrantes da família Fernandes.
Agora,
as palavras do veterano encenador já ecoam no futuro. Com projeto de
Raul Belém Machado e Mariluce Duque, o Palácio da Cultura Chico
Fernandes está para sair do papel. As plantas sobre a mesa refletem o
empenho de Rosalee na captação de recursos e na realização da obra,
pré-aprovada pelo Ministério da Cultura. O projeto do centro cultural de
dois pavimentos, com 1,6 mil metros quadrados de área construída, prevê
estacionamento, salões de ensaio, sala multimídia, ateliê de produção,
três camarins, elevador, auditório e teatro com capacidade para 200
pessoas. Rosalee sonha ter o espaço aberto para toda a população de Belo
Vale antes da Copa do Mundo.
Enquanto o palácio não fica pronto
para receber o público, o Noiva do Cordeiro Show, patrocinado pela
Companhia Vale, se apresenta como pode, com seus shows e oficinas pelos
distritos de Belo Vale. Todos os 32 integrantes se desdobram nas mais
variadas funções dentro e fora das quatro paredes da cena itinerante.
Eliene Leite Fernandes, de 28, entre outras tantas tarefas, cuida da
comunicação do grupo. Dedicada, cheia de orgulho dos parentes atores,
dançarinos e cantores, Eliene, braço direito da líder Rosalee, organiza a
agenda e faz de tudo para garantir o sucesso das oficinas comandadas
pela cantora e professora Eda Costa – outra artista profissional que
agrega ainda mais valor ao projeto de inclusão da associação
comunitária.
Os olhos brilhantes de dona Delina
Keila,
a Lady Gaga da companhia, conta que o trabalho cover tem lhe trazido
muita felicidade. Vestida de vermelho, em figurino sexy inspirado na
musa internacional e produzido pelas costureiras da comunidade, a jovem
atriz vem fazendo a alegria da filha Ângela, de 5, e das outras crianças
do lugar. Já são cinco as coreografias em repertório. “A gente está
trabalhando para tentar trazer a essência da Lady Gaga, sempre muito
preocupada em combater o preconceito. O que combina com a gente, porque
já sofremos muito com isso. As pessoas não são só aparência. São coração
também”, ressalta. Keila diz que sua principal motivação é sua mãe,
dona Delina. “Ver os olhinhos dela brilhando quando estou no palco é
tudo na minha vida”, emociona-se. O marido, Marcelo, de 26, seu primo, é
dançarino do grupo e outro grande fã da superstar de Belo Vale.
Sorridente, de mãos firmes e cabeça erguida entre a parentada de várias
gerações, a matriarca se despede das visitas para retomar a liderança
serena, convencida de que todas as escolhas de sua vida foram acertadas:
“Eu já era tão feliz, meu filho, e nem sabia”.
Da discriminação ao reconhecimento
No
fim do século 19, Maria Senhorinha de Lima, natural de Roças Novas,
povoado de Belo Vale, se casou com o francês Arthur Pierre. Três meses
depois, infeliz, abandonou o lar e foi morar com Francisco Augusto
Fernandes de Araújo, onde hoje está a comunidade de Noiva do Cordeiro. A
atitude foi condenada e os dois, rotulados de pecadores, tiveram
amaldiçoada sua descendência por gerações. Nos anos seguintes, em toda a
redondeza, a atitude corajosa de Senhorinha ganhou mais olhares de
reprovação. Mas o casal tocou a vida, construiu casa e criou 12 filhos. A
situação se complicou novamente em meados do século passado, quando
Anísio Pereira, neto de Francisco e marido de dona Delina, fundou a
seita protestante Noiva do Cordeiro, que batiza o lugarejo, e converteu
toda a família, agravando as relações com parentes vizinhos e católicos.
Novo período de polêmica e perseguições. Em 1990, um rompimento
completo abalou a comunidade, permanecendo no local, que tem 46 moradias
e onde todos são parentes, apenas os que defendiam uma sociedade
temente a Deus, mas sem qualquer religião. Em 2007, o Estado de Minas
trouxe a público a história da família, que ganhou documentário de TV e
rodou mundo. Hoje, respeitada pela maioria dos belo-valenses, a
comunidade tem ajudado a promover a cultura na região.
Estado de Minas - Caderno Gerais - 22/4/12
Fotos: Beto Novaes/EM/D. A Press