Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

segunda-feira, 30 de julho de 2012

O bem pouco dos dias


O homem surrado pelas estações resolveu despachar a velha mulher em troca da empregada de vinte e poucos anos. Zé Donato pirou a cabeçorra vazia pelas carnes frescas e descobertas da sujeita desavergonhada. Dona Maribel, a esposa, dedicou mais de seis décadas ao casamento. Embalou filhos e netos. Viveu para a casa e para a família. Tratou das doenças do marido – até daquelas venéreas, que moravam entre as pernas das putas e que ele levava para casa. Difícil ter notícias de companheira como a boa dona de casa.

Menina do interior, aos 13 anos, Maribel foi apresentada ao futuro marido pelo pai, em Patos de Minas. Estava no lombo de uma mula, quando ‘seu’ Severo disse: “Essa é a minina que eu falei procê, Zé. Serve?” Serviu. Donato se casou com a moça e levou-a para morar e trabalhar em sua fazenda. Lá, em terras áridas, viveram por mais de 20 anos, até que Donato decidiu acompanhar os primos no rumo de Belo Horizonte. Passou no cobre as posses na roça, comprou lote e levantou casa no Bairro Carlos Prates, na Região Noroeste. Foi trabalhar com parente, num armarinho na Rua dos Caetés. Maribel esteve sempre presente, batalhando pela casa, pelos quatro filhos e pelos caprichos do companheiro.

A mulher fiel, chegada nas plantas do quintal, jamais conheceu outro homem. Já Donato nunca deu valor à família e vivia de enrabichar-se com as mais vagabundas e profissionais da cama. Com elas perdeu tempo, dinheiro e saúde. Maribel até fingia não saber, mas sentia na carne as sem-vergonhices do sujeito. O velho Donato se aposentou. Em casa, ocioso, além de mais estúpido, tornou-se ainda mais rabugento. Descobriu um tal comprimido azul e ficou impossível. Resolveu, agora, aplicar suas safadezas na mulher frágil e castigada pelo tempo. A velha Maribel viveu noites de terror ao lado do insaciável carcará.

A vida seguia até que uma nova empregada entrou para a família. Mulher carnuda e cheia de saúde, Elizete deu mole para o velho. Em menos de um mês na casa, a branquela assanhada já havia levantado a saia para o patrão uma dúzia de vezes. Donato perdeu o resto da lucidez no colo da empregada e passou a humilhar Maribel. Os filhos, ausentes, nada fizeram para ajudar a mãe, sempre muito silenciosa e reservada. O romance de interesses foi ganhando dimensões insustentáveis. Por fim, Donato deixou a casa de mãos dadas com Elizete. Foram morar juntos no Padre Eustáquio, bairro vizinho. Viajaram para a casa de praia, em Rio das Ostras, no Rio de Janeiro, e fizeram turismo no Nordeste do país – lua-de-mel.

Enquanto isso, dona Maribel, sozinha, dispensou a piedade dos filhos e continuou na casa que ajudou a construir. Sempre cuidadosa com as plantas, passou a dedicar-se exclusivamente às flores. Poucos meses depois da separação, o velho reapareceu doente e abandonado pela empregada. Donato tem câncer nos ossos. Hoje, é a velha Maribel quem cuida de suas necessidades e o leva à sessões de quimioterapia. Resta-lhe pouco. Bem pouco da vida.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 30/7/12

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Um inimigo do povo no Teatro Alterosa


Hoje e amanhã, às 21h, no Teatro Alterosa (Av. Assis Chateaubriand, 499 - Floresta), tem "Um inimigo do povo", de Henrik Ibsen (1828-1906), com adaptação e direção de Walmir José. No elenco, Jefferson da Fonseca Coutinho, Geraldo Peninha, Marcelo do Vale, Beto Plascides, Ana Amélia Cabral, Bianca Tocafundo, J. Bueno, Luiz Hermidas e Márcio Miranda. Rômulo Duque e Marisia do Prado assinam a produção. Abaixo, um pouco sobre Ibsen, um dos mais importantes nomes da literatura mundial.

Sem dúvida, é uma figura central no avanço da vida intelectual europeia, sendo considerado o pai do drama moderno. As suas peças são ainda muito atuais, continuando a ser encenadas em todas as partes do mundo. Diz-se que Ibsen é o dramaturgo mais encenado do mundo, a seguir a Shakespeare.
 
No total, Ibsen publicou 26 peças e uma compilação de poesia. Frequentemente, as suas obras dividem-se em quatro tipos:
  • Dramas nacionais-românticos e históricos
    Os dramas de Catilina (1850) a Os Pretendentes (1863).

  • Dramas de ideias
    A Comédia do Amor (1863), Brand (1866), Peer Gynt (1867) e Imperador e Galileu (1873)
     
  • Dramas contemporâneos realistasOs Pilares da Sociedade (1877), Uma Casa de Bonecas (1879), Espectros (1881) e Um Inimigo do Povo (1882).

  • Dramas psicológicos e simbólicos
    O Pato Selvagem (1884), Rosmersholm (1886), A Dama do Mar (1888), Hedda Gabler (1890), O Construtor (1892), O Pequeno Eyolf (1894), John Gabriel Borkman (1896) e Quando Despertamos de Entre os Mortos (1899).

Do Uol Educação, página 3, Pedagogia & Comunicação:

Henrik Ibsen, principal representante da literatura escandinava no século 20, dedicou sua vida ao teatro como diretor e autor. Ibsen era filho de um comerciante arruinado e, em 1844, foi para Grimstad, onde trabalhou como aprendiz de farmacêutico e estudou sozinho para entrar na faculdade de medicina. Ao fracassar no exame de admissão, abandonou a idéia para dedicar-se à literatura.

Em 1849, sob o pseudônimo de Brynjolf Bjarme, escreveu sua primeira peça, "Catilina", inspirada nas revoluções européias de 1848 e nos escritos do romano Cícero. No ano seguintes foi nomeado diretor do Teatro de Bergen e, em 1857, assumiu a direção do Teatro Norueguês de Cristiania (atual Oslo).

Casou-se com Suzannah Thoresen em 1858 e saiu do país em 1864, quando a Prússia invadiu a Noruega. Ibsen morou em diversas cidades européias, principalmente em Roma e Munique, até retornar a seu país, em 1891. Morreu em Cristiania, aos 78 anos.

Apelidado de pai do teatro moderno, criador do chamado "teatro de idéias", sua obra se caracteriza pelo estudo psicológico dos personagens (em especial os femininos), pela crítica à burguesia e ao capitalismo e pelo encontro do indivíduo com a sociedade.

Em 1863, fez sucesso com "A Matéria de que se Fazem Reis", ambientada na Noruega medieval e apresentada na Itália, onde escreveu outras três peças, entre elas: "Peer Gynt" (1865), uma crítica ao homem moderno através da trajetória de um aventureiro que abandona seus princípios morais em nome da fama; "Casa de Bonecas" (1879), sobre uma mulher que abandona o marido e os filhos para ser independente. Também fazem parte de sua obra "A Comédia do Amor" e "Os Pilares da Comunidade".
(Uol Educação - http://educacao.uol.com.br/biografias/henrik-ibsen.jhtm)

Leia mais em:
http://www.biografiasyvidas.com/biografia/i/ibsen.htm

quarta-feira, 25 de julho de 2012

As arapucas da vida


Na semana passada, sob o título "Cenas da prisão", escrevi sobre conversa séria, de homem para homem, que o velho Botelho, meu pai, teve comigo quando eu, ainda garoto, não tinha mais que metro e meio. Toquei em assunto delicado, de família: a prisão de parente muito querido, preso e condenado como traficante. Jovem, desmiolado, caiu em tentação com a ideia de dinheiro fácil e não deu outra: foi em cana e, mais tarde – mesmo depois de ter cumprido pena e nunca mais ter se envolvido com maconha –, morreu sozinho, doente, de desgosto.

Atendendo a pedidos, volto ao assunto. Luciana, leitora muito querida, moradora de Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, escreveu-me querendo saber mais sobre “as armadilhas do mundo”, ditas pelo velho Botelho e relembradas na edição passada de Bandeira dois. “Josiel, você falou em ‘armadilhas do mundo’... queria saber mais de você sobre isso, porque você sempre fala no seu pai com tanto respeito, que as lições dele devem ter sido muito boas mesmo para a sua vida. Não tenho pai. Nunca tive. Mas minha mãe também fala muito em armadilhas. Seriam as mesmas?” Certamente que sim, querida leitora.

Bem, Luciana... até hoje, budista, o velho Botelho fala em armadilhas. Obediente, discípulo, faço minhas as palavras dele também na educação dos meus filhos. Se entendi bem a lição sobre as arapucas da vida, posso afirmar que não há causa sem efeito. Causa boa, efeito bom. Não adianta querer colher morango, plantando limão capeta. O que vai, volta. Pense coisas boas, pratique o bem sempre, que, certamente, você vai estar protegido por um campo de força pura, limpa, benéfica. As armadilhas são armadas o tempo todo ao nosso redor pelos sujeitos fracos, sujos de alma e espírito. São muitos e nos rodeiam aos montes.

As más companhias são grandes responsáveis por boa parte das arapucas que encontramos pelo caminho. Não é fácil ter forças para evitar as tentações e os falsos amigos. É assim com quase todos os nossos vícios. O cigarro, a bebida, os mais tolos deles, começam assim, para fazer bonito em grupo. Bobagem. Não temos que fazer bonito para ninguém. Temos que ficar bem, em paz, conosco. O resto é conversa ruim da gente besta. Conheço muita gente sem valor. Aproveitadores das circunstâncias, vítimas da vaidade cega que aniquila. Pobres de espírito, corroídos por facilidades baratas. Estes, coitados, estão afundados na própria lama, armadilha de si mesmo. Identificá-los e mantê-los distantes é necessário pela boa saúde moral. Alguns, vampiros de energia, se distanciam naturalmente. Outros, insistem em nos rodear.

“Somos postos à prova o tempo todo”, disse-me certa vez o pai. De fato, vejo-me o tempo todo diante de exames aplicados pelo bem e pelo mal. Duas forças implacáveis, antagônicas, que se atracam sem cessar. É assim no trabalho, em família e na fé. Desde a fase adulta, venho praticando o patrulhamento diário de “viver para não se arrepender”. Falho muito, é verdade. Mas apenas naquilo que desconheço. Esforço-me para não repetir os mesmos erros. Na medida do possível, procuro viver em paz com a minha consciência, na incapacidade de fazer mal ao outro e aos meus eus. Acho que é isso, Luciana, um pouquinho do que aprendo todos os dias sobre as arapucas da vida. Meu carinho.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 25/7/12

terça-feira, 24 de julho de 2012

Walmir José, ator, professor, dramaturgo e diretor

 Walmir José Ferreira de Carvalho (Belo Vale MG 1948). Ator, diretor, dramaturgo e professor de teatro. Possui grande capacidade produtiva e se destaca com trabalhos no campo da dramaturgia. O compromisso pedagógico marca sua atuação à frente de importantes instituições de ensino de artes cênicas em Minas Gerais, e sua trajetória de forte caráter político o insere com destaque no processo de luta pelo reconhecimento da profissão do artista no Estado.

Walmir José inicia a atividade artística no teatro estudantil, na Escola Técnica Federal, nos anos 1960. Até 1973, integra o grupo Gruta, dirigido por Alcione Araújo e, posteriormente, ingressa no primeiro grupo profissional de Minas Gerais, o José Mayer Produções. Sua carreira inicia-se com o espetáculo Toda Donzela Tem um Pai que É uma Fera, direção de Alcione Araújo, em 1973. No ano seguinte, atua em Flicts, de Ziraldo; no espetáculo para o público adulto Lúcia Elétrica, de Cláudia de Castro; e em Dom Chicote Mula Manca, de Oscar von Pfuhl, peça dirigida e encenada por Pedro Paulo Cava, vencedora do Prêmio Profeta na categoria melhor espetáculo para o público infantil de 1974.

Nesse ano, Walmir José funda, com outros artistas de Belo Horizonte e em parceria com a Associação Mineira de Imprensa (AMI), o Grupo de Teatro AMI. O grupo constrói um teatro no centro da cidade e, em 1975, apresenta seu primeiro trabalho, a adaptação do texto Guilherme Tell, de Schiller, para o público infantil, que marca a estreia de Walmir na direção. A encenação seguinte, em 1975, é Lampiaço, o Rei do Cangão, texto de Walmir José.

Por sua capacidade produtiva e qualidade artística, o Grupo AMI torna-se um dos expoentes no cenário local. Até 1979, monta uma série de espetáculos, atingindo as maiores bilheterias da cidade de Belo Horizonte até então, o que possibilita a seus integrantes um período de intensa produção. Walmir José assina a direção de Um Inimigo do Povo, de Henrik Ibsen, em 1977, considerada a montagem mais audaciosa do Grupo de Teatro AMI; Um Edifício Chamado 200, de Paulo Pontes, em 1978, peça de maior público do ano nos teatros de Belo Horizonte; e Muro de Arrimo, também em 1978. Sobre a montagem de Muro de Arrimo, a crítica especializada do jornal Estado de Minas comenta: "...a mão segura e criativa do diretor, o conhecido teatrólogo Walmir José, que, sem prejuízo da liberdade essencial do ator, criou um espetáculo onde cada frase, cada gesto, funciona como uma partitura".1 O Grupo de Teatro AMI encerra suas atividades em 1979, com a montagem de Ponto de Partida, de Gianfrancesco Guarnieri, dirigida por Walmir José.

Em 1979, Walmir José é agraciado com o prêmio personalidade do ano, do Estado de Minas, na categoria teatro, ressaltando seu trabalho como diretor e dramaturgo e sua atuação no campo da gestão cultural, como idealizador e colaborador da Casa de Cultura do Vale do Aço (1978 a 1984).

Com o fim do Grupo de Teatro AMI, Walmir José trabalha em parceria com a Batangüera Produções, segunda empresa profissional de Minas Gerais, e monta o musical Saltimbancos, de Chico Buarque. Dirige, ainda em 1979, o texto de sua autoria Tupi or Not Tupi, eis a Nação, uma comédia de tipos brasileiros, com paisagem urbana e contornos sociopolíticos.

A direção que Walmir José realiza para Doce Companheira, de sua autoria, em 1981, é comentada por Luiz Carlos Bernardes: "Talvez propositalmente, Walmir José fez uma salada de estilos, em que predomina a ingenuidade de uma espécie de cordel urbano, mas há menções ao distanciamento brechtiano, além de soluções do teatro de revista. Quem sabe, deste despudor possa surgir uma dramaturgia de feições peculiarmente brasileiras ou mineiras?... A montagem mostra outra boa faceta do Walmir José diretor. Pois, se ele já mostrara uma faceta competente e séria [...] agora se revela capaz de dar a outra face do teatro, a descontração".2 Dirige Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues, em 1983.

No ano seguinte, é eleito presidente da Associação Profissional de Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversão do Estado de Minas Gerais (Apatedemg). Seu trabalho à frente da associação visa, prioritariamente, à representação política em âmbito estadual e nacional e à organização do sindicato da classe, criado em 1984, cuja presidência é assumida por Walmir.

Como diretor, dedica-se em 1985 a uma temporada de comédias de costumes. Dirige o Grupo Mineiro de Comédia na peça El Dia que me Quieras, com texto do venezuelano José Inácio Cabrujas, e assina a direção de O Pecado Capitalista, de Gugu Olimecha, comédia rasgada com situações e elementos característicos do estereótipo do brasileiro, que garantem entretenimento fácil.

Walmir José atua no espetáculo Lua de Cetim, dirigido por Pedro Paulo Cava, em 1986. A crítica do Estado de Minas Clara Arreguy comenta: "Walmir José é um ator no auge da maturidade. A dignidade, o respeito e o visível amor que ele dedica ao personagem são os responsáveis pela obtenção da mais alta dramaticidade em cenas que envolvem o público, mas sem permitir que ele abstraia a crítica a posturas que beiram a insanidade. É dono de uma técnica irretocável e faz uso dela para transmitir emoção viva".3
Data também desse ano a criação do Curso Profissionalizante de Teatro do Centro de Formação Artística (Cefar), da Fundação Clóvis Salgado, Palácio das Artes, cujo projeto nasce dentro dos seminários promovidos pelo Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões de Minas Gerais (Sated/MG), presidido na época por Walmir José. Com a experiência acumulada como professor de teatro em diversos cursos livres, Walmir assume, então, a coordenação da escola, em 1987.

Nesse ano, escreve o texto do musical No Cais do Corpo, marcado pela irreverência e leveza, e é homenageado pela Câmara Municipal de Belo Horizonte com a insígnia da Ordem do Mérito Legislativo Municipal pelos serviços prestados à cultura mineira.

Seu texto dramático Um Sobrado em Santa Tereza, que retrata o cotidiano de uma família típica do bairro boêmio e tradicional de Belo Horizonte, vence o Concurso Nacional de Literatura da Cidade de Belo Horizonte na categoria teatro, em 1989, e é encenado, dois anos depois, com Walmir José no elenco. O crítico Marcelo Castilho Avelar pontua: "O mérito maior é do texto... O texto é meigo, sincero, coloquial, conseguindo retratar um conjunto de vidas que fluem sem questionamentos maiores, carregadas de uma poesia que as personagens não percebem, mas o público identifica e aprecia".

Na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Walmir José participa da implantação dos cursos livres de teatro em 1993, e do curso de formação de atores, no ano seguinte, nos quais passa a dar aulas. Assumindo a direção da Escola de Teatro, participa ativamente do processo de criação do curso de graduação em artes cênicas da Ufop.

Em 1996, vence o Concurso Nacional de Literatura da Cidade de Belo Horizonte, na categoria dramaturgia, com São Paulo-Califórnia, encenado em 1998. O crítico Jorge Fernando dos Santos comenta: "Com uma história humana, repleta de realismo e sem abrir mão de boa dose de poesia, a peça emociona, diverte e leva o público a refletir sobre o sentido da vida humana. [...] Longe do lugar-comum, Walmir José nos deu um texto contemporâneo, que reflete a angústia do homem sem fazer panfletagem e sem apelar para o didatismo".5 Por esse trabalho, o autor ganha o Troféu Bonsucesso na categoria destaque/teatro adulto em 1998.

Dirige a turma de formandos do curso profissionalizante de teatro do Cefar na montagem da farsa popular A Terra Prometida, em 2001. Um ano depois, dirige nova turma de formandos, desta vez da Oficina de Teatro da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/Minas), na montagem de Morir del Cuento, do dramaturgo cubano Abelardo Estorino.

Assume, em 2006, a coordenação da Escola de Teatro da PUC/Minas, desdobramento da Oficina de Teatro da PUC/Minas, onde é professor desde o ano 2000. Atua ao lado de Adélia Carvalho em Erva Daninha, peça escrita pelos dois intérpretes, produzida pela Cia. Teatral As Medéias de Ouro Preto, e dirigida por Wilson Oliveira , em 2008. Nesse mesmo ano, Walmir José lança o livro Trilogia Mineira, coletânea de textos teatrais de sua autoria, que se passam em Belo Horizonte em períodos-chave da história do Brasil atual: Um Sobrado em Santa Tereza, São Paulo-Califórnia e As Mãos Entrelaçadas.

Em 2011, deixa a Escola de Teatro Puc Minas e volta ao texto de Henrik Ibsen – Um inimigo do povo, montado por ele em 1977 –, para nova adaptação e direção.

Notas
1. Muro de Arrimo: ainda o futebol. Estado de Minas, Belo Horizonte, 6 jul. 1978.
2. BERNARDES, Luiz Carlos. Boa montagem, a doce companheira deste texto. Estado de Minas, Belo Horizonte, 1981. Pano Aberto.
3. ARREGUY, Clara. Beleza e emoção em Lua de Cetim. Estado de Minas, Belo Horizonte, 1986. Artes Cênicas.
4. AVELAR, Marcelo Castilho. A poesia do cotidiano. Estado de Minas, Belo Horizonte, 12 jun. 1991. Artes Cênicas.
5. SANTOS, Jorge Fernando dos. Diálogo com a tradição. Estado de Minas, Belo Horizonte, 24 set. 1998. Artes Cênicas.

Fonte: Itaú Cultural

Minas em Nova York


Lô Borges e Telo Borges no evento da Casa Mac, em Nova York


No The Plaza, a arte produzida em Minas atrai brasileiros e americanos


Ana Paula Cota, Zaida Girardi Dishy, Norma Sueli Souza e Márcio Borges

Semana passada, dia 17, uma nova edição do Projeto Arte de Minas na América (Ama) agitou o espaço cultural ‘The Plaza’, na 5ª Avenida, em Nova York.

Brasileiros e americanos tiveram a oportunidade de presenciar um debate aberto com o letrista Márcio Borges, co-autor de várias composições célebres em parceria com Milton Nascimento.

No encontro, Márcio falou sobre a história e a cultura de Minas Gerais e sobre os 40 anos do Movimento Clube da Esquina, fonte inesgotável de memórias.

No encerramento, apresentação musical com Lô e Telo Borges emocionou o público.

“É esta emoção que motiva nosso trabalho de promover e divulgar a Arte de Minas e do Brasil em outros países”, explica Norma Sueli de Souza, presidente da Casa Mac, idealizadora do Projeto Ama – “realizamos este encontro desde 2009 e, no ano passado, trouxemos Milton Nacimento e Marcos Viana para uma apresentação na sede da ONU, aqui mesmo, em Nova York”.

A 3ª edição do Ama contou com parceria do Museu Clube da Esquina e apoio da Belotur. Para 2013, Norma anuncia que já existe um projeto aprovado na Lei Federal de incentivo à Cultura que prevê uma série de benefícios para as empresas que apoiarem a iniciativa: “nossa meta é fazer um evento cada vez mais abrangente, envolvendo as mais diversas tendências e linguagens artísticas brasileiras”.

Sobre o Instituto Cultural Manoel Antônio de Carvalho

A Casa Mac (www.casamac.org) é uma entidade sem fins lucrativos, criada para promover o intercâmbio de informações e vivências entre artistas brasileiros e estrangeiros.

O Instituto também promove projetos para a inclusão sociocultural de crianças e jovens por intermédio de oficinas de arte-educação, além de ações voltadas para a capacitação de jovens e adultos.

Está instalado em Belo Horizonte, no bairro Cidade Jardim. Sua sede é um luxuoso casarão, espaço aberto e dinâmico, com infra-estrutura impecável e elegante design. A sede conta com auditório com capacidade para 180 pessoas, galeria de arte, champanharia, uma confortável sala de estar, duas cozinhas em estilo mineiro, com equipamentos profissionais, e outros ambientes multifuncionais e de convivência, com decoração e iluminação minuciosamente cuidadas.

Fotos: João Vianna, VejaTV, NY

domingo, 22 de julho de 2012

O homem, os gatos e o parque

O velho Paulinho – chamado “seu” carinhosamente por todos que o conheciam – viveu para os animais. Especialmente, para os gatos de rua, largados à própria sorte. Seu Paulinho, na casa dos setenta, abraçou a causa dos sujeitos de patas, bigodes e olhos-luzes. Diante de bichano qualquer, preto, branco ou colorido, pensava sempre: “que beleza!”. Eles – os animais – sabiam sempre, na presença do velho, tratar-se de aliado, homem de bem, respeitoso com todos os semelhantes de espírito.

Seu Paulinho não tinha religião. Até tentou. Passou por várias reuniões e agrupamentos de crentes em tudo o que não se pode afirmar com certeza. No entanto, não deu conta de conviver com as leis e verdades do homem, sempre disposto e perspicaz na construção das vantagens em nome de Deus. Na Igreja católica conheceu o pecado e a culpa. Já entre os evangélicos descobriu que o dinheiro é o poder do sangue de Jesus. Nos terreiros, soube da força do mal que sucumbe a sombra. Por fim, depois de ouvir tanta gente confusa e doente, decidiu ser fiel apenas ao silêncio dos animais.

Dos gatos, particularmente. O velho era capaz de passar horas com o ouvido nos olhos dos bichos. “Eita luz que diz tudo!”, ouvia em sopro. Depois da aposentadoria, cada vez mais distante da gente ruim, passou a se dedicar ainda mais aos gatos de Belo Horizonte. Onde houvesse um bichano precisando de ajuda, lá estava o seu Paulinho disposto a fazer algo de útil pelos que nada fazem de mal. Decepcionado com o mundo dos humanos – de cegueira, miséria, individualismo e corrupção –, o velho desejou ser bichano, livre, alheio a tudo o que não acrescenta.

Dinheiro – já que não se pode viver sem moeda no mundo dos humanos – ele queria apenas para o necessário. Do pouco que tinha decidiu dividir com os irmãos gatos. Comprava alimento para não deixar morrer de fome os mocinhos de quatro patas. Como o recurso e o tempo eram curtos para tamanha boa vontade, optou por abraçar o parque municipal, reduto de abandono e irresponsabilidade. Soube que lá, na calada, bípedes sem juízo e coração, largavam sacoladas de filhotes – pretos, em maioria. Seu Paulinho, então, fez também sua a saúde dos excluídos.

Ainda que o físico gasto não tinha a mesma força do coração puro, seu Paulinho reunia fôlego para vencer as cercas de ferro, de quilômetros, do quarteirão da Região Central. Isso, para não deixar canto sem comida para seus afilhados livres. Sabia um por um pelos olhos: os velhos, os mais jovens e os recém-chegados. Por horas, conversavam em silêncio. Juntos, enxergavam de fora para dentro – o que comumente não se vê. Nada de culpa, regra, medo ou promessa: respeito. No trato dos bichanos, findado o tempo no plano: o velho pôs-se a descansar. Fechou os olhos para entrar no reino dos céus. Lá – o silêncio soprou –, foi recebido por Deus, Senhor da gataria.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 23/7/12

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Cenas da prisão

Fim de semana de trabalho na cidade histórica de Mariana. Lugar aconchegante, de povo hospitaleiro e muito querido. O duro foi a ausência de Violeta, que ficou em Belo Horizonte na companhia da mãe. A mulher amada está ainda mais linda, grávida de sete meses. E a gente, cada vez mais juntos, porque assim é a vida que compensa: somar para acrescentar. Boa relação é aquela em que o amor tem mão dupla. Pode até demorar, mas, um dia, a melhor união se ajeita – mesmo que para isso seja necessário vencer tormentas.

Na volta de Mariana, depois de dia e noite de trabalho no Festival de Inverno, de carona no ônibus especial da equipe, a caneta correu solta na caderneta de papel pautado. Bem perto de ser pai pela terceira vez, o pensamento tem andado numa velocidade difícil de controlar. Cresci ouvindo o velho Botelho falar em liberdade. Liberdade é, sem dúvida, a palavra que mais ouvi, em família, nestes 40 anos de vida. E deu que nos fundos da pousada em que ficamos, bem na divisa do meu quarto, estava o presídio da região.

Só fui saber pela manhã, ao abrir a janela. Foi um choque ver os sujeitos de cabeça baixa e com as mãos para trás atravessando o corredor, sob o olhar atento da guarda armada de plantão, no alto, próximo ao topo do muro de arames cortantes. Fiquei ali por minuto, sem ação, com os olhos voltados para a imaginação do tempo perdido de toda aquela gente sem liberdade. Num outro cômodo dividido por muro grosso, cena curiosa: presidiária uniformizada passava a vassoura no quintal e, ao mesmo tempo, chutava uma bola murcha, sem rumo. Brincadeira para ajudar a passar o tempo, talvez.

A mulher, de no máximo 30 anos, cantarolava baixinho. Ora um chute na bola, ora a piaçava no cimento grosso. Do outro lado, tomando banho de sol no pátio, dezenas de detentos. No ar, vozes formavam coro confuso, barulhento. “Bom dia!”, disse um dos presos de timbre soturno, invisível abaixo da muralha branca. Silêncio. “Bom dia”, ele repetiu. Quando abri a boca para responder, mesmo sem vê-lo, uma mulher no andar de cima soltou a voz em meu lugar: “Bom dia”. O homem completou: “Ah, agora sim. Deus te abençoe!”, encerrou o assunto.

Voltei-me para o quarto e lamentei a condição de todos aqueles sujeitos. Não pode haver crime que compense a falta de liberdade. Está aí uma coisa que jamais entrou na minha cabeça. Sempre evitei as drogas e todas as sujeiras da alma por medo de perder a lucidez e a liberdade. Quando tive um primo, quase irmão, preso com mais de quilo de maconha foi um choque e tanto. Eu devia ter uns 8 ou 9 anos. Na época disseram-me que ele tinha viajado. Até que o velho Botelho teve uma conversa de homem para homem comigo, mais de ano depois.

Disse-me muitas coisas sobre liberdade e “armadilhas do mundo”. Nunca me esqueci dessa conversa. Ao fim do assunto, recebi um carrinho de madeira, feito pelo meu primo na penitenciária. Meu pai tinha ido visitá-lo. Todo mês ele ia vê-lo. Daquela vez, o primo me mandou o presente. Também mandou um recado escrito em papel de pão. Terminou a mensagem assim: “Escuta sempre o tio, Josiel”. Algumas passagens marcam muito a vida da gente, amigo leitor. Meu primo nunca mais foi o mesmo. Deixou a cadeia uns três anos depois e foi morar no interior. Morreu nos anos 1990. Para muitos, de tristeza.



Bandeira dois - Josiel Botelho - 18/7/12

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Mata! Mata! Acaba!


Jonilson não conseguia pregar o olho. Não tirava da cabeça a imagem do filho, Luca, de 5 anos, pulando no sofá, de punhos fechados, em frente à TV, há duas horas. O pirralho torcia ensandecido por brasileiro, lutador de MMA. “Mata! Mata! Acaba!”, naquele timbre criança, vindo da goela miúda, foi um choque e tanto para o pai de fim de semana, descasado há dois meses. “Meu Deus!”, dizia baixinho para si mesmo, sentado ao lado da cama do filhote, em sono profundo, coberto por pano de estrelas.

Não conseguia entender como aquele mocinho, com cara de anjo, podia estar contaminado por tamanha falta de noção. Conferiu o relógio e não se intimidou com as horas – 4h12 no marcador digital. Catou o celular, deixou o quarto azul, decorado com bichinhos, e ligou para a ex-mulher, vizinha de bairro: “Gina… Não… não aconteceu nada… não se preocupe… é comigo…” A agente funerária, que já estava de pé – para o plantão das 7h na Região Hospitalar –, ofereceu ajuda.

Dez minutos depois, Gina toca o interfone: “Sobe”, disse o vendedor ambulante, com a voz trêmula e pernas bambas. Jonilson sentia falta da mulher. Ela, tristíssima, dispensou-o logo que descobriu traição com empresária de Juiz de Fora. Não deu conta de perdoar o deslize do sujeito. Frente a frente, os dois, pai e mãe, para tratar do pequeno Luca. Jonilson entrou de cara no assunto:

– Desde quando o Luca gosta de MMA?
– eme eme o que?
– Luta, pancadaria, essa violência que agora tá na moda…
– Meu filho não gosta disso. Por que?
– Porque hoje ele disse que tava sem sono e pediu pra ver TV…
– E você deixou?
– Eu tava trabalhando… um relatório que precisava mandar por e-mail…
– Trabalho ou pouca vergonha com as vagabundas que você conhece?
– Sem grosseria! Hoje, não!
– Fala baixo!
– A casa é minha!
– Desgraçado!
– Te parto a cara!
– Vem!

Nisso, diante dos pais gladiadores, prestes ao combate voraz, Luca, surge no corredor. Emudecido, tem numa das mãos a coberta de estrelinhas. Retira o polegar da boca e chora de soluçar, como o mais solitário dos pequenos mortais.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 16/7/12

sábado, 14 de julho de 2012

Cenas de "Um Inimigo do povo"

Logo mais, às 20h30, no Teatro Marília (Av. Alfredo Balena, 586 - Santa Efigênia), voltamos à cena com "Um inimigo do povo", de Henrik Ibsen, sob a direção de Walmir José, com produção de Rômulo Duque e Marisia do Prado. Amanhã, domingo, a apresentação é mais cedo: às 19h.

No palco, Jefferson da Fonseca Coutinho, Geraldo Peninha, Marcelo do Vale, Beto Plascides, Ana Amélia Cabral, Bianca Tocafundo, J. Bueno, Luiz Hermidas e Márcio Miranda. Abaixo, o olhar de Alessandro Tocafundo em noite para não esquecer no Grande Teatro do Palácio das Artes. Evoé!

















Com orgulho, compartilhamos a crítica de João Paulo, publicada no Estado de Minas, em 25 de novembro. Quem acompanha a imprensa nacional sabe que o editor de Cultura do EM é hoje um dos jornalistas mais respeitados do Brasil.

Um contra todos

Por João Paulo

Ibsen (1828-1906) fez teatro para pensar a partir da mobilização intensa do sentimento. Sua arte está na encruzilhada de elementos românticos, realistas e simbólicos, com temas que vão da revolta contra as convenções machistas à recusa metafísica da transformação do homem em coisa. Dentro de casa e na balbúrdia das ruas, foi o autor dos mais profundos diagnósticos da corrupção moral do capitalismo do seu tempo. Ao mesmo tempo, pulverizou a indignação muito além da dimensão política para atingir a condição humana no sentido filosófico. Um inimigo do povo, de 1882, se situa no cerne desse projeto. É peça que permite leituras psicológica, social e política. E que mantém atual.

A montagem dirigida por Walmir José, que já havia levado o texto ao palco anteriormente, estabelece um relacionamento com dilemas contemporâneos no campo do pensamento e da ação política. Depois de montar o texto nos anos 1970, em plena ditadura militar (quando a própria palavra “inimigo” não permitia metáforas), o diretor opta por problematizar a questão ideológica atual, a partir de referências mais universais, embora fortemente marcadas pela conjuntura. Nunca a política esteve tão em desprestígio como hoje, o que explica, ao mesmo tempo, a força dissolvente das ideias convencionais (não parece haver mais oposição no reino do pensamento único) e a leniência das formas de revolta, substituídas por um hedonismo desmobilizador e individualista.

É nesse sentido que a montagem oferece sua contribuição. Em primeiro lugar, pela crença na força da palavra. A adaptação, que atualiza a trama original incorporando a dimensão ecológica, vai ao texto de Ibsen para resgatar nele sua mais determinada intenção. Há, a seu modo, a afirmação de uma tragédia liberal (que vai além do modelo da tragédia burguesa), que lança mão de um novo tipo moral. O dr. Stockmann de Ibsen equilibra várias fontes de revolta para afirmar o modelo de homem político, capaz de ir contra a maioria para preservar sua humanidade. A mentira, mais que um mal a ser afastado, é resultado de um sofisticado arranjo social que ganha guarida na alma de pessoas fracas e cediças.

Há, na peça, o risco real de submeter as ideias do autor a um jogo de certo e errado, verdadeiro e falso, ético e imoral. Nada mais distante do espírito de Um inimigo do povo. A tradução desse equívoco poderia ganhar a forma de um simples duelo de posições maniqueístas, da qual os irmãos Stockmann, o cientista e o prefeito, incorporariam os limites, numa falsa disputa entre razões da ciência e interesses da política. Ibsen foi além ao incorporar certa dimensão farsesca, de humor destrutivo, que mancha a atuação dos dois lados. Há a hipocrisia do poder, mas também o empenho salvacionista e desequilibrado da razão embriagada de certeza. Sem falar na fatuidade burguesa, na ambição do homem de negócios e na ética de circunstância da imprensa.


Anarquismo

No palco, a escolha do diretor sublinha os elementos anarquistas do protagonista, que luta contra todos e sobrevive a seu modo. É astuta a criação de um clima de comício, mimetizando o cenário em que a política dá as mãos ao marketing para se submeter a meias verdades funcionais.

No elenco, destaque para a atuação de Jefferson da Fonseca (Tomás Stockmann, um Quixote contagiante, enlouquecido com sua verdade) e Geraldo Peninha (Pedro Stockmann, numa composição que equilibra postura emproada e a dissimulação). A atualização da trama, no entanto, não fica bem caracterizada no cenário e figurino. Se o texto é tão preponderante e bem articulado pela adaptação, nada mais justo que dar ao espectador elementos teatrais igualmente fortes e significativos.

Ibsen não queria ser identificado com seu personagem, ainda que carregasse em parte as mesmas ideias. Um dramaturgo não se coloca no palco. Quem deve se reconhecer nos personagens é o espectador. Neste sentido, Um inimigo do povo segue atual, ainda que em outro contexto. E o espetáculo de Walmir José tem o mérito de jogar a luz para a plateia.

Jornalismo de valor




João Paulo e Zuenir Ventura, dois dos mais importantes colaboradores de Vida Bandida – em exemplo e inspiração –, estão juntos, hoje, no Pensar. Estado de Minas. Página 2, Olhar:

Casos de Família

Por João Paulo*

Zuenir Ventura (foto) tem uma obra jornalística dessas que fazem acreditar na profissão. Quando, já maduro, decidiu escrever livros com suas reportagens, teve a humildade de começar de novo. O caso merece atenção. Jornalista, por definição, deveria ser habitado pela virtude socrática do “só sei que nada sei” e carregar a humildade como uma segunda pele. Não é o que se vê. Zuenir, além do mais, fez o caminho inverso. Depois de se aposentar como editor e passar pelas principais redações do país, pegou a caderneta e a caneta e foi apurar suas histórias na rua.

O resultado foram livros importantes para o Brasil, a começar por 1968, o ano que não terminou, que a partir de um réveillon festivo puxou o fio de uma história cultural do pesadelo que tomou conta do país com a decretação do AI-5. Um livro sobre a sensibilidade de uma época que tinha muito a dizer aos leitores de muitas décadas depois. O que parecia ser passado se revelou como uma utopia interrompida. É livro que dá vontade de viver.

Em seguida, o repórter escreveu Cidade partida, um livro que revelou o que estava na cara de todo mundo, mas que teimava em se esconder sob a capa da ideologia. O Rio de Janeiro não continuava lindo, exibia uma fratura social que ameaçava romper a cidade em duas realidades em guerra: de um lado o asfalto, de outro a periferia. A lei que valia num polo era letra morta no outro. Além disso, a atmosfera de beligerância estava por um fio para inaugurar uma guerra civil indisfarçável.

O que o livro permitiu, entre outros resultados, foi trocar o preconceito contra o “inimigo” pela responsabilidade pela injustiça nossa de cada dia, que convocava a ações de inclusão. Tudo o que veio depois, do movimento Viva Rio a várias ONGs, tem um pouco dívida com Cidade partida. Uma reportagem que ajuda a mudar o modo de ver o mundo, atacar preconceitos e melhorar, na medida do possível, a cidade em que vivemos, cumpriu a melhor parte de seus propósitos.

O velho Zuenir foi ainda ao Acre acompanhar o julgamento dos matadores de Chico Mendes e trouxe para o leitor todo o teatro de um julgamento no meio da mata, que concentrava o interesse do mundo e as contradições de nosso tempo entre o valor da vida e o valor da riqueza a qualquer preço. O repórter fez ainda o que todo manual de jornalismo desaconselha, mas que a ética humana prescreve: se imiscuiu no julgamento e trouxe uma testemunha (um rapaz) para morar com ele e assim protegê-lo de perseguições.

Chico Mendes – Crime e castigo tem ainda mais uma lição de jornalismo: o exercício da memória responsável. Depois de escrever sobre o assassinato e o julgamento, o repórter voltou à cena do crime, 15 anos depois, para mostrar o que havia mudado desde então. Todo mundo sabe o que ele encontrou, mas muitas vezes preferimos a docilidade do esquecimento ao compromisso com a verdade que precisa ser retomada com o passar do tempo.


Invenção e memória

Na casa dos 80 anos, Zuenir ataca de romancista com Sagrada família (Editora Alfaguara, 226 páginas, R$ 36,90). É livro de memórias pessoais mescladas com fantasia, que tem como epígrafe um verso do poeta pantaneiro Manoel de Barros: “Só dez por cento é mentira, o resto é invenção”. Possivelmente, o mais inverossímil deve ser verdade, como sempre acontece na vida.

A história se passa na cidade serrana de Florida. Um lugar muito frio, com a geografia das pequenas cidades fluminenses, com suas pracinhas arborizadas, igrejas, clubes e zona boêmia. Em pleno começo dos anos 1940, o menino Manuéu (grafado dessa forma por um erro do escrivão) passa as férias na casa da tia Nonoca, de 37 anos, que tem duas filhas, Cotinha e Leninha, de 15 e 14 anos.

Se o contexto político lembra a era Vargas e o momento de decisão sobre que lado da Grande Guerra o país iria apoiar, o ambiente humano é marcado mais pelas paixões da carne do que por qualquer outro estímulo. Como explicitou Freud, tudo é sexo. Quem não faz sexo fala de sexo. Em Sagrada família a sacanagem, falada e vivida, corre solta.

Os 37 anos de Nonoca – hoje uma idade mais perto da juventude que da maturidade – são vividos quase como um exílio dos chamamentos da carne. Mas apenas para efeito externo. A jovem viúva não perdoa o desejo, mas não se exibe. Logo na primeira cena, Manuéu acompanha a tia até a farmácia, onde ela recebe injeções três vezes por semana. Tem metáfora que não precisa explicar.

Além da família do narrador, outros personagens compõem o panorama moral de Florida, entre eles o violento e carismático Douglas e seu irmão, Tony; dona Edith e suas meninas da Vila Alegre, na zona de meretrício; os tuberculosos anônimos que frequentam a cidade em busca de tratamento. A trama por vezes sai de Florida e vai até o Cassino da Urca, onde acompanha visita de Orson Welles.

Tudo descrito a partir da ótica provinciana de uma família cheia de esqueletos no armário (alguns deles revelados ao final da trama, já nos dias de hoje). Há um misto de Nelson Rodrigues com Lúcio Cardoso: tudo que não é dissipação cheira a segredo. O mineiro Zuenir, embora se reinvente fluminense em seu romance, não deixa de lembrar o cheiro de vela e amores adulterinos no ar. O autor é craque na criação da atmosfera, mas parece compreender tudo. O que, em matéria de ficção, pode ser uma demasia.




Estilo é tudo

Zuenir Ventura já havia se aventurado na ficção com Inveja, livro que, no entanto, trazia alguns macetes do jornalista, como a apuração benfeita sobre o assunto. Em Sagrada família o escritor, desde o primeiro momento, decide colocar a memória a serviço da boa história. E conduz o livro com mão segura, com espaço para humor, um pouco de suspense e erotismo que se equilibra entre o espanto do jovem e a pressa das mulheres que se julgam velhas. Sensualidade é o momento em que a idade não conta.

No entanto, num romance que ensina tanto sobre a família, o Brasil e os desejos inconfessáveis, Zuenir talvez tenha escrito tudo com muita classe. O hábito da clareza, que é uma gentileza do jornalista, às vezes pede um pouco de sombra quando se aproxima de zonas menos luminosas do psiquismo e da moral. Não que escrever bem seja defeito, mas por vezes um pouco de desafio obriga a pôr em ação outros prazeres da leitura. Sagrada família é um romance que se lê com prazer e com senso de reminiscência, mesmo quando as experiências não fazem parte do repertório do leitor. Mas o que diverte nem sempre estimula a querer mais.

Ao mesclar memórias pessoais e invenção, o autor pode ter acertado mais na fantasia que na reconstrução de época que lhe ditou a razão e o discernimento. A passagem para o romance encontrou um narrador maduro na pele de um romancista que começa a trilhar o caminho que tem tudo para nos dar grandes histórias. Até que o criador, daqui a um tempo, se emparelhe com o jornalista. O que é um desafio e tanto.



Estado de Minas - Caderno Pensar - 14/7/12

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Curta temporada


Na próxima sexta-feira, dia 13, “Um Inimigo do Povo” volta aos palcos de Belo Horizonte para curta temporada. A peça fica em cartaz às sextas e sábados às 20h30 e, aos domingos, às 19h, no Teatro Marília (Av. Alfredo Balena, 586 – Santa Efigênia – Tel.: 3277- 6319), até dia 22. Nos dias 26 e 27 de Julho, às 21h, a montagem participa do Peça Bis, projeto do Teatro Alterosa (Av. Assis Chateaubriant 499, tel. 3237 6611). A adaptação e a direção são de  Walmir José. Os ingressos custam R$30 (inteira) e R$15 (meia-entrada) e R$12 (nos postos do Sinparc- Fnac BH shopping e Mercado das Flores (3272 7487).

Política. Ideologia. Liberdade. Ética. Democracia. Maioria X Minoria... esses e outros temas são discutidos no espetáculo “Um Inimigo do Povo”. O texto é uma adaptação da obra “Um inimigo do povo” de Henrik Ibsen. A montagem traz uma reflexão sobre o direito ao livre pensamento, à democracia, tendo como pano de fundo a contaminação do meio ambiente por agrotóxicos em uma cidade no interior do Brasil, onde a produção de grãos é beneficiada pelo uso excessivo de agrotóxicos, que causam problemas de saúde para a população. Daí, a grande discussão da montagem: como a democracia pode reinar numa comunidade, onde há interesses tão antagônicos?

O conflito atinge a esfera pública, onde surge a mídia como poder interessado, o sistema financeiro, os negócios de exportação, os produtores, a população local e as relações familiares. O Produtor Rômulo Duque volta ao clássico, montado pelo grupo AMI  - referência das artes cênicas em Belo Horizonte nos anos 1970. Em 1977, "Um inimigo do povo", também sob a direção de Walmir, foi grande sucesso. 

O diretor ressalta que levar o tema sobre agrotóxico para os palcos, reflete numa discussão mundial e atual: a preocupação com o meio ambiente. “Sabemos que as pessoas prestam mais atenção nesse tema. E montar um texto com esse assunto, traz discussões interessantes. Um Inimigo do Povo é uma peça de ideias. Na peça, é possível perceber como as ideias podem devastar relações políticas, comunitárias, familiares”.

Ficha Técnica:
Produção: Rômulo Duque e Marísia de Prado
Direção /Adaptação: Walmir José
Assistente Direção: Rômulo Duque
Elenco: Jefferson da Fonseca Coutinho, Geraldo Peninha, J. Bueno, Ana Amélia Cabral, Bianca Tocafundo, Marcelo do Vale, Beto Plascides, Luiz Ermidas e Marcio Miranda.
Preparação Vocal: Silvana Stein
Trilha Sonora Original: Léo Corrêa
Concepção Cenográfica: Walmir José e Rômulo Duque
Fotografia: Andréa Maia
Figurinos: Willian Rousche
Iluminação: Felipe Cosse
Coreografias: Dulce Beltrão
Técnico: Alex Magalhães e Giovanni Pardizzi.

Ana Amélia, Bianca Tocafundo e Marcelo do Vale, novo integrante da trupe. O ator, no papel do jornalista Lessa, substitui Olavo de Castro


Um Inimigo do Povo

Teatro Marilia
Temporada: 13 a 22 de Julho  -Sextas e sábados as 20h30mim – Domingos as 19h
Classificação: 14 anos
Duração: 120 minutos
 Ingressos: R$30(Inteira) R$15 (Meia – Entrada) R$12 (nos postos do Sinparc- 3272 7487).

Teatro Alterosa
Dias 26 e 27 de Julho quinta e sexta as 21h.
Classificação: 14 anos
Duração: 120 minutos
Ingressos: R$30(Inteira) R$15 (Meia – Entrada) R$12 (nos postos do Sinparc- 3272 7487)

terça-feira, 10 de julho de 2012

Estamos de volta!


Os filhos de Irene

Texto: Jefferson da Fonseca Coutinho
Foto: Beto Magalhães/EM/D.A Press


No início dos anos 1990, no Bairro Lagoinha, Região Noroeste de Belo Horizonte, na esquina das ruas Além Paraíba e Adalberto Ferraz, a presença constante de crianças e adolescentes largados, sujos, delinquentes, chamava a atenção de moradores e trabalhadores do entorno da Igreja Nossa Senhora da Conceição. Para a maioria dos cristãos do quarteirão, uma deformidade social que precisava ser combatida. Para grande parte da vizinhança, um desrespeito que atrapalhava o comércio, enfeava endereços e assombrava a paz. Na ponta da discórdia, uma médica estrangeira, loura, de olhos azuis e coração enorme: Irene Adams, holandesa, imunologista, voluntária, decidida a impedir o avanço das contaminações pelo vírus da Aids entre os meninos de rua. Na casa de apoio, atraída pelo pão e pelo cobertor para os tempos de fome e frio, a meninada acabava recebendo também o carinho da doutora, de plantão, disposta a ensinar o amanhã. Em 2012, passados mais de 20 anos, a clínica Ação Multiprofissional com Meninos em Risco (Ammor) já acolheu 2.509 menores, dos quais 28 soropositivos. Juntos, duas gerações somam os “filhos” de Irene, viúva, mãe e avó, que, longe da família – na Europa e nos Estados Unidos –, vive de lançar luz ao futuro de quem não conhece esperança.

Doutora Irene Adams, de 72 anos e sotaque carregado, fala da afilhada Marlene, de 40, com a satisfação de quem acompanha a realização dos filhos: “Ela esteve comigo em 1989, quando nos conhecemos. Hoje, ela tem marido, filhos e acabou de ser avó. Até hoje vem fazer ‘check-up’ comigo”. Diz-se feliz pela amizade fortalecida com a menina saudável e crescida, retirada das ruas. Sorriso aberto, o semblante é de quem aprendeu a sorrir com a alegria do outro. No apartamento modesto, bem próximo à tumultuada Avenida Cristiano Machado, pilhas de papéis sobre mesas e bancadas da sala. “Não repare, sou uma workaholic”, faz menção à condição permanente de pouco sono e muito trabalho.

Elegante, de roupa social econômica – calça, camisa e paletó –, tem nos pés tênis surrado. Especialista em imunologia, com passagem por diversos países, não é de falar de si. Com relógio de plástico no pulso, mostra-se simples, atenta apenas ao necessário para levar adiante uma vida missionária. “Não gasto com relógio caro e não tenho nenhum tipo de joia. O pouco me basta. Sou uma pessoa frugal”, considera-se. O carinho pelo Brasil aumentou na década de 1970, em viagem com o marido, funcionário de multinacional, para o Rio de Janeiro. Na década seguinte, no surgimento da Aids, já era médica em Belo Horizonte. Tinha interesse intelectual pela doença e amor arrebatador pelas crianças de rua, segundo ela, “alvo pontecial para a proliferação do vírus”.

“Como médica, trabalhando há tempos com doenças autoimunes, veio a Aids, uma doença relativamente nova. Eu conseguia lidar bem com pacientes com câncer nessa situação potencialmente fatal, mas, com a Aids, descobri que era diferente”, conta, que também é oncologista. Irene revela que foi tocada pelo preconceito e por toda a culpa que chegava junto do vírus HIV. Para a doutora, a pessoa com Aids precisava de muito mais que um médico. Emocionada, faz voltar os ponteiros da própria história: “Fui uma criança muito doente. Lembro-me aos 4 anos quando entrava num consultório, sofrendo, e vinha a pessoa de branco… só a presença dela já me tranquilizava. Foi quando, pequena, decidi ser médica e ajudar os outros”.

O início
Para a doutora, a Aids trouxe a necessidade de um novo profissional da saúde, bom ouvinte, atento às particularidades vindas no rastro do novo mal, que dava o que falar em todo o mundo. Em 30 de abril de 1987, durante comemoração do Dia da Rainha, feriado importante na Holanda, Irene conheceu um casal de voluntários que estava no Brasil trabalhando com menores de rua. Da conversa sobre Aids e crianças abandonadas, a pergunta: “O que aconteceria se uma criança de rua fosse contaminada?”. Foi o suficiente para que a holandesa abraçasse a causa e decidisse fincar raízes na capital mineira.

No início, entre os principais aliados, a Arquidiocese de Belo Horizonte por meio da Pastoral do Menor, e o colega imunologista da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Dirceu Bartolomeu Greco. “Foi quando conseguimos verba para um projeto de prevenção entre os meninos de rua. Nessa época, a pastoral ganhou espaço no porão da Igreja Nossa Senhora da Conceição e os meninos compareciam por causa da casa de apoio”, diz. Das descobertas na nova missão, Irene destaca “a pessoa dentro da pessoa”. A médica missionária considera que mais que ajudar, é preciso acreditar nos desfavorecidos. “É preciso entender que dentro de um menor infrator tem uma pessoa que precisa de ajuda”, diz.

“Ele não quer muito. Quer ser tratado como pessoa. Muitos garotos voltavam com frequência para o ‘check-up’ para o contato com a clínica, apenas para que pudessem ser olhados sem medo. Para se sentirem respeitados. Pense bem: já não têm família e ainda vivem sob o olhar do medo e da discriminação. Que futuro poderiam ter? Não é um trabalho de atendimento médico apenas. É ação. É resgate”, explica. “A Aids era de menos. A doença, em média, depois da contaminação, leva 10 anos para os primeiros sintomas. A maioria das crianças de rua não tinha essa perspectiva de vida. Imagine: todo mundo dizendo ‘você não presta’, ‘você é criminoso’. O menino passa a acreditar nisso, porque tem baixa autoestima”, ressalta.

Irene conta que hoje 90% das crianças acolhidas pela Ammor vieram de abrigos. Felicidade e orgulho se confundem no azul iluminado dos olhos. Para a doutora, impossível não ficar feliz com o resultado da força-tarefa pela proteção dos pequenos carentes. “Hoje temos o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Conselho Tutelar, que movimentam toda uma rede de proteção ao menor. Tenho muito orgulho de morar em Belo Horizonte, de ser cidadã honorária da cidade. Sinto-me parte dessa rede. Seria impossível realizar sozinho algo dessa natureza”, considera. No entanto, para a missionária, os avanços ainda estão longe de eliminar os problemas.

“A grande maioria dos menores vem de famílias esfaceladas. Estão nos abrigos porque as famílias continuam desestruturadas, porque não há referências de uma vida diferente. Porque falta amor, respeito. Temos uma equipe que vai aos abrigos e trabalham dinâmicas com educadores e educandos do lugar. Uma pergunta muito importante na qual eles aprendem a pensar é ‘quem sou eu?’. É preciso que eles se reconheçam e ganhem confiança, acreditem num novo caminho”, sugere. Irene diz que a certeza de que seu trabalho está na direção correta vem do retorno de seus afilhados. “Muitos meninos que passaram pela clínica, voltam. Não para pedir dinheiro, mas em busca de um olhar de carinho.”

Família
Os filhos de sangue estão longe. Um nos EUA, onde atua como representante comercial. A outra, engenheira, faz carreira na Bélgica. Não são eles ou os netos a maior preocupação da doutora. São os filhos “adotados”, invisíveis, os que tiram seu sono. Entre 1992 e 1996, a imunologista trouxe recursos de organizações holandesas para as crianças de Belo Horizonte. “O apoio foi interrompido porque eles disseram que o Brasil é um país rico, que aqui o problema é a distribuição de renda”, conta. Irene Adams critica a falta de tradição do brasileiro em ser voluntário. Lamenta a falta do hábito de doações regulares aos projetos sociais que ajudam a combater as diferenças.

“Na Holanda, nos Eua, isso é muito diferente. Meu sonho é de uma nova consciência que dê sustentabilidade aos trabalhos sociais. Lutar pela cidadania dos outros é ganhar a minha cidadania. Aqui, eu não tenho direito ao voto, mas vocês precisam votar muito certo. Por vocês e por mim”, provoca. Solitária, imersa em mundaréu de compromissos, lazer só tarde da noite, com os filmes Amor impossível, de Lasse Hallström, e Para Roma, com amor, de Woody Allen, anotados na agenda. Para encerrar a conversa, o desejo de quem aprendeu amar as crianças de Belo Horizonte, de graça: “Já comprei meu abrigo no Cemitério do Bonfim. Quero ser enterrada na cidade onde aprendi a viver”, sorri.








SAIBA MAIS: PROJETO AMMOR
(Foto:Victor Schwaner/Divulgacao)
 
O foco do projeto está no desenvolvimento humano de excluídos. As pessoas são motivadas a procurar atendimento médico pela informação e prevenção. Com isso, o paciente tem a autoestima resgatada, a cidadania e a convivência com a família. Em 2006, com o fechamento da Clínica Nossa Senhora da Conceição (CNSC) –projeto da Arquidiocese de Belo Horizonte que acolhia pacientes com câncer terminal e portadores do vírus HIV – serviços sociais importantes ficaram sem teto. A imunologista Irene Adams resolveu integrá-los à Clínica Ammor. Assim, o projeto integra ações como o Comvidha, de assessoria jurídica; o Papel e Cia, de capacitação por meio de oficinas de artes; a Academia de Ginástica Movimento Saúde, a Cooperativa Grupo Solidário, além do atendimento às crianças e adolescentes em risco social. Informações: (31) 3444-3877 e 9503-8277.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

O destino de Valdomiro Blá


Valdomiro Carlos, também chamado Miro Blá, era a personificação da maldade mais magricela. Nascido em tempo de lua minguada, o sujeito mirrado de corpo e espírito, sem estudo ou valor moral, ganhou idade apenas secando a alegria dos outros. Nem pai nem mãe deram conta do indivíduo, que se enveredou cedo, garoto ainda, para as bandas da magia negra e para os terreiros da macumba má – do tipo capaz de secar pimenteira e fazer bodar os mais fracos, desgarrados de fé.

Vivendo do patrimônio dos pais mortos – de desgosto –, bastava Miro Blá querer para um bicho preto sucumbir. O cabeça de vento e inveja capava porcos, cabritos e veadinhos para alcançar vantagens. Longe das atitudes que fazem o homem valer a pena, Blá apodrecia por dentro na velocidade de todo o sangue que ele fazia talhar. Do pacto com a sombra, a vida medíocre de falsidades e amigos amedrontados.

Não havia quem ousasse se distanciar de Miro Blá. Perguntado pela avó por que estava sempre por perto daquele elemento peçonhento, Chico Piolho se abriu: “Ele tem vudu da gente, vó. Espeta e prejudica quem sai fora. Não soube do Barão? Morreu sequinho, engasgado com uma azeitona preta, lá em Escarpas”. Um dia pelo outro, deu que Miro Blá, se engraçou com um garotão vindo do Nordeste, baiano, batizado em terreiro forte.

No início, Erê, o moço de corpo fechado, até conseguiu ver alguma intenção de amizade em Blá. Não demorou para que, em festa de convite arranjado, o capoeira caísse nas malhas do Valdomiro. Blá fez poção com língua de taruíra e pó de granito de cemitério. Sapecou na bebida do garotão e caiu para cima na madrugada nublada. Erê amanheceu pelado, grudado em Blá, com sorrisinho cínico, figurado em arco.

Ainda sob o efeito da armação, o baiano catou as roupas e sumiu no mundo, enojado. Foi passar o fim de semana no terreiro da mãe no interior da Bahia. Lá, ouviu a receita contra o aproveitador: “O fi num pode deixa gente ruim prevalecê. Tome banho de canjica, dobre uma espada de São Jorge em cruz, olhe bem no zói do estrupício e diga baixinho pra ele: ‘sai zebedeu, que quem é de Jesus sou eu’...”

O capoeirista seguiu à risca a orientação da mãe e encarou Valdomiro Blá com o olho da alma. Foi durante encontro em boate da Região Centro-Sul, nova armação do magricela. O ponteiro não girou minuto e Blá, emudecido, deixou o estabelecimento já transformado. Capou o próprio sexo – peso morto desde a adolescência –, mudou de identidade e, hoje, como irmã Samanta Carla, é voluntário na África.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 9/7/12

domingo, 8 de julho de 2012

Naddeo, o famigerado


Texto: Jefferson da Fonseca Coutinho
Foto: Euler Júnior

Nos anos 1980, ao lado de Bernardo Mata Machado, Gil Amâncio, Rodolfo Vaz e Saulo Laranjeira, Antônio Naddeo, já experimentado homem de teatro e TV, encarnou o jagunço Damásio, personagem imortalizado pelo conto “Famigerado”, de Guimarães Rosa. No vídeo, lançado em 1991, com duração de 14 minutos, sob a direção de Aluizio Salles Júnior, o respeitado intérprete se sobrepõe ao tempo e ao espaço para emprestar corpo e voz a uma das composições mais marcantes de sua sexagenária galeria de personagens para palco e tela – são mais de 40 espetáculos e cerca de 200 trabalhos nos sets de Minas Gerais. Hoje, aos 78 anos, o afamado ator da TV Itacolomi, ainda embevecido pelo universo rosiano, viúvo, vive retirado em “abrigo modesto” de escrita, leitura, estudo, paz e sossego em Florestal, a pouco mais de 60 quilômetros de Belo Horizonte. Foi em quarteirão de silêncio, deserto dos males dos grandes centros, no município de 7 mil habitantes, que o Estado de Minas encontrou o artista, de barba branca sertaneja, cheio de saúde e história.


No alpendre que dá para o horizonte, vê-se a rua vazia. Por duas horas de dia de semana, um único carro a cruzar o traçado de pedra. Os pássaros fazem a festa no entorno do coqueiro e na vizinhança do número 685 – à esquerda e à direita, nos imóveis dos filhos Átila e Ítalo. A voz inconfundível de locutor de programas e peças publicitárias para rádio e televisão revive os tempos de teleteatro, ao lado de Rogério Falabella, Elvécio Guimarães, Wilma Henriques, Vilma Patrícia, Palmira Barbosa, Ana Lúcia e Antônio Cattah, entre outros tantos que ajudaram a escrever, com talento e suor, a história da teledramaturgia brasileira nos sets mineiros. “Nos anos 1950, no Brasil, a TV era algo fenomenal que estava surgindo com uma grande revolução de costumes. A experiência vinda do teatro foi o que assegurou o sucesso das novelas e dos programas de entretenimento. Em Belo Horizonte, seguramente, estava um dos melhores e mais bem preparados elencos de todo o país”, considera.


Naddeo relembra com entusiasmo os “anos de ouro” para os atores mineiros, entre 1960 e 1970, quando o talento fazia valer as oportunidades na capital. Critica a centralização das produções no eixo Rio-São Paulo, segundo ele, “um golpe duro contra as culturas regionais do país”. Para o veterano, hoje, “pensador retirante”, a falta de investimento nas programações locais – depois do surgimento do videotape – foi um grande erro cometido pelos empresários do setor de telecomunicações. “E não digo isso apenas por causa da falta de trabalho para milhares de profissionais fora do Rio de Janeiro e de São Paulo, considero um equívoco, especialmente, para o telespectador, que ficou refém das ideias e dos interesses dessas duas cidades. Temos uma diversidade cultural riquíssima abandonada por absoluta ganância”, lamenta. Para Naddeo, que quase não vê mais televisão, as produções regionais de cultura e entretenimento são caminho para alavancar audiência e dar voz às localidades.


Paulista, com fortes raízes em Minas desde moço, Naddeo não queria deixar Belo Horizonte. Sem trabalho e com a família para sustentar, no fim dos anos 1960 foi atrás de novas oportunidades. “Com o fim das produções em várias regiões do Brasil, muita gente teve que ir para o Rio e para São Paulo. Daí, talvez, o que fez com que o mercado de lá se fechasse tanto, para se proteger. Ninguém de outros estados era bem recebido. Lembro-me de passagem triste com o Sérgio Cardoso, um grande artista que tinha a minha admiração. Estávamos no estúdio e ele me ignorava, como quase todos os colegas de lá. Até que a atriz Ana Maria Dias, uma excelente profissional, muito respeitada, parou o estúdio para chamar a atenção do grupo sobre o que estava acontecendo. Foi quando o Sérgio Cardoso se aproximou e disse: ‘Bem-vindo entre nós!’. Até hoje, quando me lembro disso, sinto-me comovido”, emociona-se. O beija-flor miúdo na varanda rouba a cena. “É por causa da minha mulher, a Zilah. Ela cuidava muito bem deles. Os passarinhos sempre estão rondando a casa”, conta.


Passado vivo

O homem da voz marcante se refere à mulher, “encantada” – como chamou a morte Guimarães Rosa – em 17 de setembro de 2008, como o grande amor da sua vida, com quem viveu por 52 anos. Quando Naddeo estava para ter sua grande oportunidade em rede nacional pela TV Tupi, na novela Antônio Maria, deixou de lado o trabalho para voltar para Belo Horizonte e cuidar da companheira. Sem arrependimentos, do melhor da vida, Naddeo pontua o tempo em família, ao lado da mulher e dos filhos. Café com biscoito na mesa e pausa para falar de outra grande paixão: o teatro. Um convite para a casinha de fundos, armazém com recortes do passado. Dezenas de fotos, recortes de jornais e vídeos com trabalhos em mais de 60 anos da carreira iniciada com João Ceschiatti, no Teatro Escola do Sesi, em 1950. Mostra com orgulho as imagens que confirmam parte da história proseada no alpendre, junto ao beija-flor. Os olhos verdes mudam de cor para a respiração de saudade: “É muita história… E tem ainda tudo isto aqui”, aponta para cartazes puídos e coloridos pelo tempo.


Na volta à frente da casa, o mesmo silêncio de sossego na rua. Mais um passeio à década de 1950. O ano é 1954. Estreia de A dama da madrugada, de Alejandro Casona, dirigido por Armando Panetti, no Teatro Francisco Nunes. Em cena, ao lado do jovem Naddeo, Otávio Cardoso, Magda Lenard, Edel Mascarenhas, Carminha Brandão, Dora Serpa e grande elenco. Desfia a memória para falar do prazer em estar em cena junto ao público, em temporadas nos anos seguintes, sempre na companhia “dos melhores atores de Minas”. No traçado das lembranças, novo salto para 1981, outro trabalho marcante longe dos sets, na companhia de Rogério Falabella, Thales Penna, Maria Olivia e Ligia Lira: Bodas de papel, com direção de Carlos Xavier, cenário e figurinos de Raul Belém Machado, no Teatro Imprensa Oficial. “O que de melhor havia naqueles tempos de palco e camarim era o clima de família entre nós, artistas. De ruim, era a briga pela pauta numa cidade com poucos espaços para nossos espetáculos”, comenta.



Liberdade em primeiro lugar

Naddeo relembra encontro com artistas e jornalistas no Teatro Marília, no início dos anos 1980. Na ocasião, conta ter sido vaiado duramente ao erguer a voz contra verbas do governo para a produção teatral. “Não me entenderam. Sou absolutamente contra a subvenção governamental para o teatro. É um vício que cria grupos sem o menor compromisso com o público. O teatro só vai ter força profissional voltada para o público quando precisar sobreviver e crescer com a bilheteria. Como se faz uma Broadway? Com mercado. Com profissionalismo e dedicação para convencer a plateia pagante. As leis de incentivo criaram atravessadores, aproveitadores, que se escondem atrás de projetos pessoais”, critica.


O ator considera que, assim como a falta de interesse pelas produções locais por parte das emissoras de TV, a decepção com os mecanismos públicos de apoio ao teatro embaçou a arte que ele mantém viva na memória. Hoje, paixão alimentada na prática, na paz de Naddeo em Florestal, apenas pelo prazer da leitura e o rascunho das palavras em livro inédito na gaveta. Para o famigerado jagunço da ficção, “o correr da vida embrulha tudo”, como escreveu Guimarães Rosa.




Trecho do conto “Famigerado”, de Guimarães Rosa

"– Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-megerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?


Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?


– Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro..."

Estado de Minas - Cultura - 8/7/12