Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

domingo, 8 de julho de 2012

Naddeo, o famigerado


Texto: Jefferson da Fonseca Coutinho
Foto: Euler Júnior

Nos anos 1980, ao lado de Bernardo Mata Machado, Gil Amâncio, Rodolfo Vaz e Saulo Laranjeira, Antônio Naddeo, já experimentado homem de teatro e TV, encarnou o jagunço Damásio, personagem imortalizado pelo conto “Famigerado”, de Guimarães Rosa. No vídeo, lançado em 1991, com duração de 14 minutos, sob a direção de Aluizio Salles Júnior, o respeitado intérprete se sobrepõe ao tempo e ao espaço para emprestar corpo e voz a uma das composições mais marcantes de sua sexagenária galeria de personagens para palco e tela – são mais de 40 espetáculos e cerca de 200 trabalhos nos sets de Minas Gerais. Hoje, aos 78 anos, o afamado ator da TV Itacolomi, ainda embevecido pelo universo rosiano, viúvo, vive retirado em “abrigo modesto” de escrita, leitura, estudo, paz e sossego em Florestal, a pouco mais de 60 quilômetros de Belo Horizonte. Foi em quarteirão de silêncio, deserto dos males dos grandes centros, no município de 7 mil habitantes, que o Estado de Minas encontrou o artista, de barba branca sertaneja, cheio de saúde e história.


No alpendre que dá para o horizonte, vê-se a rua vazia. Por duas horas de dia de semana, um único carro a cruzar o traçado de pedra. Os pássaros fazem a festa no entorno do coqueiro e na vizinhança do número 685 – à esquerda e à direita, nos imóveis dos filhos Átila e Ítalo. A voz inconfundível de locutor de programas e peças publicitárias para rádio e televisão revive os tempos de teleteatro, ao lado de Rogério Falabella, Elvécio Guimarães, Wilma Henriques, Vilma Patrícia, Palmira Barbosa, Ana Lúcia e Antônio Cattah, entre outros tantos que ajudaram a escrever, com talento e suor, a história da teledramaturgia brasileira nos sets mineiros. “Nos anos 1950, no Brasil, a TV era algo fenomenal que estava surgindo com uma grande revolução de costumes. A experiência vinda do teatro foi o que assegurou o sucesso das novelas e dos programas de entretenimento. Em Belo Horizonte, seguramente, estava um dos melhores e mais bem preparados elencos de todo o país”, considera.


Naddeo relembra com entusiasmo os “anos de ouro” para os atores mineiros, entre 1960 e 1970, quando o talento fazia valer as oportunidades na capital. Critica a centralização das produções no eixo Rio-São Paulo, segundo ele, “um golpe duro contra as culturas regionais do país”. Para o veterano, hoje, “pensador retirante”, a falta de investimento nas programações locais – depois do surgimento do videotape – foi um grande erro cometido pelos empresários do setor de telecomunicações. “E não digo isso apenas por causa da falta de trabalho para milhares de profissionais fora do Rio de Janeiro e de São Paulo, considero um equívoco, especialmente, para o telespectador, que ficou refém das ideias e dos interesses dessas duas cidades. Temos uma diversidade cultural riquíssima abandonada por absoluta ganância”, lamenta. Para Naddeo, que quase não vê mais televisão, as produções regionais de cultura e entretenimento são caminho para alavancar audiência e dar voz às localidades.


Paulista, com fortes raízes em Minas desde moço, Naddeo não queria deixar Belo Horizonte. Sem trabalho e com a família para sustentar, no fim dos anos 1960 foi atrás de novas oportunidades. “Com o fim das produções em várias regiões do Brasil, muita gente teve que ir para o Rio e para São Paulo. Daí, talvez, o que fez com que o mercado de lá se fechasse tanto, para se proteger. Ninguém de outros estados era bem recebido. Lembro-me de passagem triste com o Sérgio Cardoso, um grande artista que tinha a minha admiração. Estávamos no estúdio e ele me ignorava, como quase todos os colegas de lá. Até que a atriz Ana Maria Dias, uma excelente profissional, muito respeitada, parou o estúdio para chamar a atenção do grupo sobre o que estava acontecendo. Foi quando o Sérgio Cardoso se aproximou e disse: ‘Bem-vindo entre nós!’. Até hoje, quando me lembro disso, sinto-me comovido”, emociona-se. O beija-flor miúdo na varanda rouba a cena. “É por causa da minha mulher, a Zilah. Ela cuidava muito bem deles. Os passarinhos sempre estão rondando a casa”, conta.


Passado vivo

O homem da voz marcante se refere à mulher, “encantada” – como chamou a morte Guimarães Rosa – em 17 de setembro de 2008, como o grande amor da sua vida, com quem viveu por 52 anos. Quando Naddeo estava para ter sua grande oportunidade em rede nacional pela TV Tupi, na novela Antônio Maria, deixou de lado o trabalho para voltar para Belo Horizonte e cuidar da companheira. Sem arrependimentos, do melhor da vida, Naddeo pontua o tempo em família, ao lado da mulher e dos filhos. Café com biscoito na mesa e pausa para falar de outra grande paixão: o teatro. Um convite para a casinha de fundos, armazém com recortes do passado. Dezenas de fotos, recortes de jornais e vídeos com trabalhos em mais de 60 anos da carreira iniciada com João Ceschiatti, no Teatro Escola do Sesi, em 1950. Mostra com orgulho as imagens que confirmam parte da história proseada no alpendre, junto ao beija-flor. Os olhos verdes mudam de cor para a respiração de saudade: “É muita história… E tem ainda tudo isto aqui”, aponta para cartazes puídos e coloridos pelo tempo.


Na volta à frente da casa, o mesmo silêncio de sossego na rua. Mais um passeio à década de 1950. O ano é 1954. Estreia de A dama da madrugada, de Alejandro Casona, dirigido por Armando Panetti, no Teatro Francisco Nunes. Em cena, ao lado do jovem Naddeo, Otávio Cardoso, Magda Lenard, Edel Mascarenhas, Carminha Brandão, Dora Serpa e grande elenco. Desfia a memória para falar do prazer em estar em cena junto ao público, em temporadas nos anos seguintes, sempre na companhia “dos melhores atores de Minas”. No traçado das lembranças, novo salto para 1981, outro trabalho marcante longe dos sets, na companhia de Rogério Falabella, Thales Penna, Maria Olivia e Ligia Lira: Bodas de papel, com direção de Carlos Xavier, cenário e figurinos de Raul Belém Machado, no Teatro Imprensa Oficial. “O que de melhor havia naqueles tempos de palco e camarim era o clima de família entre nós, artistas. De ruim, era a briga pela pauta numa cidade com poucos espaços para nossos espetáculos”, comenta.



Liberdade em primeiro lugar

Naddeo relembra encontro com artistas e jornalistas no Teatro Marília, no início dos anos 1980. Na ocasião, conta ter sido vaiado duramente ao erguer a voz contra verbas do governo para a produção teatral. “Não me entenderam. Sou absolutamente contra a subvenção governamental para o teatro. É um vício que cria grupos sem o menor compromisso com o público. O teatro só vai ter força profissional voltada para o público quando precisar sobreviver e crescer com a bilheteria. Como se faz uma Broadway? Com mercado. Com profissionalismo e dedicação para convencer a plateia pagante. As leis de incentivo criaram atravessadores, aproveitadores, que se escondem atrás de projetos pessoais”, critica.


O ator considera que, assim como a falta de interesse pelas produções locais por parte das emissoras de TV, a decepção com os mecanismos públicos de apoio ao teatro embaçou a arte que ele mantém viva na memória. Hoje, paixão alimentada na prática, na paz de Naddeo em Florestal, apenas pelo prazer da leitura e o rascunho das palavras em livro inédito na gaveta. Para o famigerado jagunço da ficção, “o correr da vida embrulha tudo”, como escreveu Guimarães Rosa.




Trecho do conto “Famigerado”, de Guimarães Rosa

"– Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-megerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?


Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?


– Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro..."

Estado de Minas - Cultura - 8/7/12

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