Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

sábado, 31 de outubro de 2009

Os dragões não conhecem o paraíso

"O que a jabiraca melhor fazia era mimar as sucuris e infernizar a vida do companheiro, que, homem de regras, fiel aos compromissos, jamais pensou tirar do dedo a aliança"





Finou-se o Alcebíades. Por escrito, o último desejo: “A quem por mim tem respeito, um pedido: quero ser cremado. Minhas cinzas joguem no mar de Rio das Ostras, bem em frente às amendoeiras. Ponto final e um abraço”. Verdade seja dita, foi lá, na Região dos Lagos, no Rio de Janeiro, que o velho mineiro nascido na Zona da Mata viveu tempos felizes. Funcionário público aposentado, passou maus bocados por mais de 30 anos em repartição abarrotada de burocratas e traíras na prefeitura de Belo Horizonte.

Contudo, o trabalho, nem de longe, foi sua pior sorte. Azar mesmo foi a dona gorda e destemperada que arranjou para mulher. Uma tal Dasdor, que conheceu numa excursão para Brejo Grande. Um colosso descomunal. Mais feia do que filho bater na mãe no aniversário de Jesus. Nem boa parideira a fulana era. Abortou só de sacanagem, com um cabide, o filho homem que o Alcebíades tanto queria. Um baque e tanto para o sujeito. De resto, com a dona, no balaio das infelicidades, vieram duas assombrações de saias: Fiorella e Fiorentina. “Filhas do capeta, isso sim!”, era o que a vizinhança dizia.

As duas gurias, quase gêmeas, com oito meses de diferença apenas, fizeram o diabo com o pobre do Alcebíades. Manhas, birras, pirraças, o escambau. A mãe, do tipo que só sabia comer, dormir e reclamar doença, deixava tudo por conta do marido. O que a jabiraca melhor fazia era mimar as sucuris e infernizar a vida do companheiro, que, homem de regras, fiel aos compromissos, jamais pensou tirar do dedo a aliança. A vida sofrida, de pouca ou nenhuma alegria, ganhou graça foi mesmo com a compra da casinha na praia. Principalmente, porque os dragões não gostaram do lugar. As três disseram em coro, na varandinha que dava para o mar: “Melhor a morte!”.

Aquilo deixou o Alcebíades chateado para burro. Nem quando teve o crânio afundado pelo peso da panela de pressão, agredido pela Dasdor e pelas filhas, ficou tão sentido. Mas, pela primeira vez, sustentou a própria vontade, manteve a compra do imóvel e passou a viajar sozinho uma vez por ano, em feriado qualquer, quando a patroa deixava: “Vai, desgraça!”. A verdade é que, lá, em paz, passou dias de glória. Durou pouco. Cinco anos apenas. Até que teve piripaque, passando os vestidões GGs da família. Fulminante. Morreu com o ferro quente na mão. Dasdor viu a queda e ainda berrou: “Levanta, imprestável!”.

O bilhete de vontade póstuma, grampeado na capa de pasta de documentos, Dasdor rasgou com a conivência das infelizes. O corpo do Alcebíades acabou num caixão barato, enterrado em cemitério popular da cidade. Ainda assim, certamente, alcançou o paraíso.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 31 de outubro de 2009

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Pontiac - Ficha técnica

O filme promete. Bom roteiro, equipe de primeira e muita disposição! Privilégio fazer parte desse grupo. É set que vai deixar saudade.





FICHA TÉCNICA

Elenco:
Jefferson da Fonseca
Léo Quintão
Ferdinando Ribeiro
Priscila Bortolli

Roteiro: Anderson Telles
Direção: Letícia Mendanha
Assistente de Direção: Marcos Rafael Bomfim
Continuidade: Guilherme Sander

Direção de Fotografia: Anderson Telles
1º Assistente de Câmera: Ruan Senna
2 º Assistente de Câmera: Flávio Von Sperling
Chefe de Elétrica e Maquinária: Frederico de Lima

Direção de Arte: Joycilene Santos
Assistente de Arte: Clareana Turcheti
Figurino: Taís Tozatti
Maquiagem: Gabriela Dominguez
Produção de Objetos: Marta Mourão

Produção Executiva: Daniela da Matta Machado
Assistente de Produção Executiva: Elton Delgado
Direção de Produção: Diana Vidigal
1º Assistente de Produção: Marcus Luan Neto
2º Assistente de Produção: João Gabriel Campos
3º Assistente de Produção: Vivian Britsch
Produção de Elenco: Samuel Ferman
Produção de Locação: Marcus Luan Neto

Técnico de Som: Leonardo Diniz

Edição: Rafael Borges
Trilha Sonora: Gabriel Telles

Still: Marta Mourão
Making Of: Joycilene Santos

Motorista: Aguinaldo Ferreira Silva

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Razões para ficar bem

"Osho, Dagmar e a força do pensamento", coluna publicada na semana passada, trouxe leitores e velhos conhecidos à nossa caixa postal. Mourão, Lilian, Flavinha, Lúcio, João Miguel, Maurício e Inês, meu abraço. Fico muito feliz em saber que tem muita gente com o olhar voltado para dentro de si mesmo. Se há um caminho, é este, temos certeza. Converso sempre com a Violeta sobre isso: o poder infinito que existe em nós. Tudo o que é externo precisa estar sempre no seu devido lugar. Do lado de fora, é claro. É um exercício diário pensar assim. Aprendi que para fortalecer a consciência é preciso reaprender a respirar. É a respiração dos cinco tempos: inspiro pelo nariz contando até cinco e seguro o ar, contando até cinco. Depois, solto o ar pela boca. Funciona que é uma beleza. Experimente, amigo leitor. Dia desses, me conte o resultado.

Mens sana in corpore sano (uma mente sã, num corpo são). Quem disse que taxista não sabe latim? Chique, não!? E assim vou vivendo, mais e melhor, sem dar mole para a tristeza ou para o azar. Os motivos que alimentam o otimismo são muitos: saúde, filhos, família, amigos, amor e trabalho. Muito trabalho. Nos últimos dias, uma corrida puxando a outra. Ora aqui, ora ali, no pouco tempo vago, a caneta correndo solta, no fluxo do pensamento. A letra, na mão mais veloz, cada vez mais horrorosa. Às vezes, nem eu mesmo consigo entender o garrancho. Mas as ideias andam ganhando mais força, trazendo-me paz e alegria. Não há tempo para pensar ou fazer o que não presta. Se tivesse sete vidas, certamente saberia o que fazer com cada uma delas. Sério. Não é presunção. É amor pela existência e por tudo o que ela representa.

Problemas? Quem não os tem? A diferença está em como lidamos com eles. Conheço quem olha para uma barreira e diz: "Danou-se". Já outros: "É hora de mudar o caminho". Sou mais o segundo tipo, porque o primeiro é muito triste. Viver não é fácil. Quem disse que seria? Tem cada vez menos espaço para a preguiça dos derrotistas. Cabeça erguida, mãos à obra. Há muito o que ser feito para aprender a ser alguém. "Mas como ser alguém se nem sabemos bem o que somos?", ouvi outro dia de passageiro entristecido. Depois de longa conversa sobre o assunto, deixei-o mais animado em praça no Bairro Planalto. Concluímos que a resposta para questões dessa natureza só pode estar no Deus que habita o nosso ser. Mais uma vez, recorri ao Mestre Osho para aquietar o pensamento.

Jornada encerrada em mais um dia de paz. Eus recolhidos (e temos muitos, acreditem), hora de colocar a cabeça no travesseiro e respirar em cinco tempos. Sons do oceano, com marolas e gaivotas no CD, mergulho no colo da Violeta adormecida. No repassar dos sentidos, são muitas as razões para ficar bem.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 28 de outubro de 2009

sábado, 24 de outubro de 2009

O sorriso da Laurinha

O movimento foi fraco naquela tarde de domingo. No Parque Municipal, o cinquentão Olegário não arrebentou mais do que dois quilos de milho. De marcante no expediente, apenas o testemunho de fora arrasador que a bela mocinha levou do canastrão da camisa vermelha: “Adeus!”. A cena triste chateou o pipoqueiro. Tanto que, pouco depois do episódio, ele resolveu encerrar o carrinho e a jornada.

Despediu-se do Nico, vendedor de algodão-doce, que, feliz da vida, segurava o varão com único exemplar de resto. Andou sem pressa, tocando as rodinhas empenadas. O barulho irritante do carrinho abafava o canto dos pássaros e das cigarras. E assim, comendo algodão cor-de-rosa, que comprou do amigo, o Olegário seguiu até a velha caminhonete, estacionada sob o viaduto Santa Tereza.

Amarrou firme o ganha-pão na carroceria e assumiu o volante. Insistente, bateu a chave na ignição até reanimar o motor cansado. Subiu a Rua da Bahia para dobrar a Avenida Augusto de Lima, rumo à Praça Raul Soares. O sol morria sem graça quando o Olegário abriu o portão de aço da garagem do casarão azul, no Bairro Serrano. Venceu as escadas de cimento grosso e cruzou o alpendre. Ao abrir a porta da sala, reencontro inesperado.

No sofá, Luzia, a filha única, expulsa de casa há dois anos por ocasião de gravidez indesejada, segurava as mãos da mãe. Ao lado, de pé, o genro, desafeto em tempos de destempero e ignorância. Na fita da retina, o passado, como filme: a noite em que expulsou a garota de casa, contrariando os apelos da mulher: “Não faz isso, Olegário! É nossa menina!”. Já ele, sem dó ou perdão: “Quero essa vagabunda longe daqui. Não criei filha minha pra se embarrigar na rua. Tá aqui a sua trouxa. Agora, some!”.

O Olegário, mudo, só retomou o presente ao ouvir a voz da filha, mais grave do que na época em que partiu. “Pai”, disse baixinho em tom melancólico. O pipoqueiro apenas meneou a cabeça. A mãe prendia o choro por tristeza profunda. O jovem marido encarou o sogro como o mais duro de todos os homens. Luzia foi quem desenrolou a conversa:

– A gente não quer incomodar. Só tava esperando o senhor.
– O que você e esse sujeito vieram fazer aqui?
– Trazer um convite. É... pra missa de 7º dia da nossa filha.

Na foto em papel barato, o último sorriso da pequena Laurinha. Com pouco mais de um ano de vida, o bebê foi vítima de pneumonia. Com o impresso na mão, Olegário desabou por dentro enquanto o casal partia.

Jefferson da Fonseca Coutinho - Vida Bandida - 24 de outubro de 2009

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Entrada franca

Hoje, sexta-feira, às 20h, tem O comedor de batatas no Espaço Cultural PUC Minas, na Praça da Liberdade, com entrada franca. Ferdinando Ribeiro e Emílio Zanotelli dividem a cena em drama simbolista, inspirado no teatro do absurdo. Imperdível!




Ficha Técnica:
O Comedor de Batatas

Texto e direção: Jefferson da Fonseca Coutinho
Elenco: Ferdinando Ribeiro e Emilio Zanotelli
Fotografia: Marlos Ney Vidal

Espaço Cultural Puc Minas – Tel. 3269-3260
Rua Sergipe, 790 – Funcionários

Dia 23 de outubro, sexta-feira, às 20h.

Entrada franca.

Contato:
Ferdinando: 9774-3214
Jefferson: 9952-2901

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Osho, Dagmar e a força do pensamento

Ganhei uma caderneta nova. Mimo de passageira encantadora. “É para ajudar com as palavras, meu filho”, escreveu a dona Dagmar, 78 anos, leitora fiel de nosso Aqui. Mandou-me num envelope com oração manuscrita e bilhete de amizade. Obrigado, dona Dagmar! Muita luz em seus caminhos. Trouxe-me alegria o presente. Guardei-o para a noite de domingo, dia de menos movimento no batente. Comprei caneta especial, azul, para deixar correr nas folhas de papel reciclado, e mandei ver.

É sempre um mistério cada dia de vida e trabalho. São encontros e mais encontros que se somam em cada jornada. Uma dádiva poder perceber tanta beleza que há no mundo. Só a percepção é capaz de educar o pensamento. Desde que tomo nota de quase tudo, venho aprendendo a reconhecer o sentido das coisas. É como se, por meio da escrita, eu ganhasse uma segunda chance para avaliar cada impressão sobre isso ou aquilo. Assim, minha opinião pode se refazer com menor risco de engano na compreensão das ideias. Portanto, faço do ofício da escrita ritual para revisão de valores. Dividir assunto com o amigo leitor, seja ele qual for, é tarefa de grande responsabilidade.

Encanta-me a riqueza que há em cada pessoa. Diariamente, conheço gente de todo tipo e sorte. Aqui e ali, entre uma conversa e outra, vou compondo ou revivendo as memórias. Vez por outra, passam-me pela cabeça pensamentos do arco da velha. Por exemplo: que metade do que vemos no outro já está em nosso olhar. Explico: se olhamos o outro procurando algo bom, lá vai estar o bem. Agora, quando lançamos o olhar carregado, contaminado por algo ruim, certamente, não vai ser de todo bom o que vamos ver. Basta citar o preconceito, a ignorância e as falsas verdades espalhadas por aí.

Tenho cadernetas empilhadas sobre a verdade. Fica até difícil reunir cinco ou seis parágrafos. Afinal, isso me provoca continuamente. O fato é que, bastante revisadas, tenho cá as minhas observações sobre o tema. Falsas ou não, boas ou más, verdades também podem ser construídas. Acreditamos naquilo que queremos. O importante é aprender separar o que vale a pena daquilo que não presta. É filtrar apenas o que tem algum valor. É não se contaminar pelo egocentrismo e, o mais difícil, se esvaziar da vaidade que emburrece. Digo a mim mesmo: ninguém é tão grande para que sempre seja visto, nem tão pequeno para que jamais seja notado.

Lembro-me bem dos ensinamentos de Osho, mestre indiano, quando penso que a existência, “mais antiga de todas as canções”, em si é a maior de todas as vitórias. A natureza é abundante. Todo o resto material (pelo que tanto nos matamos) é invenção do homem. Simples assim: Deus está em mim. Eu sou o meu templo. Para ser feliz e estar próximo de Deus, basta aprender a amar. Tenha o amor inesgotável que há em você acima de todas as coisas. O que está fora do nosso alcance e pelo que tanto lutamos, quem sabe, pode ser apenas mais uma verdade construída, dessas muitas, fingidas por você e por mim.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 21 de outubro de 2009

sábado, 17 de outubro de 2009

Há sempre alguém esperando por você

Bastou que a mulher abandonasse a casa para que o Leônidas desse o troco. Ele até que tentou salvar o casamento, mas foi despachado na rua, no portão da casa da sogra, sem dó ou piedade, diante dos olhos tristes da filha Gabriela. “Não sou mais sua mulher”, mandou na lata a esposa. Arrasado, tomou lotação circular amarela e deu duas voltas na Avenida do Contorno. Desceu em ponto deserto e seguiu a pé, com a cabeça a mil, até o apartamento recém-alugado para aumentar a família. Ficou só na vontade, já que a companheira se apaixonou pelo instrutor da autoescola do bairro. Subiu pelo elevador decidido a não amargar solidão nem ficar mal na fita.

Ainda olhou desolado para o quarto de casal sem vida, antes de passar a mão no celular e fazer ligação. Do outro lado da linha, doce e disponível, Clara, colega de repartição na empresa de engenharia.

– Alô!
– Preciso ver você.
– Agora?
– Humhum.
– Onde?
– Anota o endereço.

E esperou pela secretária do quadril largo e da pele aveludada. Tomou banho para mandar pelo ralo o cheiro da ex-mulher. Guardou os brinquedos da filha espalhados pela casa e desfez porta-retratos de tempos felizes. Não demorou para que o interfone tocasse. “Clara.” “Sobe.” Respirou fundo diante do espelho e mandou os óculos na penteadeira. Na porta, linda e indecente, com vestidinho verde em rendas, colado, salto alto e garrafa de champanhe em uma das mãos, a bela parceira de sala no edifício da Avenida Prudente de Morais era um só sorriso. “Entra”, ele disse. Não se ouviu mais palavra. Atracaram-se ali mesmo com apetite voraz. Despudoradamente, amaram-se noite adentro.

Manhã de céu azul luminoso. Surpresa. A ex-mulher entrou sem fazer barulho para buscar roupas e alguns objetos deixados para trás. Queria também ver como estava o marido, esfrangalhado, depois de fora descomunal. Teve o coração aos pulos quando, pela fresta, viu o marido feliz dormindo no colo da bela loura de olhos azuis. Sorriam sono profundo no aconchego da cama comprada por ela.

Jefferson da Fonseca Coutinho - Vida Bandida - 17 de outubro de 2009

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Onde os pobres não têm vez

Náo é preciso usar óculos ou ser bom observador para perceber os contrastes por aí, aos montes. O público e o privado não se misturam quando o assunto é patrimônio, dinheiro no bolso ou, como dizem: “bala na agulha”. O Humberto, companheiro de praça, não está tão sem razão quando diz que “o sujeito vale quanto tem na carteira”. Ele tem lá suas razões. Ontem, durante longa jornada bancária, pensei bastante na questão. Daí, desci a caneta para dividir algumas observações com o amigo leitor.

Logo cedo, durante o café da manhã com a Violeta, organizei envelope com as contas para colocar em dia. Tracei meu roteiro pelas agências no Centro, onde gosto de andar a pé para alimentar as ideias e redescobrir as pessoas. De cara, na Praça 7, tumulto na porta giratória. Fila gigante, fizeram a senhora, de uns 60 anos, acompanhada do neto, esvaziar a sacola colorida e embarreirar o fluxo. Logo depois, o moço estiloso, com pinta de artista, também não escapou do cerco. Teve trabalho para mostrar que não estava armado e que era do bem.

Dentro do banco, movimento de início de mês e de pós-feriado. Pouca gente para atender e centena de clientes na espera. Quem podia resolver a vida com os caixas eletrônicos conseguiu ser liberado mais cedo. Outros, como eu, que precisavam passar pelo atendimento, tomaram chá de demora, em pé. Uma luta. Uma reclamação aqui, outra ali e os funcionários lá, na peleja, fazendo de tudo para dar conta do movimento. Não são culpados, certamente. Estão sobrecarregados de trabalho, com os salários achatados. Já os banqueiros, numa boa, cada vez mais endinheirados.

Hora e meia perdida, outro banco pelo caminho. Em greve. Na entrada, o senhor de aparência humilde, barba por fazer e botinas sujas de cimento, estava indignado e desabafou com o guarda. “Vim buscar o dinheiro do meu PIS. Lá em casa já cortaram a luz. Na loteria a moça falou que só na agência. O que eu faço, meu filho?” O guarda encerrou o assunto: “Não posso fazer nada, senhor”. E não podia mesmo. É o país do futuro. Voltei aborrecido com a história daquele senhor.

No rumo de casa, chamada de cliente médico, dono de uma clínica de cirurgia plástica. Desde o início do ano, por indicação e amizade, faço alguns serviços de rua para o doutor. Deu-me cheque graúdo para descontar. Fui parar numa agência requintada no Bairro Mangabeiras. Nunca fui tão bem atendido na vida. Sorrisos, gentileza e cafezinho, tudo personalizado. Uma beleza. Um choque e tanto para quem havia passado a manhã como gente comum em outra agência do mesmo banco.



P.S. Hoje, às 19h, tem missa de 7º dia pela alma de Amália Turchetti Gonçalves, avó do amigo leitor Alexandre Gonçalves. Vai ser na Paróquia Sagrados Corações, na Rua Padre Eustáquio, 2.405. A família convida para “celebrar a vida” da ilustre centenária.


Bandeira Dois - Josiel Botelho - 14 de outubro de 2009

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Para ficar na história

Neil Tennant arrancou risos do público com o português: “Divertissei! Divertissei…” Por fim, conseguiu: “Divirtam-se”. E sorriu: “Belo Rorissonte”.




Mesmo com o cerco aos flanelas irregulares de Belo Horizonte, quem foi de carro ao show do Pet Shop Boys na sexta-feira, no Chevrolet Hall, não esteve livre dos achacadores. Misturados aos cambistas, eles estavam lá para mostrar que ainda mandam no pedaço: “Pode subir na calçada, patrão”. Fala sério. Se do lado de fora havia com o que se chatear, na arena o clima não podia ser mais alegre para o primeiro show da turnê Pandemonium do duo inglês no Brasil.

Casa pela metade pouco antes do começo, grande parte da plateia ainda estava do lado de fora, quando Chris Lowe e Neil Tennant entraram em cena. Falta de sorte para os que perderam More than a dream (faixa do último álbum, “Yes”, que vem rodando o mundo) e Heart, com seus corações flutuantes. Logo na abertura, a explosão de cores e imagens holográficas revelaram o forte aparato técnico do grupo. Dezenas de cubos brancos formavam o cenário-telão desmontável, que alucinaria os espectadores por quase duas horas, com 27 canções. Pouco a pouco o público tomou a pista, com espaço apenas nas arquibancadas, reservadas aos mais velhos, discretos ou cansados.

O que seguiu foi show inesquecível, faixa a faixa, com som e produção de requinte, direção de arte impecável, com grafismo e animação raros. Os quatro dançarinos e backing vocals (três mulheres e um homem) se somaram aos efeitos no tablado mágico. Até as coreografias mais quadradas, ao estilo “dois para lá, dois para cá”, ilustram bem o synthpop da dupla. Em Jealousy, por exemplo, o pas-de-deux em evidência acentua a poesia desconcertante da canção. Assim como em Two Divided by Zero, quando o quarteto travestido de “edifícios” acompanha os passinhos ensaiados de Chris Lowe.

Neil Tennant arrancou risos do público com o português: “Divertissei! Divertissei…” Por fim, conseguiu: “Divirtam-se”. E sorriu: “Belo Rorissonte”. Os dois garotos de meia idade mostraram que continuam em forma. Românticos, políticos, desde o início dos anos 1980 donos de pop eletrônico contagiante, levantaram a plateia em coro com os hits Always on my mind (Elvis Presley), Go west (Village People), Suburbia, Viva la vida (do conterrâneo Coldplay), e It’s a sin.

O tempo voou e na percussão de palmas pelos braços erguidos da multidão, Chris e Neil deixaram o palco fazendo charme e voltaram para o bis com as belas Being boring e West end girls. Noite para ficar na história dos grandes shows em Minas. Os Pet Shop Boys, pela segunda vez, não decepcionaram e souberam fazer a alegria de duas gerações de fãs na cidade. Ontem, estiveram em Brasília. Amanhã, apresentam-se em São Paulo e, na quarta-feira, no Rio de Janeiro. Depois, seguem para Argentina, Peru e República Dominicana.

(Jefferson da Fonseca Coutinho - Crítica publicada no jornal Estado de Minas)

sábado, 10 de outubro de 2009

Feliz aniversário, Aracélia!

"Distribuiu sorrisos na lotação. Sentiu-se charmosa até, como nunca em toda a vida. Acreditou ter chamado a atenção de dois ou três machos de pé, seguros nas varas de aço do carrão azul"



Não fosse o vento a assoviar na janela, seria mais um dia como outro qualquer na vida de Aracélia. Desde que foi deixada no altar pelo Antero, há 14 anos, na igrejinha de Santa Luzia, aprendeu a não esperar muito do tempo. E, assim, os meses se iam, juntados no galope, sem mais nem porquê. No entanto, naquela manhã de aniversário, a solteirona levantou mais cedo para cuidar das plantas e preparar café caprichado para si mesma. Sem pai nem mãe ou companhia de qualquer espécie, não se importou com a solidão na casinha branca do Bairro Paraíso. Feliz pelo instante, comeu broa de fubá e bebeu café amargo como a mais faminta entre os mortais. Soprou vela barata com sorriso bonito, de criança.

Hora de ir para o trabalho. Havia muito a fazer pelo “seu” Danilo, dono da autoescola do outro lado da cidade. Secretária por talento e vocação, Aracélia sempre foi exemplo de comprometimento. Logo que terminou o curso de jornalismo em importante instituição privada, conquistou na raça vaga no universo dos negócios. Acabou tomando gosto pelo batente e pela conversa mole do patrão. Estreou vestidinho novo, comprado na liquidação, passou batom pastel e gostou de seus 46 anos, luminosos, refletidos no espelho. Envelhecia bem a infeliz. Trancou a casa e seguiu para tomar ônibus até a estação do metrô.

Distribuiu sorrisos na lotação. Sentiu-se charmosa até, como nunca em toda a vida. Acreditou ter chamado a atenção de dois ou três machos de pé, seguros nas varas de aço do carrão azul. Respirou fundo sentada à janela e dedilhou a medalhinha de Santo Antônio no pescoço. Com os olhinhos brilhantes por trás dos óculos de míope, Aracélia enxergou graça até naquele trecho horroroso da Avenida dos Andradas. Ponto à vista, deu sinal para deixar o busão. No caminho até a porta de saída, roçava o quadril na cintura do moço de gravata vermelha quando o motorista teve que pisar no freio. Susto no coletivo. No tranco, encaixe indecente. Envergonhada, ela se desculpou apenas, sem olhar para trás.

Desceu na estação para tomar o metrô. Atrás da faixa de segurança, ainda ruborizada pela microaventura no colo do estranho, viu o apontar do trem. Entrou no último vagão, vazio. De repente, como num sonho desses de cinema, apenas ela e o moço da gravata vermelha. Beliscou-se discreta para ver se estava acordada. Sorriram-se mudos. Aracélia decidiu dar voz aos instintos, presente de aniversário, e deixou na cadeira a razão. Abraçou o cidadão como se fosse o último de todos os homens e mandou-lhe ver a língua indecente na boca. As mãos, duas garras poderosas, rasgaram roupas e engalfinharam a pele.

Uma loucura. Aracélia só parou quando, abraçada ao mastro de apoio do trem, sozinha, ouviu do agente barrigudo da CBTU: “Minha senhora... está tudo bem?”.


Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 10 de outubro de 2009

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Os perigos no escurinho

O estupro e assassinato da estudante Josielle Alves Salustiano, de 19 anos, em Pernambuco, na noite do último domingo, rendeu-me a caderneta cheia de anotações. Não apenas porque ela foi morta no banco de trás de um táxi, mas, especialmente, pelo contexto do crime. O caso ainda não foi esclarecido. O que sei, pelo que pude acompanhar até o fechamento desta edição, é que ela e José Edson Lima Júnior, de 24, que conduzia o veículo ganha-pão do pai, foram dar uns amassos em lugar ermo, no Alto do Cruzeiro, no Bairro do Jordão, no Recife. Lá, pela versão do namorado, o casal foi surpreendido por bandido armado. Daí, o estupro e a morte de Josielle, com dois tiros na cabeça. História lamentável. Tragédia de entristecer qualquer cidadão de bem.

Essa história de pegação dentro de carro é assunto regular em nossas rodas da praça. É bastante comum para quem roda à noite flagrar casais na intimidade sobre quatro rodas em tudo que é quebrada noite adentro em Belo Horizonte e região metropolitana. Foi-se o tempo em que era até charmoso namorar dentro dos Fusquinhas, Chevetes, Mavericks e Opalões. As cidades não eram tão violentas. Hoje, infelizmente, é dar mole para o azar. Entendo perfeitamente os pais que não dormem enquanto os filhos não chegam. E isso nem tem a ver com a idade dos rebentos. O Onofre, meu passageiro de tempos, morador do Bairro Santo Antônio, não prega o olho enquanto os dois filhos solteiros não estão seguros em casa. E olha que um tem 23 e o outro 25.

Pela segurança dos filhos, já tem muito pai moderno, de cabeça aberta, oferecendo a casa para os namorados da família. O que até bem pouco tempo atrás poderia parecer um absurdo já é realidade em pelo menos meia dúzia de lares que conheço. No apartamento da Juçara, velha conhecida, casada com o dr. Eustáquio, o namorado da filha tem até guarda-roupa. E o namoro vai bem e longe: já são mais de dois anos de confiança. Há pouco mais de mês, numa corrida longa, ouvi do próprio dr. Eustáquio: “Prefiro dar liberdade para a minha filha em casa do que não saber o que ela está fazendo na rua”. Lembro-me de ter anotado a frase, de tão bacana que achei.

E isso não é só na casa de gente estudada, de recursos, não. O “seu” Nico, melhor pedreiro que conheci na vida, fez até suíte para a filha ter mais espaço e liberdade. A relação dos dois é de fazer inveja a muita gente. A filha, Tereza, funcionária de um sacolão, tem 21, e há quase um ano leva o namorado para dormir em casa. O “seu” Nico gosta tanto do genro, trabalhador, operador de telemarketing, que já até cedeu o fundo do lote para a construção do barracão dos dois. O resultado de tamanha amizade é que a Tereza, segundo o pai, não esconde nada da família. Uma coisa posso testemunhar: é de dar gosto ver o brilho nos olhos dela quando o assunto é o pai.

A conversa rendeu, amigo leitor. No entanto, o que eu queria com nossa Bandeira Dois de hoje, de coração, é chamar a atenção para os perigos no escurinho e pedir que Deus conforte a família da pernambucana Josielle.


Bandeira Dois - Josiel Botelho - 7 de outubro de 2009

domingo, 4 de outubro de 2009

Cena inesquecível

Atendendo a pedidos, segue primeira parte de "Caixa de areia", realizada para festival de cenas curtas do Galpão, em parceria com Marcello Castilho Avellar e apoio técnico de Ferdinando Ribeiro.




Os dois blocos complementares estão em

(parte2)
http://www.youtube.com/watch?v=yZxyO7-OdHg


(parte 3)
http://www.youtube.com/watch?v=9I0zKnDWGZY

sábado, 3 de outubro de 2009

Bola 7

"Foi num motel barato, no Centro da cidade, que a Eulália encomendou o serviço. Marcou horinha de amor barato com mau elemento e, depois de suar bicas debaixo do malandro, mandou a ideia..."




Ao cair a casa para o Maurinho, filho do taxista Adelson, meia dúzia de traficantes graúdos foram obrigados a tomar providências. Não demorou para que a coisa se resolvesse. A morte do garoto, espancado na prisão, trouxe alívio ao morro e ao asfalto. Do flagrante à condenação foram tempos de dor de cabeça para o Danilo. Dono da autoescola de faixada, foi ele quem deu ao Chico o comando que abrigava o Maurinho. Logo que o garoto foi preso, o próprio Danilo, pressionado por gente de cima, embarcou o afilhado para o interior da Bahia. Abaixo dele, ficou apenas a dona Eulália, muambeira da Floresta. Assim que os dois souberam da condenação do Maurinho, juntos, resolveram a parada. A conversa foi à luz do dia, durante café na Praça Sete. O Danilo puxou o assunto:

– O doutor não deu conta.
– Quanto tempo?
– Nove anos. A gente vai ter que cuidar do assunto.
– Ele é muito garoto.
– O Cabeça quer tudo resolvido.
– Não tem outro jeito?
– Ou ele ou você.

Não precisou render a conversa. A Eulália entendeu o recado. No dia seguinte, às pressas, a madame deu jeito de conseguir visita no presídio. Passou-se por advogada enviada pelo comando. O Maurinho já estava de cabeça raspada e exibia marcas de violência.

– Dona, diz pra todo mundo que eu já fiquei calado tempo demais.
– A gente sabe da sua situação, meu filho. Por isso que o outro advogado saiu do caso.
– Então avisa que, se eu não sair daqui rápido, vô entregá todo mundo.

Foi num motel chinfrim, no Centro da cidade, que a Eulália encomendou o serviço. Marcou horinha de amor barato com mau elemento e, depois de suar bicas debaixo do malandro, com o cigarrinho no canto da boca, pegando pacote de dinheiro na bolsa, mandou a ideia: “Tem que ser igual ao caso do Curió. Não pode ter erro. Tá aqui a metade. O resto eu dou pra você com o caso encerrado”, disse, maliciosa.

O Danilo jogava sinuca com os amigos quando soube da missão cumprida. Desligou o celular, passou giz na ponta do taco e cantou feliz: “Bola 7”. Matou a crioula.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 3 de outubro de 2009

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Com a palavra, o leitor

Jefferson, bom dia!

Recebi, através da minha amiga e colega de trabalho, Maria Luísa, esposa do Ademar, o seu livro "Bandeira Dois - Do eu que há em mim". A cada manhã, desfrutei a leitura de suas crônicas tão afeitas ao cotidiano do "taxista Josiel Botelho", extremamente sensível às questões sociais, políticas e intrínsecas ao ser humano, nas suas reflexões, ponderações, considerações. Achei sua habilidade de tratar de temas tão diversos, emergentes de uma capital susceptível ao bem e ao mal, muito equilibrada em seu estilo e forma, baseando-me no fato de Josiel ser povo e a ele dirigir-se, tão próxima e intimamente.

O taxista é cativante, ávido de dizeres, que não é indiferente ao seu universo, nem intransigente no que toca à ética e ao respeito pelo semelhante. A gama das apreciações do taxista é traduzida numa ótica ampla e visionária de um mundo carente de apropriar-se do seu fazer e reconstruir-se. Na sua linguagem coloquial e simples, Josiel diz, Josiel configura o tempo, oficializa a crônica do homem urbano em seu elo de complexas relações. Josiel ensina, semeia, faz valer sua voz, opina. Esse taxista a percorrer o asfalto, vai traçando perfis de uma revolução interna; faz-nos o pensamento refrear, para apreciarmos, com mais atenção e contemplação, o trajeto que traçamos.

Jefferson, também escrevo e gostaria que você aceitasse um exemplar de meu segundo livro. Chama-se "Dona Feia". Ela não foi conduzida no táxi do Josiel, mas bem que ele ficaria sensibilizado com essa (assim dizem)encantadora personagem. Como eu poderia enviar para você o livro? Pelo correio? Deixo em sua residência no Santa Mônica?

Aguardo seu retorno. Obrigado por resistir. Com consideração e estima,

Anderson de Oliveira.
andersonoliveira2002@yahoo.com.br