Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Em breve, o nosso

Um inimigo do povo

Por Rodrigo Constantino*

Na peça Um Inimigo do Povo, escrita pelo norueguês Henrik Ibsen no século XIX, vemos um homem com a coragem moral de manter sua integridade e convicção apesar da enorme pressão popular contra sua pessoa. Apesar dos exageros normais da dramaturgia, trata-se de um caso interessante de um pensador livre, um indivíduo apenas, combatendo a ignorância da maioria, e não cedendo nem mesmo sob o risco de completo isolamento e até falência pessoal.

O personagem central da peça, Dr. Stockmann, após descobrir que os famosos banhos da cidade estavam contaminados, esperava obter grande respeito e admiração por parte dos demais habitantes. Afinal, sua descoberta mostrava os riscos para a saúde de todos. Mas Stockmann ignorara os fatores políticos e econômicos, já que os banhos eram a principal fonte de renda da cidade. Aos poucos, mesmo seus supostos aliados, que declaravam apoio pela frente, o atacaram pelas costas, se voltando contra ele. Toda a cidade passou a repudiar o autor da infeliz descoberta, preferindo ignorar os fatos, como se assim estes pudessem, num passe de mágica, desaparecer. Dr. Stockmann agiu diferente, e mesmo que sozinho, sem apoio, escolheu a verdade, e enfrentou a maioria. Acabou tachado como um inimigo do povo, na tentativa de ajudá-lo.

Durante o tenso desenrolar da trama, Dr. Stockmann sofre inclusive a tentação de suborno, mas nada deixa ficar entre os fatos e sua convicção moral. Após refletir sobre a reação da maioria, Stockmann diz ter feito uma descoberta ainda mais importante que a poluição dos banhos. Seria a poluição moral da comunidade civil, calcada na mentira, na hipocrisia. Ele passa a considerar o maior inimigo da verdade como sendo a maioria compacta, que luta contra a razão individual. A covardia, a busca por interesses, o medo, tudo isso impede a verdadeira independência de pensamento, de busca da verdade. E com isso, Stockmann faz sua mais nova descoberta: o homem mais forte do mundo é aquele que se sustenta sozinho. Algo que nos remete ao recado de Schopenhauer, ao afirmar que “quem tem de produzir o bom e o autêntico e evitar o ruim tem de desafiar o juízo das massas e de seus porta-vozes e, portanto, desprezá-los”.

Parece claro que a inocência de Stockmann beira o absurdo, e que sua convicção confunde-se com fanatismo até. Nenhum jogo de cintura havia nele, nenhuma capacidade de flexibilidade. Stockmann simplesmente não jogaria o jogo político do mundo, não iria contemporizar. Cabe aqui nos questionarmos quem realmente consegue viver apenas afirmando a total verdade sobre tudo, sem um mínimo de hipocrisia, ou de “meias verdades”. Ou quem poderia ignorar por completo quaisquer interesses, ou opinião alheia. De fato, Aristóteles já havia dito que o homem é um “animal cívico”, que só se completa como homem na polis. Ele nos lembra que “aquele que não precisa dos outros homens, ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é um deus, ou um bruto”. Stockmann talvez tivesse obtido melhores resultados com meios menos puros, radicais. Na vida real, é muito raro encontrar alguém com tanta convicção moral e independência, a ponto de ignorar por completo a pressão da “massa ignorante”. Somos animais sociais, políticos.

Mas isso não anula, ao meu ver, a beleza e importância da mensagem de Ibsen. Confrontar a falsidade geral, fugir da necessidade de pertencer a um “rebanho bovino”, tendo que aderir a um pensamento monolítico, faz-se crucial para qualquer indivíduo que ama a liberdade e a verdade. Não seguir uma ditadura do “politicamente correto”, não depender da aprovação alheia sempre, é um caminho necessário para pensadores livres. Colocar a verdade dos fatos acima dos interesses imediatos é fundamental para quem defende a honestidade. Mesmo que tal postura reduza o grau de “sociabilidade” do indivíduo algumas vezes. Mesmo que tais atitudes possam colocar um indivíduo íntegro como suposto inimigo do povo, que tantas vezes prefere ignorar a verdade a ter que enfrentá-la com coragem. No fundo, a Humanidade agradece a independência de pensamento desses raros e corajosos indivíduos. Pode ser um tanto idealista a imagem de um indivíduo seguro de si, convicto do seu dever moral, enfrentar tudo e todos para defender nada mais que a verdade. Mas é um idealismo que vale admirar, ao menos para reforçar o alerta contra a ditadura do consenso. Afinal, como nos dizia o dramaturgo brasileiro, Nelson Rodrigues, “a unanimidade é burra”.

*Rodrigo Constantino é autor de cinco livros: "Prisioneiros da Liberdade", "Estrela Cadente: As Contradições e Trapalhadas do PT"", "Egoísmo Racional: O Individualismo de Ayn Rand" ,"Uma Luz na Escuridão" e "Economia do Indivíduo: O Legado da Escola Austríaca"

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Adolescência roubada repercute


E-mails, comentários na web, telefonemas e muita conversa na praça sobre a última coluna, intitulada “Adolescência roubada”. A suposta overdose da menina Geisiane Carolina da Silva Martins, de 17 anos, moradora da Vila Marimbondo, em Contagem, numa boate, precisa mesmo ecoar. A Antônia, de Betim, se diz estarrecida com os adolescentes que trocam as salas de aulas pelas baladas. Por telefone, desabafou:

“Sou mãe e tia. Na minha casa, na minha família, tem muita gente entre 15 e 20 anos. Todo mundo está atento. Tem que ficar. Porque o mundo de hoje não está para brincadeira. É acesso fácil demais à perdição. Os computadores e a internet facilitaram os estudos, é verdade, mas também favoreceram a criminalidade. Os bandidos de hoje estão agindo pelos celulares e nas redes sociais. Qualquer traficante pé de chinelo está no Orkut, no Facebook. Tenho um sobrinho que mostrou ao pai, meu irmão, uma página de recados falando de drogas em festas. Fiquei perplexa quando soube disso, Josiel. Lugar de criança, de adolescente, é na escola, é com a família. Continue escrevendo sobre o assunto. É um grande serviço à comunidade”.

O escritor, historiador e cozinheiro José Cláudio, o Cacá do blog Uai Mundo?, leitor amigo das antigas, comentou Bandeira Dois na internet: “É, meu caro Josiel, enquanto o padrão de nossa sociedade for a competitividade acima das relações coletivas, vamos ter problemas sérios de desvios mais do que já tínhamos antes. A desintegração familiar, a perda gradual do papel da escola como coadjuvante na educação do lar e mais esse monte de causas que você bem citou são fatores, no meu entendimento, que estão roubando nossa juventude. Hoje, vi uma criança de apenas 10 anos, aparentemente sem maiores transtornos, atirar numa professora e se suicidar em seguida. Isso é mais um sintoma do esgarçamento social. É de se lamentar, lamentar, lamentar, já que a população parece não mais disposta a se juntar em uníssono para solucionar os problemas que, de uma maneira mais ou menos grave, afeta todos. Abraços. Paz e bem”.

Entre uma corrida e um bate-papo, a turma do volante também compareceu. O Valdeir falou com a autoridade de quem enfrentou o problema cara a cara, em casa: “Minha caçula me deu muito trabalho no ano passado. Graças a Deus criou juízo depois da dura que a gente teve que dar nela. Tava de confusão com um menino do bairro, vagabundo, que não queria saber de trabalhar nem de estudar. O sujeito teve lá em casa com uma conversa atravessada, drogado. Tava levando a minha filha para o mundo do crack o infeliz. Depois desse dia, grudei nela. Passei a buscá-la na escola e fui conversar até com a diretora. Agora tá tudo bem, mas estou de olho e ela sabe disso”.

Quem tem filhos sabe bem das preocupações do Valdeir, bom pai, homem de regras e família. Daqui de Belo Horizonte, mesmo a distância, não dou trégua aos meus garotos, que moram com a mãe em Vila Velha, no Espírito Santo. Terra com índices de violência alarmantes. Não há fórmula pronta para a melhor proteção de nossas crianças e de nossos adolescentes. Existem pistas. E todas nos remetem às boas trilhas da educação, do trabalho, da família e da fé. Não necessariamente nessa ordem.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 28/9/11

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Se tiver saída, fuja deste filme


Sem Saída (Abduction, EUA, 2011), escrito por Shawn Christensen, dirigido por John Singleton, com Taylor Lautner, Lily Colins, Alfred Molina, Michael Nyqvist, Jason Isaacs e Maria Belo é ruim de doer. Inacreditável que ainda se gaste tanto dinheiro, tempo e equipe técnica num filme sem pé nem cabeça assim. Justifica-se apenas para buscar no laço as menininhas fãs de Lautner, famoso pelo Jacob de Crepúsculo. O moço é de emoção zero na trama de hora e meia. É intérprete do tipo que gasta mais tempo nas academias de ginástica do que nas salas de estudo de interpretação. Galãs assim perdem tempo demais querendo ser bonitos do que com conhecimento para a construção de verdades. Difícil ir além do que dão conta.

A começar pelo roteiro, cheio de clichês (russos, Cia etc.), Sem Saída carrega a mão em lutas e perseguições inverossímeis, com interpretações canastríssimas, cheias de caras e bocas. Até nas escolas primárias de teatro, os candidatos mais miúdos ao mundo da arte da interpretação aprendem truques mais críveis do que os dispensados por Lautner ao adolescente adotado por agentes da inteligência americana. O ator franze demais o cenho e demonstra não ter a menor noção da diferença entre gesto e ação física. Ainda que os conflitos do roteiro de Christensen não colaborem e a direção de Singleton seja puramente comercial, Lautner podia ter segurado a onda e buscado composição mais humana. Faz-se herói demais, imbatível demais, posudo demais e cheio de moral. Parece não ter se livrado do poderoso lobo que o alçou ao estrelato. Saia, lobo, deste corpo que não te pertece!

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Amigos até morrer


Babu, Dimas e Marreco eram companheiros inseparáveis. A amizade entre os três mecânicos não era do tipo que se vê na superfície, nos latões de restos. Era coisa de raiz, de sangue, em pacto de infância, quando passaram o canivete pelos polegares e juntaram as mãos debaixo de abacateiro no Bairro Bonfim. “Amigos até a morte! Urrah”, juraram de frente para o famoso cemitério da Região Noroeste de Belo Horizonte. Nascidos no mesmo ano e vizinhos de muro, até se casaram com moças conhecidas na mesma época, pouco depois dos 20.

Sorte no amor não é coisa que se triplica e cada um teve lá o seu dissabor. Sem filhos, Marreco e Dimas até que viviam mais ou menos felizes com suas patroas. Já Babu, no dia em que perdeu emprego na Fiat, chegou mais cedo em casa e pegou a mulher trepadeira com o entregador de pão. Pensou matar e morrer de amor, mas, com a ajuda dos confrades, superou o assombro. Ainda havia muito a fazer na companhia dos amigos-irmãos. Com muito em comum, o trio, chegado num carango, cuidava com dedicação de três Opalões brancos, de 1974.

E isso atravessou o tempo. As chinelas e as bicicletinhas deram lugar aos carrões raros. Toda semana, desde os anos 1960, Babu, Dimas e Marreco se reuniam sob a copa que faz sombra e abacates nos limites do Bonfim. Foram muitas as madrugadas atravessadas no “Clube dos Mosquetas”, como batizaram o ponto. Crescidos, deixaram o bairro e cada um foi parar numa região. Ainda assim, não passavam semana sem se encontrar. A amizade para eles tinha tanto valor que, embora atuassem na mesma profissão – excelentes mecânicos de automóveis –, decidiram jamais trabalhar juntos.

Não queriam qualquer tipo de aborrecimento entre eles. “Melhor assim. Pela amizade, cada um monta a sua oficina. Amigos até a morte! Urrah!”. Levavam tão a sério o pacto que se ajudavam em tudo. Babu, o menos favorecido, até chorou quando recebeu o cheque com a vaquinha de Dimas e Marreco. “Pronto, mosqueta! Agora você já pode colocar a oficina para funcionar sem ter que vender o Opalera”, disseram em abraço camarada: “Amigos até a morte! Urrah!”. A trancos e barrancos, nunca deixaram um mosqueta na mão.

Deu que Babu, em noite de reunião, teve piripaque debaixo do chuveiro, sozinho em casa. Desde a decepção com a mulher, aos 48 anos, Babu não quis mais saber de rabo de saia morando com ele. Dez minutos de atraso foram suficientes para que Dimas e Marreco desconfiassem de algo. Em 40 anos de clube, nunca um mosqueta se atrasou. Partiram às pressas para o endereço do parceiro. Arrombaram a porta do barracão e encontraram o companheiro ausente sob as águas, no banheiro. Silêncio de dor e morte. Bastou troca de olhares para que os confrades decidissem o que fazer.

Secaram o corpo de Babu e o vestiram com seu melhor traje. Seguiram para o velho ponto da infância. Antes, passaram em loja de comes e bebes e fizeram compras para celebração de despedida. No Bonfim, sentados no meio-fio, reviveram os idos de traquinas. Ao som cassete dos Opalões, baixinho, com hits dos anos 1970, Dimas e Marreco revolveram lembranças até o raiar do dia. Sob o abacateiro, o cinquentão morto pareceu sorrir, quando ouviu bradarem os mosquetas: “Amigos até a morte! Urrah!”. Só se deram conta do sol, interrompidos pela rádio-patrulha, que queria explicações.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 26/9/11

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Adolescência roubada


Muito triste a morte da menina Geisiane Carolina da Silva Martins, moradora da Vila Marimbondo, em Contagem. No domingo, a moça, de 17 anos, estava com uma irmã, de 13, na Boite Nitro, na Avenida João César de Oliveira. Deda, como era conhecida entre familiares e amigos, passou mal enquanto dançava na pista e morreu na ambulância, a caminho do hospital. As suspeitas são de que a menina tenha usado drogas. A família, revoltada, clama por justiça e exige que a polícia investigue a casa dançante. Para o pai, a mãe e a avó, Deda era apenas uma criança alegre que gostava de diversão. Os amigos da praça trouxeram o assunto à pauta do dia. Enquanto o corpo da menina era sepultado em Contagem, bravos do volante tentavam entender como uma menina pobre, de família humilde, tinha recursos para comprar cocaína. O Adelson nem precisou pensar muito para dar sua opinião: “São as más companhias. Tem sempre algum usuário ou traficante prontos para viciar alguém”.

No caso dessa moça, a Deda, é lamentável que ela não estivesse na escola. Isso é opinião geral. Ainda tem a história do sonho de ser jogadora de futebol. “Quantas vidas de crianças e adolescentes de nosso Brasil não estão sujeitas a desvios e desfechos trágicos assim?” É a pergunta da Sueli, mulher, quase irmã, de convicções admiráveis no campo social. “Sei que há muitas campanhas contra as drogas. Mas, todos sabem, não são suficientes. A corrupção por grande parte de nossos políticos e a impunidade neste país têm relação direta com o avanço das drogas. Não tenho dúvidas disso. O Brasil é riquíssimo. Tanto que, mesmo com toda essa bandalheira da qual temos notícia, dá conta de crescer. Se os ladrões de dinheiro público tomassem jeito, sobrariam recursos para investimentos efetivos no combate às drogas. O que aconteceu com essa menina da Vila Marimbondo pode acontecer com qualquer um. Não é o primeiro caso e, infelizmente, não será o último”, diz a taxista.

Deda era aluna do 3º ano do terceiro ciclo do ensino fundamental da Escola Municipal Pedro Pacheco. Um grupo reconhecido por bom trabalho social, parceiro da Polícia Militar de Minas Gerais, por meio de Programa Educacional de Resistência à Drogas (Proerd). O Juliano, primo do Adelson, conhecia funcionários da escola por onde passou Geisiane. “O trabalho que eles fazem contra drogas e bullying é muito sério. Se essa moça tivesse continuado lá, a história seria outra”. Desde o ano passado, Deda não frequentava mais as salas de aula. Parece que se envolveu em briga com outros alunos. Estive na escola, no Bairro Santa Cruz. Pelos corredores do colégio, cartazes chamam a atenção de seus 850 alunos para a importância da família. Em 2010, Deda teve apenas sete presenças pontuadas no diário de classe.

Conheci a Nayara Fernanda, estudante de direito, com quem Deda, até dois anos atrás, participava o mundo da bola. A moça recebeu a notícia da morte da prima com muita tristeza. “A gente tinha uma relação muito próxima. Depois que comecei a trabalhar, a gente acabou se distanciando um pouco. Deda é mais uma criança, vítima das áreas de grande exposição a graves problemas sociais”, lamentou. A estudante conta que há pouco mais de duas semanas teve conversa muito séria com Deda sobre escola, trabalho e futuro. Infelizmente, não deu tempo para dar certo.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 21/9/11

terça-feira, 20 de setembro de 2011

A caminho do paraíso

Beatriz, menina ainda, se viu num triângulo amoroso que não podia acabar bem. Prometeu seu coração ao Leonardo, mas seu amor quis o Fabinho, com quem sonhou ter filho. Leo, rapaz mulherengo e cheio de complicações com drogas, mãe e padrasto. Já o Fabinho, trabalhador, foi obrigado a pegar cedo no batente. Pequeninho, aos 8 anos, já ajudava a vender galinhas em bairro da Zona Norte de Belo Horizonte. Os dois amigos, embora crescidos e criados juntos, tinham visões bem diferentes de futuro. O envolvimento da Bia com o Leo começou no dia em que ela comemorou 15 anos, num churrasco oferecido pelo pai. A mãe dela, dona Silvia, até que compareceu, mas não ficou. Não aguentou ver o ex-marido feliz da vida com a nova companheira. A aniversariante não deu mole para a tristeza e, entre gente querida, cedeu às insistentes investidas do Leo, vizinho de portão.

Quem sofreu horrores foi o Fabinho. Reservado, órfão de mãe, morando apenas com o pai, vigilante noturno, guardou a dor em silêncio. Amigo mais próximo do Leo, ainda teve que ouvir conversa para boi dormir por telefone: “Véi, ela tá doidinha... Só não rolou ontem, depois da aula, porque o “bagaça” tá sem trampo e, agora, fica todo dia lá, colado na velha. Tentei levar a mina pro quarto, mas o filho dele tava lá. Tá foda dividir o quarto com o pivete”. E ainda, sabendo que o pai do Fabinho passa as noites fora de casa, foi mais longe: “Aí... arruma um esquema pra eu ir com ela pra sua casa. Quebra essa!”. Fabinho não arrumou esquema, mas não amarrou o quarto para o Leo. E assim, durante quase um ano, foi na cama dele, que a Bia teve o quadril surrado pelo amigo.

Com o sofrimento da situação o amor só aumentou. Vai entender. Fabinho vivia de saudades da mãe, levada por câncer dos mais violentos. Bia, sempre perfumada, deu novo cheiro de mulher à casa. Já que o “seu” Miguel, doído, depois que perdeu a esposa jamais foi visto acompanhado. Desde que Leo e Bia passaram a “ficar”, Fabinho até engatou uns rolos para tentar tapear os sentimentos. Mas, no fundo da alma, só havia lugar para a colega de sala, comprometida com o amigo ordinário e pegador. Além da Bia, havia lista de dezena de ficantes. Quando tentou levar outras moças para a casa do Fabinho: ouviu, na lata: “Não! Só a Bia!”.

Com a pilantragem do Leo, a mentirada em cima da Bia foi até longe demais. No dia em que completaram dois anos de sexo, a menina resolveu dar basta ao desaforo. Soube da boca de conhecida, arrependida, que se viu obrigada a abortar feto do sujeito. “Seu namorado é um monstro! Te conto essa pra não acontecer o mesmo com você”, disse a vizinha, na manhã de prantos. Horas depois, ouviu a confirmação da boca do próprio infeliz: “Foi bobeira dela. Parou de tomar remédio. Você sabe que não gosto de camisinha”. Fabinho estava na sala, tentando estudar, quando ouviu o primeiro palavrão dito por Bia, aos berros. A moça, fora de si, também plantou a mão na cara do canalha. Pausa na amizade do trio.

Mês depois, Bia e Fabinho se encontraram na padaria. “Um sorvete? Topa?”, ela convidou. “Por que não!?”, respondeu o moço, sorrindo, feliz com a oportunidade. Do passeio ao romance, um orgasmo. Na sala. Ela não quis o quarto. “Foi a melhor vez de toda a minha vida”, suspirou no sofá. Deixou a casa tão apaixonada que nem se importou quando soube que, daquele encontro, havia ficado grávida. Fabinho juntou economias e, com o apoio do pai, reformou a casa para receber Bia: “Casa comigo?” No bairro, corria em boca miúda: “Nasceram um para o outro”. Véspera do compromisso em cartório, no portão de Bia, armado, Leo, o ex, aparece para “lavar a honra”. Dois tiros na barriga e um na cabeça da noiva. “Não com meu amigo, vagabunda!” Fabinho, em frangalhos, jurou de morte o assassino, de quem nunca mais se teve notícia.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 19/9/11

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Do buraco só se sai para cima


Não é novidade entre os leitores de Bandeira Dois que, neste quintal, fala-se muito de filmes. Enquanto os botecos vivem lotados, aqui chapamos o melão nos cinemas. Cada um na sua praia. Sem preconceitos ou discriminações. Larry Crowne - o amor está de volta, com Tom Hanks e Julia Roberts, é a boa fita da semana. Fred, Gabriela, Violeta e eu fomos lá, no domingo, prestigiar a comédia romântica americana de conteúdo, dirigida pelo próprio Tom Hanks. Nem preciso dizer que sou fã desse ator-diretor há tempos. Ele chamou a minha atenção desde o filme Splash - uma sereia em minha vida, de 1984, no qual divide a cena com a bela Daryl Hannah. De lá para cá, Tom Hanks me emocionou em vários trabalhos. Para citar apenas cinco, quem não se lembra do show do moço em Filadélfia (1993), Forrest Gump, o contador de histórias (1994), Náufrago (2000), À espera de um milagre (1999) e O terminal (2004)? Todos inesquecíveis.

Na minha humilde opinião de fã e cinéfilo amador, Larry Crowne, em cartaz na cidade, é obra bem menor do que as cinco citadas acima. Não tem a força poética ou a genialidade de seus roteiros e direções. Ainda assim, Larry Crowne, sem dúvida, merece nossa audiência. Trata-se de um recorte muito bem alinhavado dos tempos áridos da economia dos EUA. O filme conta a história de um sujeito muito trabalhador e gente boa que perde o emprego por não ter diploma de curso superior. E isso, justamente no momento em que esperava receber mais um título de “funcionário do mês”. Arrasado com a demissão, Larry – personagem de Hanks – batalha por nova colocação. Sem sucesso, decide voltar a estudar e sua vida ganha novo rumo na faculdade. Faz novas amizades na escola e se apaixona pela professora de oratória, Mercedes Tainot, vivida por Julia Roberts.

Até aí, nada de mais. Ingredientes bem comuns ao cinemão americano. O diferencial está na quantidade de coadjuvantes bem construídos, como vizinhos e colegas de classe. Há um professor japa, Dr. Matsutani (George Takei), fazendo bom humor até com o que parece não ter graça. Mas entre os papéis secundários, o destaque fica por conta de Gugu Mbatha-Raw. Uma atriz inglesa de 28 anos, descoladíssima, que vive na trama uma estudante, melhor amiga de Larry. São muitos os bons momentos do filme, alcançados pelos parceiros de Tom Hanks e Julia Roberts. De melhor, o pano de fundo: a força para a superação das dificuldades que se descortinam ao longo da nossa vida. Sejam no campo pessoal, sejam no campo profissional. Os americanos sabem falar disso. A mensagem está lá: não importa o seu drama, o certo é que com trabalho você pode dar a volta por cima.

Larry Crowne é uma espécie de recado de fé e esperança ao povo americano, que, nos últimos anos, tem visto ruir o poder econômico da maior potência do mundo. Do lado de cá, ainda que em mínima escala, entendo bem essa mensagem. Já até escrevi em nosso Aqui, texto intitulado “A arte de sair do buraco”, alinhavado numa fase difícil, quando, mais uma vez, aos trinta e tantos anos de vida, passava por maus bocados. Em português mais claro, bem popular, é aquela história de que “há males que vêm para o bem”. Cruzar os braços, chorar e viver de lamentar o passado é coisa para os fracos. Às vezes, como no filme do Tom Hanks, é preciso perder o chão para aprender a sair do lugar.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 14/9/11

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O ladrão Antanael e a mula Rouge

Na falta de juízo e noção do feito, o pedreiro Antanael, de 21 anos, catou a mula Rouge em fazendinha de Montes Claros para fugir de serviço sujo na casa do doutor Lautrec, na Região Norte de Minas. O sujeito, ladrão de ocasião, nem é de todo mal. Falta-lhe apenas o tempero da inteligência e do bom senso, que costuma fazer bem ao bom cidadão. Também estava carente de prata, já que, à toa, Antanael não descolava troco honesto há mais de mês. Levado pela famigerada má influência, não deu ouvidos aos conselhos diários da boa mãe, com quem morava: “Olhe com quem tu anda, meu filho. Olhe bem com quem tu anda!”. Dona Amaralina, linha-dura e fervorosa, sabia o que estava dizendo. Tanto que bastou o filho se meter com o bando do Baita para os bons modos ganharem o rumo do xilindró.

O encontro com os maus elementos, claro, não foi na escola – lugar de toda a gente de futuro. Foi na rua, tarde da noite, nos becos da falta do que fazer da inutilidade humana. O Baita, tipo agigantado, na companhia do Meiometro, chegou no pedreiro, maroto, na maciota:

– Aê, fi! Tô te fragando… tá osso, hein!?
– Mais ou menos.
– Tem um servicinho mole aí… quer?
– Que tipo?
– Do tipo sem violência. Pulo do gato. Fraga?

Antanael não era lá tão inocente. Entendeu logo a proposta e topou ficar encarregado em vigiar a casa do Dr. Lautrec, enquanto Baita e Meiometro faziam a “limpeza”. A bandidagem já sabia que o doutor estava em viagem com a família. Depois, era só dividir o lucro. “Fácil”, pensou o pedreiro. Foram na caminhonetinha velha do Meiometro. E, conforme combinaram, o plano seguiu. O gigante e o anão, lá dentro, limpando geral, e, no entorno do sítio, o Antanael de prontidão pelo sucesso da empreitada. A furreca já estava abarrotada de eletrônicos, talheres de prata, jóias e objetos de decoração, quando as luzes de propriedade vizinha, se acenderam. Antanael, esperto, avisou aos comparsas, que saíram da casa às pressas. Debaixo dos braços, o gigante tinha uma geladeira e uma TV de 42 polegadas.

Na caminhonetinha, de dois lugares, não cabia mais um alfinete. Meiometro fez deu a partida aos berros de anão: “Vambora! Vambora, Baita!”. O gigante deixou a geladeira na varanda, colocou a TV na cabeça do Antanael e ordenou: “Dá no pé, fi! Racha fora! Vai, vai, vai!!!” Motorizados, só o grandão e o nanico. O pobre do Antanael, com a TV na cabeça, teve que fugir nas patas. Numa fazendinha vizinha, a mula Rouge admirava o raiar do dia e mascava capim fresco. Quando se deu conta já estava montada pelo Antanael com a televisão na cabeça. “Vamo, fia! Pelo amor de Deus!! Corre!!!” O animal bem que tentou dar uma força ao ladrão em fuga, mas foi só ganhar a estradinha, quilômetro dali, para perder velocidade e deixar o Antanael em maus lençóis. A polícia chegou sem pressa para o flagrante. Na delegacia, Dona Amaralina foi visitar o filho pela manhã. Decepcionadíssima, esbravejou: “Animal, animal!”

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 12/9/11

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Leitores em defesa da educação


“Que tal um ‘Kit-educação?”, coluna publicada na semana passada, movimentou a caixa-postal de nossa Bandeira Dois. A Luciene, de Varginha, no Sul de Minas, comentou: “Não tenho dúvidas de que o maior problema de nosso país é a falta de educação, que reflete nas urnas a cada eleição, Josiel. E como a maioria de nossos políticos só está no poder por causa da ignorância do povo, infelizmente, vai ser difícil reverter essa situação”. Falou tudo, Luciene. Assino embaixo de todas as suas letras. O leitor Fernando, morador do Bairro Palmeiras, na Região Oeste de Belo Horizonte, também escreveu para o Aqui: “Josiel, sempre passo no ‘nosso quintal’, e só pra variar, a coluna de hoje, bate com o que penso, e pratico na vida. Também acho que está faltando educação e outras coisas mais ao ser humano de hoje, como solidariedade, bom senso, humildade...


Quando ‘sofro’ dentro de um ônibus, vejo a falta de cavalheirismo dos jovens e até dos adultos, que atropelam as pessoas pra entrarem na frente; os namorados que se assentam e deixam a namorada em pé... Sentam-se no canto e deixam a moça na beirada... Minha mulher acha que estou ultrapassado e que, hoje, as coisas são diferentes. Mas, aprendi que educação cabe em todo lugar! E as palavrinhas mágicas?

Sumiram!

Quando voce conta histórias do ‘Velho Botelho’ me vem na cabeça o meu ‘Velho Juvercino’: super rigoroso, com pouco estudo, mas colocou os sete filhos no caminho do bem. Sempre disse que ‘o que é seu, é seu, e o que é dos outros, é dos outros’!

Quando eu tinha uns sete anos, num sábado a tarde, meu pai, cuidando da construção de nossa casa, me mandou buscar um pão de meio quilo (lembra-se?) e um litro de leite. Deu-me uma nota de dez cruzeiros. Ao receber o troco do comerciante, percebi que ele me devolveu junto a nota de dez que eu havia dado a ele. Peguei o troco, embolei-o na mão e voltei correndo pra casa. Ao chegar, devolvi a meu pai o troco e disse, satisfeito, achando que fiz vantagem e o certo, que o moço me deu a nota de dez de volta. Na sua simplicidade, me mandou voltar na mercearia, devolver a nota ao comerciante e dizer que eu não havia percebido o erro, mas que ele viu.

E me disse ainda, que, no domingo, iria lá tomar uma cerveja e confirmaria com o moço se eu havia devolvido a nota! Nem precisava desse aviso final, né!? Claro que voltei, e o moço ficou tão satisfeito...

Assim também ensinei a meus filhos, e eles também são assim, graças a Deus! Josiel, aproveita e faz uma campanha pelo bom senso no uso dos faróis a noite, porque o que tem de gente abusando do farol alto, e o que tem de carro e ônibus com faróis desregulados: um alto, outro baixo, não tá no gibi! Desculpe o tamanho da mensagem, e obrigado pelo espaço!” Está dado o recado, Fernando! Valeu, Luciene! Neste quintal de papel, sintam-se em casa fértil para as sementes das boas ideias. É assim em nosso Aqui, terreno de compromisso e de responsabilidade com o leitor.


Bandeira Dois - Josiel Botelho - 8/9/11

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O chupa-cabra é filho do capeta


O homem, com raríssimas excessões, amigo leitor, é raça muito da ordinária. Há quem diga até que não há jeito que se dê nesse animal pensante. Etelvina, cidadã brasileira, cinquentona, mãe de família, diarista, boa pagadora de taxas, impostos e tudo o mais, está profundamente decepcionada com a espécie bípede que pensa, anda e fala. “Ô, racinha, senhor! Ô peste!” Não é para menos, depois de ficar injuriada com a absolvição de uma tal Roriz pela Câmara dos Deputados em Brasília, flagrada aceitando propina em filme amador que rodou meio mundo, foi a vez de “irmão” vizinho tentar rapar a poupança suada da Etelvina na boca de caixa eletrônico da periferia. “É o Chupa-cabra, minha senhora”, disse o policial, solidário com a decepção da cidadã. Cara a cara com o marginal, velho conhecido do bairro, Etelvina pediu para ficar a sós com o sujeito. “Cinco minutos”, liberou o delegado. A dona, religiosa, tristíssima com a situação, quis ela mesma interrogar o safardana:

– Chupa-cabra? Que coisa feia! Por que, meu filho? Vi você crescer lá na rua, na igreja. Sua mãe é uma pessoa tão boa. Seu pai tinha tanto orgulho de você. Seu nome é tão bonito. Agora essa: Chupa-cabra.

– Conta lá em casa nem na igreja não, dona Etelvina. Pelo amor de Deus!

– Agora todo mundo já sabe, moço. A imprensa tá aí na delegacia. Só falam no Chupa-cabra. Logo você, que me parecia ter tanto juízo. Lá em Brasília, tudo bem, bandidagem não é novidade mesmo… agora, um irmão da minha comunidade. É muito triste.

– A gente não usa arma não. A gente só puxa o barbante, aí vem o envelope. Nunca peguei num revólver. Nunca, dona Etelvina. E quem paga a conta é o banco.

– Mas não tá certo roubar, meu filho. Você sabe disso! Pensa bem!? Roubar? Ficou maluco! A gente tem que trabalhar, dar duro com honestidade, para ficar em paz com Deus e com a nossa consciência. Me dê sua mão, Jorielsvaldomiro.

O policial ganhou a sala e encerrou o assunto: “Acabou o tempo, senhora!” Segurando as mãos algemadas do pilantra, a evangélica esticou o minuto e fez oração a Deus pela alma de todos os homens de calças, gravatas e saias, embrenhados no mundo do crime. Fez o policial dar a mão e orar também para dar mais força ao culto improvisado, a três. Respirou profundamente duas vezes, deu as costas para o “irmão” e, antes de cruzar a porta, voltou-se em frase assombrosa: “Chupa-cabra! Isso é coisa do capeta!”.


Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 5/9/11