Por Rodrigo Constantino*
Na peça Um Inimigo do Povo, escrita pelo norueguês Henrik Ibsen no século XIX, vemos um homem com a coragem moral de manter sua integridade e convicção apesar da enorme pressão popular contra sua pessoa. Apesar dos exageros normais da dramaturgia, trata-se de um caso interessante de um pensador livre, um indivíduo apenas, combatendo a ignorância da maioria, e não cedendo nem mesmo sob o risco de completo isolamento e até falência pessoal.
O personagem central da peça, Dr. Stockmann, após descobrir que os famosos banhos da cidade estavam contaminados, esperava obter grande respeito e admiração por parte dos demais habitantes. Afinal, sua descoberta mostrava os riscos para a saúde de todos. Mas Stockmann ignorara os fatores políticos e econômicos, já que os banhos eram a principal fonte de renda da cidade. Aos poucos, mesmo seus supostos aliados, que declaravam apoio pela frente, o atacaram pelas costas, se voltando contra ele. Toda a cidade passou a repudiar o autor da infeliz descoberta, preferindo ignorar os fatos, como se assim estes pudessem, num passe de mágica, desaparecer. Dr. Stockmann agiu diferente, e mesmo que sozinho, sem apoio, escolheu a verdade, e enfrentou a maioria. Acabou tachado como um inimigo do povo, na tentativa de ajudá-lo.
Durante o tenso desenrolar da trama, Dr. Stockmann sofre inclusive a tentação de suborno, mas nada deixa ficar entre os fatos e sua convicção moral. Após refletir sobre a reação da maioria, Stockmann diz ter feito uma descoberta ainda mais importante que a poluição dos banhos. Seria a poluição moral da comunidade civil, calcada na mentira, na hipocrisia. Ele passa a considerar o maior inimigo da verdade como sendo a maioria compacta, que luta contra a razão individual. A covardia, a busca por interesses, o medo, tudo isso impede a verdadeira independência de pensamento, de busca da verdade. E com isso, Stockmann faz sua mais nova descoberta: o homem mais forte do mundo é aquele que se sustenta sozinho. Algo que nos remete ao recado de Schopenhauer, ao afirmar que “quem tem de produzir o bom e o autêntico e evitar o ruim tem de desafiar o juízo das massas e de seus porta-vozes e, portanto, desprezá-los”.
Parece claro que a inocência de Stockmann beira o absurdo, e que sua convicção confunde-se com fanatismo até. Nenhum jogo de cintura havia nele, nenhuma capacidade de flexibilidade. Stockmann simplesmente não jogaria o jogo político do mundo, não iria contemporizar. Cabe aqui nos questionarmos quem realmente consegue viver apenas afirmando a total verdade sobre tudo, sem um mínimo de hipocrisia, ou de “meias verdades”. Ou quem poderia ignorar por completo quaisquer interesses, ou opinião alheia. De fato, Aristóteles já havia dito que o homem é um “animal cívico”, que só se completa como homem na polis. Ele nos lembra que “aquele que não precisa dos outros homens, ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é um deus, ou um bruto”. Stockmann talvez tivesse obtido melhores resultados com meios menos puros, radicais. Na vida real, é muito raro encontrar alguém com tanta convicção moral e independência, a ponto de ignorar por completo a pressão da “massa ignorante”. Somos animais sociais, políticos.
Mas isso não anula, ao meu ver, a beleza e importância da mensagem de Ibsen. Confrontar a falsidade geral, fugir da necessidade de pertencer a um “rebanho bovino”, tendo que aderir a um pensamento monolítico, faz-se crucial para qualquer indivíduo que ama a liberdade e a verdade. Não seguir uma ditadura do “politicamente correto”, não depender da aprovação alheia sempre, é um caminho necessário para pensadores livres. Colocar a verdade dos fatos acima dos interesses imediatos é fundamental para quem defende a honestidade. Mesmo que tal postura reduza o grau de “sociabilidade” do indivíduo algumas vezes. Mesmo que tais atitudes possam colocar um indivíduo íntegro como suposto inimigo do povo, que tantas vezes prefere ignorar a verdade a ter que enfrentá-la com coragem. No fundo, a Humanidade agradece a independência de pensamento desses raros e corajosos indivíduos. Pode ser um tanto idealista a imagem de um indivíduo seguro de si, convicto do seu dever moral, enfrentar tudo e todos para defender nada mais que a verdade. Mas é um idealismo que vale admirar, ao menos para reforçar o alerta contra a ditadura do consenso. Afinal, como nos dizia o dramaturgo brasileiro, Nelson Rodrigues, “a unanimidade é burra”.
*Rodrigo Constantino é autor de cinco livros: "Prisioneiros da Liberdade", "Estrela Cadente: As Contradições e Trapalhadas do PT"", "Egoísmo Racional: O Individualismo de Ayn Rand" ,"Uma Luz na Escuridão" e "Economia do Indivíduo: O Legado da Escola Austríaca"
Nenhum comentário:
Postar um comentário