Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

sábado, 27 de junho de 2009

Uma rua chamada solidão (10)

"Carinha de tristeza, gemidos surdos, parecia ouvir o violino da tragédia. No rádio, a notícia da morte de Michael Jackson abalou o mundo"




Na quitinete do JK, a cantora Dorinha preparava o repertório para show em bar dançante. Raul, o companheiro schnauzer, desde que João saiu, não arredou as patas da porta. Carinha de tristeza, gemidos surdos, parecia ouvir o violino da tragédia. No rádio, a notícia da morte de Michael Jackson abalou o mundo. A cantora da noite, fã do astro, chorou e fez questão de incluir sucessos do Rei do Pop em sua lista de trabalho.

Enquanto Claudete e Bigode aguardavam para depor, o delegado Bueiros quis ele mesmo interrogar Maria, a jovem operária da Rua Guaicurus.

– O Carvalini cheira a fraldas, menina. Comigo é diferente. Vamos encurtar o assunto porque tenho muito a fazer. Há uma colega sua morta, esfaqueada. Quero nomes.

– Não tenho nome algum. Aluguei o quarto, paguei adiantado, o Bigode pode confirmar.

Leomar, o "cachorro", assistente de investigação, entrou na sala e interrompeu o delegado: "Senhor, veja isso." Nas mãos, um chip de celular encontrado na bolsa preta, junto às joias e ao dinheiro. Posto no telefone do policial, revelou a agenda de telefones de Sininha, a puta foragida, ex-ocupante do quarto de Maria. Havia também mensagem suspeita, assinada por um tal Tuca. "O nome que o doutor queria", disse Carvalini.

João, ainda no táxi, ganhou a simpatia do motorista.

– Você não tem pinta de polícia. Parece sujeito de bem. É só me dizer que tipo de garota você está procurando.

– O nome dela é Maria.

– Qual o quê. Elas têm muitos nomes. Dê uma olhadinha nisso e veja se encontra a sua.

O taxista entregou ao evangélico catálogo com fotografias de garotas de programa das mais variadas. "Tenho aí a mulher na medida de qualquer bolso, companheiro", ofertou. João passou página por página do livro de alegria barata. Nenhuma moça lhe lembrou Maria. "Pelo que vejo o rapaz é exigente. Acho que conheço quem tem o que você procura: Madame Lalá. Não há garota de serviço nesta cidade que ela não conheça", dizendo isso, o chofer deu partida no carro de aluguel e seguiu rumo à Avenida Amazonas.

Liberados, Maria, Claudete e Bigode deixaram a delegacia. Carvalini, gentil, passou o número de seu telefone para Maria. O administrador e as duas putas pegaram carona no camburão e voltaram ao batente, no hotel vagabundo, na rua da solidão.

(Continua no próximo sábado)


Jefferson da Fonseca Coutinho - Vida Bandida - 27 de junho de 2009

sábado, 20 de junho de 2009

Uma rua chamada solidão (9)

"Livra-me das tragédias, tome conta dos meus passos e ilumine o meu caminho. Proteção aos que amo e aos que amam os que amo..."




No IML, o cadáver da assassinada, perfurado a faca, aguardava identificação. Documentos falsos, fulana não deixou amigos ou parentes para reclamar o corpo. Apenas uma pista: Sininha, puta foragida, ex-ocupante do quarto de Maria na Rua Guaicurus. O detetive Carvalini, na delegacia, teve particular com o chefe de Polícia. Disse ao delegado que estava certo da inocência de Maria. Bueiros, num péssimo dia, esbravejou:


– Toda puta tem culpa no cartório, Carvalini!
– O senhor sabe que isso não é bem assim.
– Não é assim os cacarecos! Ela tremeu? Tremeu é porque está escondendo alguma coisa. Me traz a ficha dela.
– Ela não tem ficha, doutor.
– Como não tem ficha? Você não fichou a moça?
– O senhor me desculpe, mas ela apenas alugou o quarto.
– Então, por que você a trouxe aqui?
– Foi o que me pareceu certo no momento.
– Vocês, garotos, deveriam trabalhar na BHTrans tocando lambreta.


Enquanto isso, vigiados pelo cachorrão, Maria, Claudete e Bigode tomavam chá de cadeira.


João, de mãos para o céu, orava em templo suntuoso na Avenida Olegário Maciel. "Livra-me das tragédias, tome conta dos meus passos e ilumine o meu caminho. Proteção aos que amo e aos que amam os que amo, ó pai amado...", pediu. Casa lotada, não deu muita conversa aos irmãos e missionários do lugar, deixou nota de R$ 50, apenas. Entrou em táxi perto de shopping luxuoso, respirou fundo e decidiu se abrir com o motorista:


– Amigo, o senhor conhece bem a cidade?
– Nascido, crescido e vivido nela. Tô na praça desde o fusca amarelo, meu filho. Pra onde você quer ir?
– Não sei bem. É que... estou procurando uma amiga. Ela é... prostituta.
– Pera lá. Foi o Dentinho quem mandou você me procurar?
– Dentinho? Não conheço nenhum Dentinho, meu senhor.
– Como é que você me achou?
– Como assim? O seu carro estava parado, eu entrei. Só isso.
– Pode falar quem, garoto. Eu garanto o sigilo. Comigo é papo reto.


Na quitinete do JK, a cantora Dorinha preparava o novo repertório para show em bar dançante. Raul, o companheiro schnauzer, desde que João saiu, não arredou as patas da porta. Carinha de tristeza, gemidos surdos, parecia ouvir o violino da tragédia.



(Continua no próximo sábado)



Jefferson da Fonseca Coutinho - Vida Bandida - 20 de junho de 2009

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Chovia...

Chovia, mas os ladrões não usavam guarda-chuvas
Texto e direção: Jefferson da Fonseca Coutinho
Belo Horizonte – Minas Gerais – Brasil – 2005

Elenco: Ana Cândida Cardoso, André Prata, Arthur Pires, Bia Morais, Bruno Peixoto, Carol Chaves, Dan Costa, Ferdinando Ribeiro, Fernando Borges, Jenniffer Lamounier, Juliana Jardim, Jefferson da Fonseca Coutinho, Lilian Campomizzi, Lucas Costa, Paula Sá, Wander Possas, Roberta Santos, Saulo Senra e Maestro Manoel.



Coreografias: Cláudia Assunção
Figurinos: Cássia Cyrino

sábado, 13 de junho de 2009

Uma rua chamada solidão (8)

"Não se soube o porquê, durão em tudo o que é caso, o policial do Departamento de Crimes contra a Vida foi delicado naquela manhã. Parecia tocado pelo drama percebido na alma da jovem puta da Zona da Mata"




Na Guaicurus, no estabelecimento barato, enquanto Claudete, em lingerie comedida, porta aberta, fazia palavra cruzada à espera da freguesia, o agente Carvalini, acompanhado por seu assistente Leomar, interrogava Maria: "No prédio ao lado, disseram que a senhora conhecia a fulana assassinada. Amigas ou colegas na vida?" Segura, a mulher contou que havia chegado recentemente do Rio de Janeiro e que conhecia apenas Claudete, amiga de tempos passados. Não demorou para que o Bigode, administrador do hotel, entrasse no assunto: "A moça chegou ontem de manhã, saiu com a carioca e voltou não tem meia hora, detetive. Posso garantir que, aqui, nem para o café ela fez". Carvalini tinha a informação de que naquele quarto que dava para a rua trabalhava a melhor amiga da morta. "Com licença", disse o agente ao entrar na locação.

Claudete pressentiu a situação de Maria e decidiu ver como ela estava. "Mas o que é isso, Bigode?", quis saber ao cruzar o beco e ver os policiais vasculhando o quarto. "Carvalini, olha isso!", disse Leomar, também conhecido como "cachorro", pelo faro apurado para provas em suas assistências. Maria não soube explicar o que era aquela bolsa preta de náilon, com joias e R$ 20 mil em dinheiro, malocada em fundo falso da cama de alvenaria. "Isso não é dela, cara. Tenho certeza", defendeu Claudete, espantadíssima. "Não é minha. Nunca vi essa bolsa. Pelo amor de Deus, moço", mais uma vez, chorou Maria. "A senhora vai ter que me acompanhar", intimou Carvalini. "Sem algemas, cachorrão". Não se soube o porquê, durão em tudo o que é caso, o policial do Departamento de Crimes contra a Vida foi delicado naquela manhã. Parecia tocado pelo drama percebido na alma da jovem puta da Zona da Mata. Claudete e Bigode também foram no camburão para a delegacia.

Na quitinete do Edifício JK, João resistia aos encantos de Dorinha, cantora da noite. Banho tomado, terno realinhado no corpo, o jovem evangélico vindo do Espírito Santo, pronto para esquadrinhar a cidade, não sabia exatamente por onde começar a procurar Maria. A anfitriã, enrolada em toalha cor-de-rosa, voltou a oferecer auxílio: "Tem certeza de que não quer ajuda? Conheço muita gente. Belo Horizonte é um ovo, vai ver algum amigo meu conhece sua Maria". João não teve coragem de revelar detalhes de sua paixão. Não mentiu. Apenas desconversou. Gentil, Dorinha entendeu. "Faz assim: hoje, não vou sair porque preciso terminar o repertório para o show de amanhã. Você pode levar a chave. Faz uma cópia e fica com ela. Você vem para jantar?" João disse que sim. Beijou-a na testa, carinhou as barbas do schnauzer e deixou o arranha-céu de vidro. Antes de seguir rumo a puteiro qualquer, passou em igreja para falar com Deus.

No IML, o cadáver da assassinada, perfurado à faca, aguardava identificação. Documentos falsos, fulana não deixou amigos ou parentes para reclamar o corpo. Apenas uma pista: Sininha, puta foragida, ex-ocupante do quarto de Maria.

(Continua no próximo sábado)


Jefferson da Fonseca Coutinho - Vida Bandida - 13 de junho de 2009

sábado, 6 de junho de 2009

Uma rua chamada solidão (7)

"A maioria das mulheres não compareceu naquela manhã. Claudete, carioca descolada, não se intimidou e, em lingerie comedida, palavra cruzada na mão, abriu o quarto e se deitou à espera da freguesia".




Às 8h10, no JK, Valdirene abriu a quitinete para João e Dorinha. Raul latiu e fez festa. As duas moças se abraçaram sinceras. A vendedora de roupas jogou charme para o jovem evangélico alinhado, de terno feito no corpo: “O belo é de Ponte Nova?”, perguntou. “É do Espírito Santo, vai ficar aqui em casa e já tem dona, Val. Veio buscar a namorada que está perdida em BH”, disse Dorinha. João sorriu tímido, meneando a cabeça. Foi até o janelão de vidro e ficou encantado com a vista do lugar. “Bonito aqui”, comentou. O pequeno apartamento, decorado com bom gosto, havia sido reformado recentemente. Papel de parede, violão, tapete vermelho, mesinha de madeira com quatro cadeiras, escrivaninha, computador e abajur lilás entre os sofás de couro refletiam o capricho da cantora da noite. “Ai, meu Deus! Tô atrasada! Muito prazer, fofo! Caso não encontre a namoradinha, tô na fila, hein!?” (risos), provocou Valdirene. “Vai, piriguete!”, rebateu Dorinha.


Emudecidas com a notícia da morte da puta esfaqueada, Maria e Claudete ganharam seus quartos no hotel dos homens sós. Nos corredores escuros, pouco movimento em função das viaturas estacionadas na rua. Apenas meia dúzia de portas abertas. A maioria das mulheres não compareceu naquela manhã. Claudete, carioca descolada, não se intimidou e, em lingerie comedida, palavra cruzada na mão, abriu o quarto e se deitou à espera da freguesia. Já Maria não teve pressa para se maquiar diante do espelho. Fez andar lento o lápis de olho e o batom vermelho por linhas de expressão. Cobriu as olheiras com corretivo vagabundo e vestiu roupinha sexy, guardada para a estreia em puteiro de Minas. “Polícia!”, anunciou o detetive do outro lado da fechadura. Nada a temer, Maria abriu a porta sem demora. “Preciso falar com a senhora”, disse o investigador.


João e Dorinha se conheciam melhor no aconchego do JK. “Sua voz é linda”, disse o capixaba ao ouvir a artista cantar e tocar Eu quero enfeitar você, de Vanessa da Mata. “Que bom que gostou. Tô mudando o repertório. Ainda não havia cantado essa música pra ninguém (pausa). Ah, que cabeça a minha… Você louco pra tomar banho e eu aqui alugando seu ouvido, né!? Vou pegar a toalha pra você”. João quis retribuir a gentileza: “Sinceramente, nem sei como agradecer a sua atenção. Não quero dar trabalho. Eu podia ter ficado num hotel, mas você me pareceu já tão conhecida que resolvi aceitar o convite”. “Hotel? Cê tá doido!? Você é meu hóspede. Se há uma coisa que eu sei fazer bem é receber as pessoas na minha casa. Tá no sangue. Na minha família todo mundo é assim. E, além do mais, o Raul gostou de você (risos). Olha só a carinha dele… Pois fique aqui o tempo que precisar. Deus promove os encontros… o resto é com a gente. Você vai reencontrar Maria. Vou pegar a toalha”.


Na Guaicurus, interrogatório: “No prédio ao lado, disseram que a senhora conhecia a fulana assassinada. Amigas ou colegas na vida?”


(Continua no próximo sábado)


Jefferson da Fonseca Coutinho - Vida Bandida - 6 de junho de 2009