Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

terça-feira, 30 de abril de 2013

Palavrão é o nome feio

Para muitos é estranho, mas foi assim que dona Iracema registrou o menino sem pai, na semana em que ele nasceu: Asservildison. Podia ser pior. Bem pior, é verdade. Para facilitar, uma vizinha, na Vila Santa Helena, abreviou: “Sessé”. E para a alegria do moleque agigantado, o Asservildison, filho de dona Iracema, virou Sessé.

Só que o Sessé cresceu, engordou e virou Asservildison de novo. O chefe na fábrica de macarrão, um tal Gisleygradon, homem gordo e de voz de trovão, caprichava na hora de chamar pelo enorme operário. Enchia a boca de articulação: ASSERVILDISON, meu filho, vem ver o que você vez, Asservildison!”, berrava todos os dias pelo pavilhão industrial. Aquilo, de tão comum, nem incomodava mais o filho de dona Iracema.

Entretanto, depois que a costureira Iracema bateu as botas de morte morrida, Asservildison perdeu a paciência e passou a não tolerar mais os exageros com seu nome de batismo. Na volta da licença do luto, logo na primeira graça do chefe Gisley sei-lá-o-que, Asservildison plantou-lhe a mão na orelha. Demitido por justa causa, o técnico em termostato acabou vendendo coco em pracinha da Região da Pampulha. Sozinho, sem amigos ou nada que pudesse dar cor à vida, Asservildison emagreceu quatro arrobas.

Com sessenta quilos a menos, o filho da finada Iracema até que ficou mais bem apessoado e, aos 27 anos, arranjou a primeira namorada. Uma mulher de boas carnes, morena, salgadeira de mão cheia, de olhos amendoados e nome igualmente curioso: Laurilofitélia (uma combinação em homenagem aos quatro avós: Laurípedes, Murilo, Filermina e Aracélia. Criatividade do pai, Sergismundo).

Felizes, Asservildison e Laurilofitélia viveram amor de dar gosto. Daquele de dengo em apelidos. “Tutuco” para cá, “Tutuca” para lá, em 2011, os dois decidiram juntar os trapos e as escovas de dentes no barraco deixado pela dona Iracema, no Bairro Rio Branco. A banca de coco prosperou e a família ganhou novas alegrias com os gêmeos que acabam de chegar: João e Maria.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Quando a fé vira doença



Sou um homem de fé. Creio num Deus generoso, bem maior que o céu e a terra. Está em mim, está no amigo leitor, está nas estrelas do céu e do mar… está em todos os lugares. Não há movimento algum, numa folha sequer, que não seja provocado pelo sopro dessa força extraordinária e criadora, creio. Aprendi cedo, com o velho Botelho, a respeitar todas as religiões. Não muda em nada meu amor pelo próximo se ele é desse ou daquele grupo religioso. Das lições e bênçãos que trago de Deus, a mais importante, sem dúvida, é que sua presença é sinônimo de amor.

Sendo assim, Bandeira Dois de hoje é o desabafo de um amigo. Depois de ouvir a história do Euclides, amigo e passageiro das antigas, aborrecidíssimo por ter que dispensar a senhora que trabalhava na casa dele. O Euclides, professor de história, é homem estudioso e bom pai de família. Casado, apaixonado pela mulher e pelos três filhos já crescidos. Filho único, meu amigo levou a mãe para morar com ele em Lagoa Santa, na Região Metropolitana. Casa construída com suor e muita dificuldade. Para agradar a mãe, fez uma gruta com uma imagem de Nossa Senhora.

O lugar é um encanto. Um cantinho iluminado por lâmpada azul e entre flores para prece e meditação. A mãe do Euclides é católica e mulher de muita fé em Nossa Senhora. Tem razões de sobra para agradecer e enfeitar com flores de todos os tipos o altar que lá está. Respeito, admiro e, verdadeiramente, acredito na força dos símbolos daquele lugar sagrado. A imagem de Nossa senhora, em gesso, é linda e sua expressão me acalma a alma. Cheguei a comentar isso com o Euclides na festa junina que ele promoveu no ano passado.

Acontece que, no início do ano, uma senhora evangélica foi trabalhar na casa do Euclides. Daqueles grupos radicais, capazes de chutar os santos, a mulher de meia idade passou a “ver o diabo” naquele canto. Vítima de lavagem cerebral na congregação a qual pertence, certamente, a mulher não só abominava a imagem de Nossa senhora na gruta, como também passou a demonizar todos os quadros e símbolos católicos da casa. Não contente, ainda passou a falar pelos cantos e pela vizinhança que ali, naquela casa, morava o diabo.

A coisa se espalhou de tal maneira que acabou chegando no ouvido do Euclides. Curiosamente, de um evangélico de outro grupo, zelador do condomínio. O homem, idôneo e boa gente, com mais de 10 anos de trabalho no endereço, chamou meu amigo no canto e o alertou sobre o que a dona estava espalhando. O Euclides quase teve um piripaque. “Josiel, não acreditei no que tava ouvindo. Você me conhece… sabe da vida reservada que procuro levar… me explica… como é que uma pessoa passa a trabalhar na minha casa e me cria um problema dessa natureza?”, desabafou.

Muito incomodado com a história, Euclides foi apurar a situação com outras pessoas simples do condomínio. Ficou boquiaberto ao ouvir – “até dos mais discretos” – o que a evangélica andou espalhando pelo lugar. Em fevereiro, o professor andou doente, com pneumonia. Até isso foi assunto para a “pastora” que assegurou que a doença era coisa do “diabo da gruta”. Euclides precisava desabafar. No meu carro, entristecido com toda a situação, revelou-me que não teve outra opção: foi obrigado a demitir a mulher.

Na gruta, em Lagoa Santa, para encerrar de vez os aborrecimentos dos últimos tempos, flores brancas para Nossa Senhora. Homem de bom coração, o Euclides disse ter feito prece e pedido pela evangélica que, “sem noção de respeito à vida alheia”, vivia de fazer da fé doença brava. Em mim, Deus é amor! Simples assim: não importa o templo… menos ainda a religião. Aqui, entre nós, pobres mortais, uma lição: a língua é o chicote do corpo.

Bandeira Dois - Josiel Botelho

terça-feira, 23 de abril de 2013

Oração de São Jorge

Ó São Jorge, meu guerreiro, invencível na Fé em Deus, que trazeis em vosso rosto a esperança e confiança abra os meus caminhos.

Eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge para que meus inimigos, tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me vejam, e nem em pensamentos eles possam me fazer algum mal.

Armas de fogo o meu corpo não alcançarão, facas e lanças se quebrarão sem o meu corpo tocar, cordas e correntes se arrebentarão sem o meu corpo amarrar.

Jesus Cristo, me proteja e me defenda com o poder de sua santa e divina graça, a Virgem de Nazaré, me cubra com o seu manto sagrado e divino, protegendo-me em todas as minhas dores e aflições, e Deus, com sua divina misericórdia e grande poder, seja meu defensor contra as maldades e perseguições dos meus inimigos.

Glorioso São Jorge, em nome de Deus, estenda-me o seu escudo e as suas poderosas armas, defendendo-me com a sua força e com a sua grandeza, e que debaixo das patas de seu fiel cavalo meus inimigos fiquem humildes e submissos a vós.

Ajudai-me a superar todo o desanimo e alcançar a graça que tanto preciso: (fazei aqui o seu pedido)

Dai-me coragem e esperança fortalecei minha FÉ e auxiliai-me nesta necessidade.

Com o poder de Deus, de Jesus Cristo e do Divino Espírito Santo. Amém!

São Jorge rogai por nós!

segunda-feira, 22 de abril de 2013

O drama da menina livre

Berenildes da Costa foi daquelas beldades que faziam ajoelhar os rapazes mais descolados dos anos 1960. Em paz e livre para o amor, a mulher teve todos os homens que quis aos pés. Linda, de corpo perfeito e bem à frente de seu tempo, a bela de roupas coloridas e cabelos na cintura sabia como ninguém arrancar um suspiro.

Tomou de conhecidas – algumas amigas até – os namorados mais fiéis. João, Beto, Ricardo, Lu, Maurício, Chico, Breno, Joaquim, Roberto, Walley, Thomas, Tonico, José e Frederico, todos maconheiros, fizeram sofrer mais de dúzia de boas companheiras por causa de Berenildes. Bastava ela dobrar a seda para a rapaziada endoidecer de amor.

Estudante da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Berenildes era diferente da grande maioria de seus colegas de sala de aula. Enquanto grupo de estudantes discutia o futuro do país e enfrentava – como podia – as forças armadas, a moçoila só queria se acabar no colo e na maconha.

Tanta diferença fez Berenildes largar os estudos e curtir a vida com a mesada do pai, fazendeiro da Região Central de Minas. Filha única, a beldade pintava e bordava com o seu Natanael, viúvo e dono de coração sem igual. “Deixa a menina viver, Zé! A vida é uma só”, dizia o homem para o irmão que morava em Belo Horizonte, padrinho de Berenildes, que queria porque queria dar jeito na menina.

O tio advogado até que tentou acompanhar os passos da afilhada na capital. Aconselhou, chamou a atenção... brigou... esperneou e nada. Por fim, decidiu entregar para Deus. “Essa, só o diabo!”. Berenildes tatuou o sol, a lua, o mar e as estrelas no corpo. Encheu de flores os braços e mandou ver raízes nas pernas. Nas costas, duas asas gigantes para ir mais longe.

Natanel morreu e Berenildes chorou semana. Sem ter nada a ver com a terra em que nasceu, vendeu tudo para rodar o mundo com o patrimônio deixado pelo pai. Tio Zé, sempre presente, tentou tirá-la de cabeça: “Sossega o facho aqui, menina. Vai estudar!”. Em vão. No exterior, Berenildes seguiu a promover suspiros. Fogosa e desgarrada, a ex-universitária só queria saber de farra entre os mais livres e drogados.

Livre, apaixonou-se por colombiano que vivia em Londres. O sujeito, Lorenzo, era sua cara metade: “Me gusta disfrutar de la vida. Es todo lo que importa a mi, mi amor”, vivia de repetir o bonitão. Traficante procurado por autoridades internacionais, Lorenzo caiu e levou junto Berenildes. Hoje, à espera de julgamento, o casal troca bilhetes de amor em dois presídios de Bogotá. É o tio Zé, velho e doente, quem tenta trazer de volta a afilhada.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Melhor remédio é o otimismo

O João Elias é amigo dos bons, dos mais otimistas que conheço. Daqueles raros que, com exemplo, melhoram a vida da gente. Teve lá em casa no fim de semana, na tarde de almoço em que Violeta caprichou pelo batizado de nosso garoto. Pouca gente. Só os mais próximos da família. E o João é irmão de consideração. Cortou mais de 300 quilômetros para comparecer à Igreja de Santo Antônio e experimentar o feijão da patroa.

Desde que se mudaram para a Zona da Mata, ele e a família têm vindo muito pouco a Belo Horizonte. “Só em ocasiões muito especiais, Josiel”, diz. Obrigado, João! Foi uma grande alegria rever o amigo otimista e exemplar. Sujeito dos mais trabalhadores e alegres de que já se teve notícia. De família de poucos recursos, irmão mais velho dos nove filhos de dona Maura, João, aos 8 anos, começou a trabalhar por iniciativa própria para a judar em casa.

Estudou só até o que era chamado “primeiro grau”. Mesmo assim foi reprovado no último ano, na oitava série. Estudava à noite. Levantava às 4h30, na Região da Pampulha, para trabalhar como servente de pedreiro. Depois do dia inteiro no serviço pesado, ainda reunia forças para ir para à escola. Foi quando a gente se conheceu. Ele, pregado de tanto cansaço, dormia na sala, no último horário, por volta das 22h. Não era para menos.

Resultado: aos 16 anos, reprovado na oitava série. Na ocasião, falava que estudar não era para ele. “Tenho é que trabalhar. Ganhar dinheiro pra ajudar a minha família”, disse-me. Nunca esqueci. No ano seguinte, até estava matriculado, mas não voltou aos bancos da escola. Encarou firme o trabalho e ajudou a mãe a sair do aluguel com os irmãos mais novos. Como ele, todos os outros filhos de dona Maura seguiram o caminho do trabalho.

Depois que João deixou a escola, ficamos um tempo sem contato. Até que, por essas manobras do destino, Marília, mocinha mais velha da dona Maura, veio parar no meu táxi. Cinco anos passados, não dei conta de reconhecer a irmã do João. Estava crescida e bastante mudada. Mulher feita. Retomamos o contato e a boa amizade. João havia deixado o serviço de servente e juntado dinheiro para comprar três carroças e trabalhar com outros dois irmãos.

Fiquei triste quando soube da morte do pai dos meninos, vítima de acidente de ônibus. A situação que já era difícil ficou ainda mais complicada. E o que, na época, já me impressionava é que, na casa de dona Maura, com nove filhos, ninguém reclamava da vida. Todos, sempre, cheios de otimismo. Havia alegria em tudo naquele endereço. Uns pelos outros em toda e qualquer circunstância. Jamais conheci família mais unida, alegre e otimista na vida.

Enquanto João Elias, Humberto e Chico tocavam o negócio das carroças em serviço de limpeza urbana, dona Maura e as filhas trabalhavam – lavando e cozinhando para particulares. Há dois anos, João Elias juntou recursos com irmãos e cunhados. Juntos, compraram uma terrinha para investir na plantação de grãos. Dona Maura resistiu, mas acabou cedendo e topando deixar BH. Só Anita, a caçula, na faculdade de administração, ainda não foi.

João, a mulher Fabiana, e o filho Luiz Carlos, de 7, estão felizes com a vida nova. Domingo, depois que nossos convidados se foram, Violeta e eu conversamos muito sobre a história de vida de João Elias. Minha mulher estava comigo e ouviu o amigo, por horas, contar sobre os irmãos. Em momento algum, algo ruim. Eterno otimista, João só tinha motivos para se orgulhar da família, agradecer o presente e acreditar no futuro.

Bandeira Dois - Josiel Botelho

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Genevieve, a boneca de Sete Lagoas



Helvis, mecânico, machão desembestado, já ouviu muitas histórias sobre os feitos de Madame Sicrana. De um lado, que a vidente é anjo caído, disfarçado. Do outro, dizem, ela é o diabo em forma de mulher feia. E ela é feia. Tem a mulher feia. Tem a mulher muito feia e tem a Madame Sicrana. Incrédulo, Helvis nunca levou a sério esse negócio de despacho, terreiro e encruzilhada. Dia desses, em conversa de botequim, ouviu de amigo: “O bilau do meu tio nunca mais subiu”. Desconfiado, reagiu: “Fala sério!”.

Tunin, o amigo, emendou a conversa: “Tô falando. Minha tia foi lá na madame e voltou muito estranha. Aí, numa sexta-feira, lá pela meia-noite, na esquina da minha casa, da janela do meu quarto, eu vi: minha tia sangrou uma galinha garnizé, esquartejou um pinto preto de pescoço pelado e embrulhou os pedacinhos numa calcinha branca, que ficou toda vermelha de sangue… Ela resmungava: “Zé, Zé! Zé, Zé!”. Zé é o nome do meu tio, irmão da minha mãe. Ele tinha fugido com uma colega de serviço. Um mulherão, uma indecência. Nunca vi mulher mais gostosa. Uma semana depois, a gostosona largou o tio Zé e saiu espalhando que ele era brocha. O cara se acabou. Tá na pior”.

Helvis, que acreditava ter resposta para tudo, não deixou por menos: “Vai vê seu tio já era boiola. Bicha-moça. Gilete. Era boneca, já gostava de dormir na caixa”.

Aquilo deixou Helvis pra lá de encucado. Então, o machão de Sete Lagoas, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, resolveu conhecer a madame. Marcou consulta e foi ver a macumbeira. O mecânico até molhou as calças só de ver Sicrana. Não de medo. De susto. Nunca tinha visto na vida mulher tão feia. Sicrana mandou na lata, logo que bateu o olho em Helvis: “Ce vai virá moça!”. Duzentos real!

Aturdido, Helvis pagou sem reclamar e deixou o endereço. O mecânico já saiu de lá mudado. Abandonou a oficina e virou dançarino de boate gay. Casou-se com Tonhão do caminhão e acaba de cortar o pingolim. Até nome novo ganhou: Genevieve.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho

quarta-feira, 10 de abril de 2013

A miséria no olho da rua


O assunto merece reflexão. Nos dois últimos anos, em “turnê” com companhia teatral pelo interior de Minas Gerais, fiquei bastante encabulado com a ausência de pedintes e moradores de rua na grande maioria das cidades visitadas. Todo mundo bem, trabalhando e dono de casa. Especialmente, no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Será mesmo que, por essas bandas, tudo anda tão bem assim?

Em vários lugares, de muitos moradores, ouvi que, ali, não havia mendigos porque eles chegam e são despachados no mesmo dia. Não são bem-vindos. Para muitos, sujam e desvalorizam a cidade. Provocam uma tremenda sensação de insegurança e atraem outros, que atraem outros… e outros. Carlos, o amigo produtor cultural, observa: “A boa gente pobre, miserável, podia mesmo não estar nas ruas. Não porque são despachados. Mas pelo fim da miséria, das drogas e da falta de vontade política… no interior e nos grandes centros. Isso sim!”, sonha.

Enquanto isso, os “fiscais”, implacáveis, despacham pela ordem e limpeza pública. “Tem muita gente vigiando na rodoviária. Quando alguém desembarca, estranho, sem rumo, com pinta de pobre que vai ficar na rua, o fiscal dá um prato de comida, ajuda no que é possível, e paga a passagem para a capital”, revelou o pipoqueiro antenado com o movimento de sua terra natal. Em outra cidade vizinha, linda, cheia de praças, a comerciante endinheirada também afirmou que, lá, “morador de rua não tem vez”.

“Aqui, eles têm que tomar o rumo de outro lugar no mesmo dia. Tem muita gente organizada, disposta a evitar que os moradores de rua venham afear o município”, diz a mulher. Fato é que, em Belo Horizonte, segundo o Movimento Nacional de População de Rua, em seis anos, o número de sem-teto dobrou. Já são 2,2 mil. Em 2006, eram 1,1 mil. Um retrato da miséria, pelo olho da rua, que, infelizmente, está longe de acabar no Brasil.

Há também outro agravante já conhecido: as drogas. O crack está tomando conta e acabando com a vida de muita gente. O mal que assombra todas as classes sociais brasileiras está entre todas as idades. É caso de saúde pública. No interior, em algumas cidades, o crack está empobrecendo famílias inteiras. “Meu irmão sempre foi trabalhador, honesto. Começou a mexer com isso e acabou. Perdeu o que tinha e o que não tinha”, conta Josué, o frentista.

A família do Josué tem tradição no trabalho em campo, nas plantações de soja, café e com gado de corte. O homem simples, trabalhador desde garoto, só tem a lamentar os últimos tempos. “Não é só meu irmão não. Tem muito primo e conhecido também que largou a lavoura pra mexer com droga. Só não tão morando na rua porque Deus não deixa. Só que não vai demorar, se continua como tá, vão é morrer, né!?”.

Se, no interior, o crack é tão assustador, podemos imaginar, então, o tamanho do mal que tem assombrado Belo Horizonte. Aqui, não temos notícias de “fiscais” despachando os moradores de rua para canto algum do país. E esse número absurdo, 2,2 mil, dobrado em seis anos? Não é preciso rodar muito pela cidade para encontrar os viciados largados pelo espaço público, próximo ao hipercentro. É a miséria tomada pelo tráfico. Só não vê quem não quer, amigo leitor. Só quem não quer.

Bandeira Dois - Josiel Botelho

segunda-feira, 8 de abril de 2013

O castigo do Francisco

Dois irmãos, únicos. Filhos de dona Dejanira com sujeito sem importância. Um, Joaquim, de 27, acaba de voltar dos Estados Unidos, às pressas, pela pouca sorte da família. Há três anos o caçula ganhava a vida como copeiro em Nova York. O outro, Francisco, de 41, o Chico, está preso. Condenado a sete anos por tráfico de drogas. Começou vendendo cachaça de fusquinha laranja, acabou distribuindo pó com jipão importado. A condenação do filho predileto foi golpe duro demais para a cozinheira. Dejanira teve piripaque de tristeza e passou maus bocados, vítima de acidente vascular cerebral, em CTI de hospital público de Belo Horizonte.

Do aeroporto internacional de Confins, de mala e tudo, Joaquim foi direto para o hospital. Implorou ao chefe de plantão para entrar e ver a mãe, ainda que fora de hora. O bom homem careca, de olhos verdes, solidário ao drama do rapaz, quebrou o protocolo. A mãe sorriu com os olhos e, grogue, com o canto seco da boca, balbuciou o nome do filho preso: “Chico... Chico...” E tome lágrima de matar o coração. Joaquim prendeu o choro e deixou o hospital. Passou em casa na Região de Venda Nova para deixar as malas. Lá, pelos vizinhos, soube melhor das trapalhadas do irmão sem juízo.

Orientado por conhecido, Joaquim se cadastrou para poder ver o parente. Enquanto aguardava parecer para entrar no presídio, teve que enterrar a mãe. Na noite em que o filho caçula voltou dos EUA, Dona Dejanira teve duas paradas cardíacas seguidas e não resistiu. Outro bom doutor foi quem ouviu o último suspiro triste da cozinheira: “Chico”. Coube ao copeiro dar a notícia da morte da mãe ao irmão condenado. Diante do sujeito, o silêncio mais doído de duas vidas. Foi Chico quem puxou assunto qualquer para despistar o desespero e a vergonha.

– Tava com saudades de você, Kim. Tá gordo, chique, até com cara de rico. (pausa) Ainda bem que você veio. Liguei pra pedir sua ajuda só pra segurar a barra com a mãe. Só até eu sair daqui.

– Cara, olha só a merda que você fez. Que você andava perdido todo mundo sabia... que vivia preso por não pagar a pensão dos meninos, disso eu fiquei sabendo lá... mas virar traficante? Que merda você tem na cabeça?

– Vai esculachar? Até você veio aqui pra me dar lição de moral? (pausa) A mãe é sua também. Quando você decidiu tentar a vida nos Estados Unidos, eu dei a maior força... quem ficou aqui, morando com ela fui eu. Agora, tô ferrado. Só isso.

– Ferrado e levando todo mundo com você... você sabe o que os seus filhos estão sentindo? Ontem, eu tive com o André e ele disse que você tá morto pra ele. Sabe porque? Não é porque você tá aqui não... é porque tem três anos que você não dá um telefonema pra saber se ele tá vivo.

– Não se mete na minha vida. Você só tem que cuidar da mãe até eu ajeitar as coisas.

– A mãe morreu. Tem três dias. Desgosto. A última coisa que ela disse foi o seu nome.

Silêncio de morte entre os dois. Joaquim respira fundo e sai de cena. Chico, o condenado, mergulha a cabeça entre as mãos como o mais perdido dos mortais.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho

segunda-feira, 1 de abril de 2013

A dama da noite



O Marciano nunca mais foi o mesmo depois daquela noite de Páscoa. Faz anos que o vendedor de automóveis conheceu a mulher pintada. Jamais experimentou noitada como a que teve com a antiga moradora do Bairro Alípio de Melo. A mulher, que cheirava a dama-da-noite, tinha olhar de promessa e gosto de rosa. Foi hora de entrega sem limites. Para nunca mais.

Conheceram-se assim, ao acaso, em noite rara de chuva e ventania. Ele, mais ou menos feliz, havia acabado de deixar o bar com os amigos. Ela, parada sobre o quebra-molas. Linda, com vestido branco molhado, desenhado no corpo perfeito. Ao diminuir a velocidade para ultrapassar lombada, Marciano bateu os olhos na mulher de sardas e parou o carro. Ficou ali, boquiaberto, a observá-la pelo retrovisor. Ela caminhou em sua direção e, sem dizer palavra, abriu a porta e entrou no carro.

Minuto de silêncio. Vidros fechados, embaçados no Verona. O rádio, desligado, funcionou sozinho. Música antiga, melosa, dos anos 1970. Motor apagado, Marciano não tirou os olhos da carona. Esquadrinhou cada curva em gotas. Respiraram juntos um só suspiro. Deram-se as mãos, num ato lento e simultâneo. Frias, geladas. Apertaram-se as linhas da vida. Leram-se. Beijaram-se demoradamente, sob o vaivém das paletas para expulsar as águas no vidro. Quarentão solitário, ele ardeu em vontade pela estranha. Um ou outro carro cortava a via naquela meia-noite. A chuva ganhava força à medida que o casal se dedilhava. No ar, aroma. Ao vento, sussurros.

Roupas arrancadas com violência. Fizeram valer a suspensão do Verona. No rádio, por conta própria, mais volume para a balada dançante. Baile louco, acinturado. Uma. Duas. Três vezes nos estofados inclinados. Ah… Grito parado no ar. Desmanchados, sem pressa, cataram suas vestes. Ajeitaram os cabelos em sorriso e cansaço. Ao fim da última canção, o aparelho parou de tocar. Ele bem que tentou. Não teve jeito. Enguiçado.

“Preciso ir”, lamentou a estranha. “Eu te levo”, ele respondeu. “Eu te mostro o caminho”, ela sorriu. Marciano dirigiu até pequena rua escura. “É aqui”, ela disse, apontando para a placa azul 77. Longa pausa. “Posso entrar?”, ele quis saber. “Melhor não”, pontuou a sardenta, doce. Palmas tocadas em despedida. Ela desceu e venceu o portão enferrujado. Bela, sorriu antes de sumir no quintal.

Marciano partiu sob tempestade. Não pregou os olhos até amanhecer. Trabalhou durante a manhã com a cabeça na mulher pintada. Na hora do almoço, decidiu reencontrar a estranha. Com dificuldade, localizou a rua estreita. Ao chegar diante do número 77, reconheceu a casa. Abandonada, porém. Emudeceu-se quando soube, pelo vizinho, que a moradora, uma bela mulher ruiva, ali, havia morrido há mais de cinco anos.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho