Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O amarelo das acácias

Doutor G. sempre foi muitíssimo respeitado. Casou-se com moça de família tradicional de Minas Gerais. “Juntaram-se ali duas grandes forças econômicas e morais”, escreveu o velho colunista, cheio de autoridade entre os mais endinheirados do país. G. e sua mulher tiveram dois filhos que ajudaram a construir Belo Horizonte. Teve vida badalada entre gente de diversos segmentos da cidade. Ninguém jamais imaginou que o empresário, aos 73 anos, teria fim tão solitário. No velório de cemitério chique, apenas o motorista, camarada de décadas de cumplicidade, a velar o sujeito. Mulher, irmãos, filhos e netos não compareceram. Cleonice, a viúva, bem que pensou ir. Mas, acamada, não podia deixar o repouso depois de acidente vascular cerebral.


Miguel, o motorista, foi quem cuidou do funeral, com recursos vindos do filho mais velho do falecido. “Faça o que tem que ser feito. Depois, manda queimar tudo. Tudo. As cinzas espalhe pelos bueiros do Arrudas. Do Arrudas, está me entendendo? E faça-me o favor: suma do mapa. Suma!”. Matias era o mais revoltado com o pai. “Ele não tinha o direito! Não tinha”, esbravejou logo que tomou conhecimento do escândalo de amor secreto. O motorista gastou cada centavo dos R$ 5 mil dispensados ao corpo de G. Ainda pagou do próprio bolso a única coroa de flores no lugar. “Descanse em paz, companheiro”, assinado: Miguel. Nem os mais curiosos do salão vizinho compareceram para ver o defunto. Nem padre, nem pastor, nem pai de santo, ninguém. Foi Miguel, sem parentes ou amigos, o único a rezar pela alma de G.


Na família numerosa, não havia quem tivesse coragem de tocar no assunto. Doutor G. estava para desaparecer simplesmente. Os 110 imóveis – espalhados pelos bairros mais nobres de BH – mais a fortuna em ações e fundos de investimentos, herdados do doutor morto, não foram suficientes para diminuir o desgosto da revelação. Já Miguel, silencioso, agradecia cada minuto que teve ao lado de G. O velho não imaginava tanto desafeto. Nem quando enfrentou o pai, político de carreira suja em Brasília, foi alvo de tamanha revolta entre os seus. Tampouco quando contrariou os interesses do governador bonachão, que o perseguiu por anos, o céu esteve tão fechado para a sua alma.


O tempo de voltar ao pó se aproxima. Dois funcionários do cemitério avisam ao motorista: “Dez minutos, senhor”. Miguel, de pé, de mãos dadas consigo mesmo, faz a última prece pela alma do amigo. Retira do paletó o lenço em cores e o coloca junto ao peito de G. Suspira profundezas e beija a testa do morto. Tampa ele mesmo o caixão e autoriza a ação. Lágrima num olho só. Dois dias depois, de posse das cinzas de G., Miguel se muda para o interior do Rio de Janeiro. Casinha de praia, secreta, único bem em seu nome. Lá, o motorista espalhou os restos de G. sob o amarelo das acácias.


Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 31/10/11

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O pior do casamento

É a separação. Até quando é para o bem de ambos, o rompimento é sempre uma pancada. E os filhos? Aí é que a coisa pega para valer. Na casa dos 40 anos, com relações intensas dissolvidas, posso dizer com convicção: alguém sai sempre machucado na hora de partir. No último domingo, o casamento veio à luz das ideias por causa de matéria do jornal Estado de Minas sobre infidelidade, sob o título “Onde mora o pecado”. Equipe de jornalistas estava nas ruas para fazer reportagem sobre os descasos com o patrimônio público em praças e parques de Belo Horizonte e acabou encontrando casais em segredo, que não podiam ser fotografados juntos. A pauta, vindo de dentro da notícia, dividiu opiniões entre companheiros de praça.


Há quem diga que está certo: “O importante é ser feliz.” Os mais centrados espinafraram: “Não é correto. Ninguém tem o direito de enganar ninguém. Não dá mais? Então, que cada um siga o seu caminho, sem mentiras”, defendeu a Sueli. A conversa rendeu toda a tarde. Ouviu-se de tudo. Casos e mais casos de amigos e conhecidos. Nada de fuxicos ou mexericos. Tudo de bastante relevância sobre casamento, lealdade – assunto de interesse de todos os presentes. Lembrei-me de entrevista que fiz com a advogada, doutora Lilian Campomizzi, amiga e passageira de longa data. Na semana passada, curiosamente, em grupo da universidade, debatemos muito o divórcio para trabalho de direito, intitulado “Cama de tatame”. Trecho do material tem muito a ver com a coluna de hoje e diz o seguinte:


Ajuizados, distantes das páginas policiais, muitos descasados vão parar nas varas de família. É quando entra em ação o direito para cuidar da pior parte do casamento: o divórcio. Lilian Campomizzi Bueno, há duas décadas no exercício da advocacia especializada, chama a atenção para a mudança até no Código Penal brasileiro, que, a partir de 2005, deixou de tipificar o adultério como crime, que previa detenção de 15 dias a seis meses. A advogada explica que também ficou mais fácil dar fim ao casamento nos conformes da lei. O que não significa paz nos tribunais. São raras as situações em que uma parte não sai magoada. O patrimônio costuma maltratar ainda mais os corações. E os filhos, claro, sempre pesam na hora de chutar o pau da barraca.


Doutora Lilian analisa a batelada de casos resolvidos por seu escritório. “A maioria a propor o divórcio ainda é a mulher. Para o homem é mais difícil. Ele não se separa apenas da mulher. Separa-se da família”, ressalta. Para a advogada, o homem continua traindo mais. “Muitas vezes, para o homem, a traição é um deslize menor. Um divertimento apenas. Para a mulher o assunto é mais sério. É verdade, entretanto, que já conheço muitas mulheres que pensam como homens”, revela. Aos 44 anos, solteira, Lílian não esconde que a convivência com os processos de divórcio enfraquece seu encanto com o casamento. “Isso me afeta, infelizmente. Vejo as mentiras, as reclamações… mais do que a traição, as pessoas reclamam o descaso, a falta de assistência. Não há relacionamento que sobreviva a isso”, considera. Palavra de quem conhece o assunto. No mais, amigo leitor, só o amor para dobrar a luxúria.


Bandeira Dois - Josiel Botelho - 26/10/11

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Que país é esse?

Meia dúzia de pessoas na sala de cinema em noite de estréia. Rock Brasília – A era de ouro, de Vladimir Carvalho, não é para a massa. Não é para quem busca entretenimento. Não compete com os blockbusters americanos de excelência em efeitos especiais em som, imagem e na vendagem de pipocas. O documentário, de melhor, tem idéias que embalaram uma geração de jovens brasileiros. Chega a ter áudio tosco, fotografia frágil e figurações desnecessárias – os atores contratados para fazer cena não acrescentam ao longa-metragem. Mas nada disso importa. O que faz valer Rock Brasília é sua beleza histórica e os ideais de seus protagonistas. Para quem está na casa dos 40 anos, saber mais sobre a garotada de bandas como Legião Urbana, Capital Inicial, Plebe Rude e Os Paralamas do sucesso tem significado bastante singular.

Em Belo Horizonte, nos anos 1980, distante do Distrito Federal, um grupo de estudantes do Colégio Santos Dumont, no Bairro Santa Efigênia, juntava trocados para comprar os discos de Renato Russo, Dinho Ouro Preto, Philippe Seabra e companhia. De família de poucos recursos – anos difíceis aqueles –, todos trabalhavam pesado durante o dia e encaravam com seriedade as aulas até depois das 22h. Filhos de alfaiate, barbeiro, pedreiro e sapateiro, Tonho, Kim, Kiko e Fabinho eram fãs da música que vinha de Brasília. Até gostavam das bandas Ira, Doutor Silvana e Cia., Titãs, Camisa de Venus e Kid Abelha. Mas eram as canções do grupo Legião que os garotos mais gostavam de cantar. Tanto que Fabinho aprendeu a tocar violão por causa de Faroeste Caboclo – letra que ele virou madrugada para decorar, enquanto treinava datilografia.

O documentário do Vladimir Carvalho revela que o Fé Lemos, baterista do Capital Inicial, vendeu bicicleta para comprar bateria. O Fabinho, do Santos Dumont, também vendeu a bicicleta para comprar violão. Depois das aulas, em frente ao colégio, na Avenida Mem de Sá, o músico amador comandava sarau ao menos duas vezes por semana. O garoto, office boy, não era grande coisa nas seis cordas, mas cantava com timbre de profissional. A amizade do grupo crescia à medida que eles compreendiam melhor as mensagens que vinham da moçada de Brasília. “Vocês vão fazer alguma coisa para consertar as próprias vidas? Eu cheguei a seguinte conclusão: não adianta consertar o resto. Consertar a gente ajuda pra caramba”, disse o Renato Russo, num show, entre estrofes de Que país é esse?.

Em 1988, logo depois do trágico episódio envolvendo o Legião Urbana no Estádio Mané Garrincha, no Distrito Federal, Tonho, Kim, Kiko e Fabinho foram ao Mineirinho ver Renato Russo comandar show em BH. Inesquecível. Novas escolas e oportunidades de trabalhos fora de Minas acabaram por afastar o quarteto que fazia cover do Legião nas esquinas de Santa Efigênia e nos acampamentos na Serra do Cipó. No entanto, o rock-martelo deu resultado e os garotos seguiram suas vidas em busca de fazer diferença. Reencontro marcado mais de 20 anos depois. Já quarentões, dois professores e dois advogados, pais de filhos de boa educação, o grupo se reuniu na última sexta-feira para ver o filme Rock Brasília. Fabinho levou o velho violão. Depois, na calçada, em mesa de boteco tradicional, ninguém entendeu nada ao ver o quarteto grisalho, em performance adolescente, tocar e cantar “Que país é esse?”.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 24/10/11

sábado, 22 de outubro de 2011

Dos gritos da alma













Há mais de 20 anos uma ideia de perseguição: não há bússola para as navegações do espírito. Está no ator – no corpo e na mente – o rumo dos sentidos. Para a construção da verdade instantânea, no aprumo dos significados, não há planta nem rascunho. Não há trabalho de mesa que dê conta das explosões da alma no levantamento prático da cena. Há uma infinidade de possibilidades veladas, ativadas a partir do suor do papel. Melhor o processo, melhor o desdobramento. Mais aprofundados os estudos e as orientações do corpo diretor, mais convicente o conjunto. Mesmo que para isso, seja necessário se envenenar de paixão. De resto, o tempo. Dia 12 de novembro, sábado, "Um inimigo do povo". (Jefferson da Fonseca Coutinho)


Um pouco de estudo para justificar as ações

Vsevolod Emilevich Meyerhold, era pseudônimo de Karl Kazimir Theodor Meyerhold, mais conhecido apenas por Meyerhold. Nasceu em 1874, em Penza, na Rússia. Foi um importante encenador, ator e teórico do teatro. Em oposição ao naturalismo teatral, desenvolveu uma técnica de encenação antinaturalista denominada de Biomecânica. Foi a Moscou estudar direito, mas deixou a escola em 1896 e ingressou nas aulas de Vladimir Nemirovich-Danchenko, no Instituto Dramático-Musical da Filarmônica de Moscou. Tendo concluído os estudos formando-se ator, em 1898 foi convidado a se juntar à trupe do recém fundado Teatro de Arte de Moscou - TAM, de Stanislavski, onde trabalhou por quatro anos. Templo do naturalismo e do realismo psicológico, o Teatro de Arte foi a grande escola de Meyerhold, que em 1902 decide percorrer caminhos próprios fundando uma nova trupe, a Sociedade do Drama Novo. Danchenko e Stanislavski
criaram o TAM para escapar e se contrapor ao tradicionalismo teatral de então, aos clichês repetitivos e enfadonhos, às interpretações baseadas na imitação pela imitação, na cópia servil.


O Ator na Biomecânica, segundo Márcia Lima, pesquisadora das artes cênicas em Brasília:

O ator sobre a cena é como um escultor frente a um pedaço de argila: deve reproduzir em forma sensível, como o escultor, os impulsos e as emoções de sua própria alma. O material do pianista está representado pelos sons de seu instrumento, o do cantor por sua voz, o do ator por seu corpo, a fala, a mímica, os gestos. “A obra interpretada pelo ator representa a forma de sua criação”.

O ator biomecânico é um artista que cultua e exercita a agilidade – do corpo e do raciocínio - o otimismo e a felicidade. Criador simples e despojado prescinde das máscaras naturalistas, dos clichês, disfarces e maquiagem. Este ator encontra-se em um ponto eqüidistante do trabalhador comum que faz teatro e do exímio especialista que nada vê à frente que não seja o teatro. Técnica e consciência de classe tornam o ator de Meyerhold um agente da arte e da história.

O corpo do ator é entendido como mais um objeto de cena, portanto sua disposição em relação ao cenário tem importante papel como elemento de comunicação visual. Por essas razões, outros elementos típicos do teatro de Meyerhold, como a iluminação, cenário e figurino estilizados e antinaturalistas são essenciais para o perfeito funcionamento da biomecânica.

O ator biomecânico é ágil, otimista, feliz, simples; não precisa de disfarces ou maquiagem. Nas palavras de Hormigon, “não é nem um trabalhador que faz teatro, nem um virtuose que encontra no teatro um fim em si mesmo. Graças à sua técnica e consciência de classe, o teatro se transforma em seu meio de produção e de atuação na história.”

Meyerhold cria o “Teatro da Convenção Consciente” onde tanto a platéia como ator tem a consciência de estar assistindo a uma representação, não há a intenção de criar uma ilusão no espectador. O ator é levado a ter uma maior aproximação com público o que exige dele um maior domínio do espaço.

No seu teatro, o ator, juntamente com o autor, o diretor e o público são criadores absolutos do fenômeno teatral. Embora a participação do público fosse apenas emocional, nunca física, através de sua imaginação que deveria ser empregada “criativamente a fim de preencher os detalhes sugeridos pela ação do palco”. O que força o espectador a passar de uma simples contemplação, ao ato criador.

Meyerhold eliminou o proscênio e trouxe para o seu trabalho, a máscara. Desnudou o palco e expôs os meios metafóricos do gesto, do ritmo e da maquiagem. Entre 1918-1919, Meyerhold organizou uma Escola para Treinamentos dos Atores, a fim de formar atores polivalentes que colaborassem na criação. Estudava-se, em sua escola, técnicas de movimento cênico, pantomima, Commedia Dell´Arte e teatro espanhol. O fundamento de sua biomecânica estava na idéia de centrar, no corpo do ator, a expressão e vida de seu teatro.

Sobre isso dizia: Tirem a palavra, o figurino do ator, o palco cênico, o edifício teatral e as coxias, deixem somente o ator e seus movimentos para os quais foi treinado, mesmo assim o teatro continuará: o ator comunicará ao espectador através de seus movimentos, dos seus gestos, da sua mímica; o ator pode organizar, sem a ajuda do edifício teatral, o seu teatro como, onde quiser e considerar adequado, dispondo da própria habilidade.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A fé que vai além da religião

Acreditar nos desdobramentos das boa ações é força e tarefa que alimenta o espírito. Tenha o Criador o nome que for, represente a religião que for, amor, acolhida e bênção não podem ser comercializados. Desde que nasci, lá no começo dos anos 1970, na companhia dos mais velhos e mais vividos, frequentei templos e conheci mestres. Crescido, rodo meio mundo por meio de livros sagrados em busca de paz e respostas ao coração irrequieto. Entre os amigos e companheiros de praça, volta e meia, religião é assunto de debates intermináveis. A turma é teimosa. Mesmo sabendo que religião e futebol são temas bem particulares, há sempre grupo que insiste em querer impor convicções bastante pessoais. Ouço e tomo nota apenas. Sou melhor com as letras do que com as palavras. Falar, às vezes, cansa. Prefiro escrever. Aí, no sossego da madrugada, cá com a caderneta, deixo correr a mão e o pensamento.

No fim da tarde de sábado, testemunhei conversa interessante entre a Lúcia, católica, de 45 anos, e o Edvaldo, agnóstico, de 52. Ela diz ter muitas críticas à Igreja, mas considera: “O mundo só não perdeu de vez o rumo por causa das pessoas de fé e de boa vontade que sustentam as igrejas. Pensem um pouco… o batismo, o casamento, as celebrações que nos comovem nos velórios, nas missas de Sétimo Dia… tudo isso faz a gente não esquecer valores e a importância de Jesus no coração”. O Edvaldo nem deu pausa e emendou: “Até aí, tudo bem. Só não dá para aceitar os abusos que os homens cometem em nome de Deus. Todo o sangue derramado, o poder e a ganância histórica das religiões. As proibições, os dogmas – quem tem o direito de dizer se isso ou aquilo é certo e indiscutível? –. E a pompa desses bispos, padres e pastores? E a vida de luxo e riqueza de grande parte deles? Tenho para mim, sinceramente, que a ignorância é o maior fomento de todas as religiões em todos os tempos. Fé é outra coisa.”

Daí para frente a conversa ferveu e nem dei conta de tomar nota de tudo o que foi dito dos dois lados. De fora, observo as duas posições. Trata-se de conversa madura, envolvendo dois indivíduos admiráveis. Conheço-os há anos. Tempo suficiente para saber que ambos são das boas obras dos céus. Lúcia tem tamanha fé em Nossa Senhora, que não sai de casa sem medalhinha abençoada por dom Serafim, arcebispo emérito de Belo Horizonte. Ajuda dois asilos desde mocinha. O Edvaldo, chegado numa boa ação, também é sujeito de responsabilidades. Não é de tocar no assunto, mas participa de grupo de assistência social em Ribeirão das Neves. Desde 2005, veste-se de Papai Noel para fazer bom uso do barrigão e da barba branca com a criançada de regiões carentes da Região Metropolitana. O fato é que tenho bastante alegria na convivência com o casal de amigos, pais, filhos e excelentes chefes de família. Tudo isso só fortalece a minha convicção de que a boa fé, que transforma e faz diferença, está muito acima de todas as religiões do mundo.

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P.S. Não dá para deixar de destacar trecho do e-mail do leitor Ediberto Barros sobre a coluna “Lugar de adolescente é na biblioteca”, que homenageou o jovem poeta De Sá: “Que belos tempos! Tomara e rezo que este João de Sá faça resgatar em nossas crianças o prazer da imaginação”. Bem-vindo, Ediberto! A casa é sua.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 19/10/11

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O menino invisível

Preto foi batizado M. L. de Souza. O Souza veio da mãe, já que nunca soube do pai, policial. O apelido “Preto” também veio do carinho da Joaquina, que assim o chamava desde sempre: “Né, Preto!?”, “Que isso, Preto!?”, “Ah, Preto!”. E assim ficou, embora Preto fosse branquela, quase transparente. Tanto que no aglomerado, para os garotos maiores, M.L. tinha outro apelido: “Macarrão da Santa Casa”. Mas, Preto, depois que a mãe Joaquina se juntou a um tal Micael, queria mesmo era ser invisível. Viu na televisão, num desenho qualquer, uma capa vermelha que fazia a pessoa desaparecer e achou aquilo legal: “Puxa! Isso é que me tiraria desse aperto”, pensou, garoto ainda, aos 7 anos, sonhando ser polícia. Daí, começou a brincar com um cobertor acinzentado, que ganhou numa campanha da gente boa de grupo espírita.

Bastava a mãe chegar bêbada em casa para Preto sumir debaixo do pano “mágico”. Lá, ficava por horas sem sono. Às vezes, por madrugadas inteiras. Quando Micael decidia bater na Joaquina, então, é que Preto desaparecia para valer. Nessas ocasiões, o sono não vinha de jeito nenhum e o menino, que sonhava ser homem fardado, virava a noite aos soluços de choro contido. Não chorava alto porque da vez que não segurou foi tratado aos bicudões pelo padrasto marginal. “Cala a boca, desgraça pelada! Fecha essa matraca, inferno!” Os maus tratos duraram meses, até que, no dia em que completou 8 anos, sem parabéns, M.L. decidiu passar a mão na manta protetora e deixar o barraco da mãe. Beijou os três irmãos mais novos, adormecidos, fitou-os por um tempo e desceu para o asfalto antes de amanhecer.

Andou horas por larga avenida, que dava no centro da cidade, e foi parar debaixo de viaduto. Naquele dia não dormiu. Fez amizade apenas: Bagrão, catador de latinhas, vindo do Leste de Minas para ganhar a vida em Belo Horizonte. “Vivo na rua porque quero, moleque. Tenho um casão na minha cidade. Mas não volto pra lá”. Delírio. Bagrão já teve um casão em Governador Valadares. Isso há mais de duas décadas. Endividado, perdeu tudo para os bancos e para a ex-mulher desonesta. Aos 50 anos, o artista plástico mais parecia 70, com longos cabelos e barba prateados. Magro de espantar, Bagrão, levantava dinheiro com as latinhas apenas para a comida e o cigarro. Preto andou semana ao lado do moço. Bagrão falava sozinho e começou a assombrar Preto com ideias de perseguição e morte.

Não demorou para M.L. encontrar três novos amigos na noite, em Praça da Avenida Afonso Pena. “Senta aí, sô! Tô falando, véi! Senta!”, disse o mais baixinho, Samuel, que meteu a mão no cobertor e foi logo dizendo: “Perdeu, pivete!”. Preto se levantou com um leão e distribui pernada. O maior, chamado Zico, deu voz de comando e acabou com a briga. “Aqui, nóis é tudo igual, menor!” Por fim, dividiram pacote de biscoito e rasgaram a coberta em quatro pedaços. Preto contou ao grupo a história do cobertor, agora em pedaços “mágicos”. Os três garotos riram até. Madrugada fria. Preto, invisível, sob a manta mágica, acordou às pancadas de quatro brutamontes fardados. Foi quando descobriu que garotos invisíveis também apanham da polícia.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 17/10/11

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Saudades da mãe Maria

Quis o céu levar Maria num Dia de Nossa senhora Aparecida, padroeira do Brasil. O Zé, companheiro de praça, quase irmão, perdeu a mãe em 12 de outubro de 2000. “Não há tempo que cure a saudade. Não há. Os anos se vão e os suspiros, os mais profundos, aqueles da alma, permanecem provocando o coração da gente, Josiel”, disse o Zé, domingo. Há dez nos, no fim de semana que antecede 12 de outubro, reunimos grupo de amigos na casa do Zé para homenagear Maria. Uma mulher extraordinária que partiu menina ainda, aos 66 anos. A mãe do Zé era também a mãe de todos os amigos do Zé que, por força do destino, perderam suas mães. Éramos cinco – os sem mãe – que pegavam uma carona nas asas da boa senhora. Por duas décadas, Beto, Maurício, Paulão, Fabinho e eu pedimos a bênção a mãe do Zé.

Ah, dona Maria, como a senhora faz falta. O que mais impressionava na mãe do Zé era a doçura e a educação. Não havia vizinho, amigo, parente ou conhecido que não admirava o jeito doce e particular dela de dar conselhos – e até puxões de orelhas. “Lembro-me de cada lição que aprendi com ela, especialmente no que diz respeito ao amor e respeito ao próximo”, comentou Beto. Maurício emendou: “Quando pensei em deixar a Marta, dona Maria conversou muito com a gente. Meu casamento já estava praticamente perdido. Ela ajudou tanto que acabou dando certo. Se, hoje, a gente tá junto, e bem, devemos isso a dona Maria”.

Todo mundo foi emendando uma boa recordação na outra, envolvendo os carinhos e cuidados da cabeleireira, protetora de todos nós. O Paulão, muito emocionado sempre com o 12 de outubro, não podia faltar: “Quando minha mãe morreu, dona Maria ficou do meu lado o tempo todo. Não fosse o amparo dela, não sei o que teria sido da minha vida, moleque, com 7 anos”. O Paulão cresceu na casa do Zé, vizinho de porta, em Santa Efigênia. Quase irmãos: assim crescemos todos no entorno da Avenida Mem de Sá.

Uma das passagens mais emocionantes da história do Zé e de dona Maria foi quando ele foi trabalhar no Iraque e por lá ficou quase três anos. Telefone na época era coisa de outro mundo. Ele vivia brigando com a mãe porque ela não escrevia. Ele não passava mês sem mandar duas, três páginas, pelos correios. E ela nada, nenhuma linha. Quando o Zé voltou para o Brasil, fomos buscá-lo no aeroporto. Lá, chorando, abraçado a dona Maria, o viajante ainda cobrou as cartas. Ela, sem graça, respondeu: “Meu amor, desculpa a mamãe. É que minha letra é feia demais”. Nunca esqueci a cena.

Mais de dez anos se foram e, em dezembro de 2000, quando o Zé, tristíssimo, reuniu forças para desfazer o quarto da dona Maria, morta há dois meses, ele encontrou duas caixas de sapatos cheias de cartinhas iniciadas. Todas para ele. Foi quando soube que a mãe era analfabeta. Ainda assim, sozinha, deu conta de rabiscar em dezenas de folhas pautadas: “Querido e amado filho José…”. Até ano passado, as caixinhas eram guardadas como verdadeiros tesouros. Em outubro, foram incineradas. As cinzas, no Natal, levamos e jogamos no mar do Espírito Santo. Hoje, dia de Nossa Senhora Aparecida, saudamos também nossa amada mãe Maria.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 12/10/11

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Mirante pede socorro

Não é só o centro da cidade que carece ser redescoberto por Belo Horizonte. O Mirante, no alto do Bairro das Mangabeiras (foto), carece de observação. É triste ver o lixo jogado entre pinheiros, eucaliptos e flamboyants. Nas costas de área de segurança da Copasa, não é possível contar a quantidade de pedaços de papel e papelão, sacolas plásticas, marmitex, garrafas e vidros quebrados espalhados pelo lugar. Já do outro lado, com vista para a cidade a situação é ainda mais grave: galhos pesados e cascas das árvores anunciam risco de acidentes. O pipoqueiro alerta: “Cuidado. Não fique aí, porque a qualquer momento pode descer um toco na sua cabeça, moço”. O homem, há 33 anos trabalhando no Mirante, desce para mostrar o peso do galho. “Olhe só. Experimenta pegar para você ver. Sente o peso. A gente fala, mas ninguém vem resolver. Está tudo precisando de poda, de cuidado. Uma hora vai ter um acidente, aí, vai dar problema”.

Geraldo Marcílio Lancuna, de 44 anos, o profissional dos cocos e das pipocas, tenta cuidar do Mirante como se fosse sua casa. Vigilante, lamenta não dar conta de proteger o lugar. “A gente faz o que pode. Se seu filho vem aqui e joga papel no chão, não posso chamar a atenção dele. Isso é papel dos pais. Mas nem todo mundo tem educação, aí fica esse lixo todo que vocês podem ver. Eu cuido, mas não tem jeito de resolver. As pessoas precisam ter mais cuidado com o patrimônio natural que elas têm. Do contrário, um dia, tudo isso acaba. E aí? Como é que vai ser?”, quer saber. Geraldo reclama um pipi móvel para a Praça do Mirante. E precisa. O mau cheiro pelos cantos do lugar chega a ser insuportável. “E do lado da casa do governador, vê se pode. Isso aqui tem que ser orgulho para o cidadão de Belo Horizonte”, emenda o pipoqueiro.

Gotardo Braga Filho, Jussara Coelho, Rafael dos Santos e Fábio Melo, passantes pelo alto das Mangabeiras em tarde de dia de semana, concordam que o ponto turístico carece de maiores cuidados. Rafael, motorista, de 29 anos, chama a atenção para a beleza maltratada do lugar que acaba atraindo violência e pessoas que só fazem piorar o lugar. Fábio, de 27, diz não ter coragem de frequentar o lugar à noite. “A fama daqui é muito ruim. Não tenho coragem de trazer a minha família”, afirma. “Há dez anos venho aqui, a única coisa que fizeram pelo lugar foi colocar câmeras de vigilância, mas nem parece que elas estão sendo usadas, com tanta falta de cuidado”, considera. Gotardo e Jussara apreciam e comentam a beleza da BH vista de cima e lamentam a falta de infraestrutura e de valorização do Mirante.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 10/10/11

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Lugar de adolescente é na biblioteca


Sábado, na Biblioteca Pública Infantil e Juvenil, tive o privilégio de participar da manhã de autógrafos do poeta João de Sá, de 13 anos. Dá-me muita alegria ver moço tão jovem dedicar tempo ao pensamento e às letras da vida. É tão comum o desperdício das ideias na adolescência. Triste fato. Independentemente das oportunidades que brotam da convivência com familiares e amigos, há o peso do interesse, do talento e da vocação vindo do coração. João de Sá é bom exemplo disso. “Versos de um menino velho” é livro de quem nasceu com o olhar de escritor, filho da poesia. Vê-se em Ludymilla Sá, a mãe, inspiração do moço em “Uma história de amor”, o orgulho de quem reconhece o valor de seus frutos.

“Versos de um menino velho” levou-me a esquadrinhar lembranças. Quando criança, pequeninho, apaixonei-me pelas histórias de José Bento Renato Monteiro Lobato. Minha professora, dona Palmira, sabia do bem que estava fazendo para a minha vida ao apresentar-me “História do mundo para crianças”, “Caçadas de Pedrinho”, “Reinações de Narizinho”, “O picapau Amarelo” e “Histórias de Tia Nastácia”. Foi só o começo de um mergulho na infinitude da imaginação. Depois, pouco mais tarde, veio a coleção Vagalume com histórias que me enriqueceram os sonhos. Títulos como “A ilha perdida” e “Éramos seis”, ambos de Maria José Dupré, “O caso da borboleta Atíria”, de Lúcia Machado de Almeida e “O menino de asas”, de Homero Homem. Da mesma série, “O escaravelho do diabo”, de Lúcia Machado de Almeida, também marcou meu encanto com as bibliotecas. Passava horas no silêncio do salão da escola com as personagens a falar na minha cabeça.

Claro que arrumava tempo para as brincadeiras de rua e quintal: futebol, pegador, rouba-bandeira, escravos de Jó, finca, piorras e carrapetas. Ah… tinha pera, uva, maçã e salada mista… Não havia videogame, menos ainda computador. Nem televisão havia na minha casa. A gente vivia de verdade, a realidade pura, longe de tudo o que é virtual. Tinha contação de história, acampamento e pescaria. O olho chega a minar toda vez que escrevo sobre o assunto e volto ao passado, com a casa cheia. Foram-se a mãe e um irmão muito amado. É a vida finita. Já com a leitura e com a escrita descobri a imortalidade, a liberdade e a infinitude das coisas. Do lado de lá das capas dos livros encontrei um viver muito além do tempo e do espaço. Assim como o jovem poeta João de Sá, que, mesmo com o mundaréu de opções dos anos 2010, faz da literatura ferramenta de crescimento e ocupação.

Conheço garotos aos montes da idade do poeta De Sá, que gastam tempo apenas com inutilidades. Cansei-me de testemunhar adolescentes perdidos desrespeitarem familiares, amigos e professores. “Um país se faz com homens e livros”, escreveu o mestre Lobato na história. Na falta de bons leitores morre o futuro das ideias. João de Sá, garoto, vai na contramão do que é instantâneo. Menino ainda, homem feito na alma, eterniza seus versos de gente grande. Passei madrugada com sua obra, poeta. Fez-me voltar no tempo, no colo e no seio da família. Também me fez olhar pra frente e acreditar que rapazes como você, João, são a salvação do mundo.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 5/10/11

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Carta aberta ao humorista Rafinha Bastos


Não é relevante, ao menos para mim, se você vai ou não ser punido e deixar esse ou aquele programa de tevê. Importa-me apenas o fato de que seus “insigths”, os mais equivocados deles, ecoam entre seus seguidores – são mais de três milhões, só no Twitter, fora a batelada de fãs telespectadores e pagantes nos teatros Brasil afora. Meus filhos e eu estamos entre eles. Lembro-me bem do seu começo na internet, do carisma e da espontaneidade que o elevaram ao posto de celebridade, de personalidade influente, reconhecida até pela imprensa estrangeira. Junto da notoriedade, riqueza. Muito dinheiro, vindo da publicidade e dos shows de auditório e subprodutos do seu jeito bem natural de dizer tudo o que pensa (e o que não pensa – acredito). É trabalho honesto, claro. Entretanto, não se pode ser bom de improviso sempre. Você erra, meu velho. Erra feio e sabe disso. É natural, proporcional ao tanto que produz. Vende idéias, sacadas às sacoladas. Contudo, quanto mais pensa alto – seu produto tão efêmero –, maior a chance de morder a língua.


A última, envolvendo a cantora Wanessa Camargo, grávida, foi de doer. Como seguidor, pai de seguidores, só tenho a lamentar. “Comeria ela e o bebê” é de uma infelicidade descabida, vergonhosa. É de chicotear o próprio corpo. Desce ao mesmo nível infame de "Mulheres feias deveriam agradecer caso fossem estupradas, afinal os estupradores estavam lhes fazendo um favor, uma caridade", que já lhe custou puxão de orelhas do Ministério Público Federal. Você, menino crescido, já beira os 40 anos. Não pode deslizar de tal maneira. Dar de ombros aos limites. Acompanho seu trabalho, um pouco da sua história, e não posso crer que esses “insigths” rasos brotem da sua alma. O mesmo profissional comunicador, formador de opinião, cidadão de bem, que brande contra a cegueira e a corrupção de forças políticas de nosso país, não pode ser tão inconseqüente. Precisa estar bem acima do papel de comediante irresponsável, capaz de rastejar na superfície para se alimentar de pó.

Isso nada tem a ver com falta de humor. É relativo ao bom senso. Do mínimo que se espera de qualquer cidadão de bem. E você é um deles, imagino. Devia fazer melhor uso da sua inteligência rara. Tem talento para ajudar na construção de um Brasil melhor, se quiser. Talvez, uma forma de retribuir a generosidade e tolerância de seus milhões de simpatizantes que, vez por outra, aceitam sorrindo seus pedidos de desculpas. Embora não seja mais moleque, há ainda tempo de sobra para vestir-se de homem de valores bem maiores do que aqueles que engordam suas contas bancárias ou os cofres de sua casa. Do contrário, você se faz, sem perceber, igual ou pior a tudo o que aprendeu a criticar com tanta propriedade em tempos de lucidez. Você, Rafinha Bastos, está longe de ser mau moço, tenho certeza. É apenas um menino bobo que não aprendeu o que é limite.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 3/10/11

domingo, 2 de outubro de 2011

Agradecimento


Há muito estou para agradecer seu carinho, Lili Pelegrini... amigos, colegas profissionais assim, vc, João Paulo, Pedro Lobato, Marcello Castilho, Carlos Herculano, Arnaldo Viana, Álvaro Fraga, Liliane Corrêa, Álvaro Duarte, Fred Bottrel, Frederico Teixeira, Andrea Castello Branco, Hudson Franco, Carlinhos, Alexandre Perez, Crislaine, Ana Cybelle Aninha, Zé Wilson, Dudu Murta, Gustavo Werneck, Pedro Ferreira, Landercy, PH, Ludymilla Sá, Alysson Lisboa Neves, Geórgea Choucair, Vera Schmitz, Augusto Pio, Geraldinho, Roney Garcia, Luana, Sidão, Paulinho Nogueira, Paulinho Miranda, Vanessa, Teresa, Flávia, Luciane, Paula, Valquíria, Júnia, Glória, Mateus, Guilherme, André, Andreia, Mel, Janaina, Benja, Sílvio, Ellen, Beto Novaes, Gustavo Fonseca, Lili, Rafael, Roberto, Isabela, Mazinho, Di Bernardi, Julinho, Geraldo Alves, Ana Brant, Benny, Patrícia, Angela Faria, Gracie, Girão, Elvira, Alfredo Durães, Rafa, Otacílio, Taquinho, Batista, Lílian, Alex, Marcelo, Evandro, Marlos Ney Vidal, exemplos, entre outros tão raros, mudam os rumos da vida e fazem com que a gente tenha força e motivação para aprender sempre mais. Melhor e mais. Por tudo, obrigado!