Preto foi batizado M. L. de Souza. O Souza veio da mãe, já que nunca soube do pai, policial. O apelido “Preto” também veio do carinho da Joaquina, que assim o chamava desde sempre: “Né, Preto!?”, “Que isso, Preto!?”, “Ah, Preto!”. E assim ficou, embora Preto fosse branquela, quase transparente. Tanto que no aglomerado, para os garotos maiores, M.L. tinha outro apelido: “Macarrão da Santa Casa”. Mas, Preto, depois que a mãe Joaquina se juntou a um tal Micael, queria mesmo era ser invisível. Viu na televisão, num desenho qualquer, uma capa vermelha que fazia a pessoa desaparecer e achou aquilo legal: “Puxa! Isso é que me tiraria desse aperto”, pensou, garoto ainda, aos 7 anos, sonhando ser polícia. Daí, começou a brincar com um cobertor acinzentado, que ganhou numa campanha da gente boa de grupo espírita.
Bastava a mãe chegar bêbada em casa para Preto sumir debaixo do pano “mágico”. Lá, ficava por horas sem sono. Às vezes, por madrugadas inteiras. Quando Micael decidia bater na Joaquina, então, é que Preto desaparecia para valer. Nessas ocasiões, o sono não vinha de jeito nenhum e o menino, que sonhava ser homem fardado, virava a noite aos soluços de choro contido. Não chorava alto porque da vez que não segurou foi tratado aos bicudões pelo padrasto marginal. “Cala a boca, desgraça pelada! Fecha essa matraca, inferno!” Os maus tratos duraram meses, até que, no dia em que completou 8 anos, sem parabéns, M.L. decidiu passar a mão na manta protetora e deixar o barraco da mãe. Beijou os três irmãos mais novos, adormecidos, fitou-os por um tempo e desceu para o asfalto antes de amanhecer.
Andou horas por larga avenida, que dava no centro da cidade, e foi parar debaixo de viaduto. Naquele dia não dormiu. Fez amizade apenas: Bagrão, catador de latinhas, vindo do Leste de Minas para ganhar a vida em Belo Horizonte. “Vivo na rua porque quero, moleque. Tenho um casão na minha cidade. Mas não volto pra lá”. Delírio. Bagrão já teve um casão em Governador Valadares. Isso há mais de duas décadas. Endividado, perdeu tudo para os bancos e para a ex-mulher desonesta. Aos 50 anos, o artista plástico mais parecia 70, com longos cabelos e barba prateados. Magro de espantar, Bagrão, levantava dinheiro com as latinhas apenas para a comida e o cigarro. Preto andou semana ao lado do moço. Bagrão falava sozinho e começou a assombrar Preto com ideias de perseguição e morte.
Não demorou para M.L. encontrar três novos amigos na noite, em Praça da Avenida Afonso Pena. “Senta aí, sô! Tô falando, véi! Senta!”, disse o mais baixinho, Samuel, que meteu a mão no cobertor e foi logo dizendo: “Perdeu, pivete!”. Preto se levantou com um leão e distribui pernada. O maior, chamado Zico, deu voz de comando e acabou com a briga. “Aqui, nóis é tudo igual, menor!” Por fim, dividiram pacote de biscoito e rasgaram a coberta em quatro pedaços. Preto contou ao grupo a história do cobertor, agora em pedaços “mágicos”. Os três garotos riram até. Madrugada fria. Preto, invisível, sob a manta mágica, acordou às pancadas de quatro brutamontes fardados. Foi quando descobriu que garotos invisíveis também apanham da polícia.
Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 17/10/11
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