Doutor G. sempre foi muitíssimo respeitado. Casou-se com moça de família tradicional de Minas Gerais. “Juntaram-se ali duas grandes forças econômicas e morais”, escreveu o velho colunista, cheio de autoridade entre os mais endinheirados do país. G. e sua mulher tiveram dois filhos que ajudaram a construir Belo Horizonte. Teve vida badalada entre gente de diversos segmentos da cidade. Ninguém jamais imaginou que o empresário, aos 73 anos, teria fim tão solitário. No velório de cemitério chique, apenas o motorista, camarada de décadas de cumplicidade, a velar o sujeito. Mulher, irmãos, filhos e netos não compareceram. Cleonice, a viúva, bem que pensou ir. Mas, acamada, não podia deixar o repouso depois de acidente vascular cerebral.
Miguel, o motorista, foi quem cuidou do funeral, com recursos vindos do filho mais velho do falecido. “Faça o que tem que ser feito. Depois, manda queimar tudo. Tudo. As cinzas espalhe pelos bueiros do Arrudas. Do Arrudas, está me entendendo? E faça-me o favor: suma do mapa. Suma!”. Matias era o mais revoltado com o pai. “Ele não tinha o direito! Não tinha”, esbravejou logo que tomou conhecimento do escândalo de amor secreto. O motorista gastou cada centavo dos R$ 5 mil dispensados ao corpo de G. Ainda pagou do próprio bolso a única coroa de flores no lugar. “Descanse em paz, companheiro”, assinado: Miguel. Nem os mais curiosos do salão vizinho compareceram para ver o defunto. Nem padre, nem pastor, nem pai de santo, ninguém. Foi Miguel, sem parentes ou amigos, o único a rezar pela alma de G.
Na família numerosa, não havia quem tivesse coragem de tocar no assunto. Doutor G. estava para desaparecer simplesmente. Os 110 imóveis – espalhados pelos bairros mais nobres de BH – mais a fortuna em ações e fundos de investimentos, herdados do doutor morto, não foram suficientes para diminuir o desgosto da revelação. Já Miguel, silencioso, agradecia cada minuto que teve ao lado de G. O velho não imaginava tanto desafeto. Nem quando enfrentou o pai, político de carreira suja em Brasília, foi alvo de tamanha revolta entre os seus. Tampouco quando contrariou os interesses do governador bonachão, que o perseguiu por anos, o céu esteve tão fechado para a sua alma.
O tempo de voltar ao pó se aproxima. Dois funcionários do cemitério avisam ao motorista: “Dez minutos, senhor”. Miguel, de pé, de mãos dadas consigo mesmo, faz a última prece pela alma do amigo. Retira do paletó o lenço em cores e o coloca junto ao peito de G. Suspira profundezas e beija a testa do morto. Tampa ele mesmo o caixão e autoriza a ação. Lágrima num olho só. Dois dias depois, de posse das cinzas de G., Miguel se muda para o interior do Rio de Janeiro. Casinha de praia, secreta, único bem em seu nome. Lá, o motorista espalhou os restos de G. sob o amarelo das acácias.
Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 31/10/11
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