Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Que tal um "Kit Educação"?


Não dá para virar as costas para a onda de violência que esculacha as escolas de todo o país. Nem é necessário ser caçador de notícias, leitor assíduo de jornais e sites jornalísticos das grandes redes de comunicação, para ficar sabendo da falta de respeito por parte de alguns alunos das redes públicas e particulares de ensino. Está na boca do povo. Em Belo Horizonte e Região Metropolitana são muitos os casos de violência contra educadores.

Na semana passada, em Contagem, imagem de adolescente de 15 anos, agredindo diretora com chute, estarreceu o Brasil. O que se viu, segundo quem convive com o drama da falta de educação nas escolas, é pouco perto do que se vê diariamente. São muitas as reclamações de amigos professores que já não sabem mais o que fazer para lidar com a situação. "Ano passado, teve até um professor assassinado por um aluno numa escola de bacana, próxima à Praça da Liberdade", relembrou Adelson, domingo, durante o aniversário do Pedrão.

A turma, apesar do clima de festa pelos 50 anos do amigo boa praça, tirou um tempinho para debater assunto sério, pelo futuro de nossos filhos e, também, dos filhos de nossos filhos. "Educação é coisa séria. Não dá para tratar o assunto como vemos por aí. Sou de uma época em que os professores eram tratados como mestres. Havia um regime de disciplina exemplar. Na minha classe, lembro-me bem, ai de quem desse um pio em sala de aula enquanto nosso mestre passava a lição no quadro. A gente até tinha que levantar a mão para pedir permissão para falar", relembra o aniversariante, ex-aluno da Escola Municipal Santos Dumont, em Santa Efigênia.

Com a Sueli, que estudou no Marconi, não era diferente: "Até nosso uniforme tinha que estar sempre limpinho e bem passado. Na época, não entendia. Hoje, vejo claramente que o uniforme alinhado era apenas reflexo da boa postura que todo aluno devia manter", comenta a boa companheira de batente.

Problemas de indisciplina sempre existiram, é verdade. Mas eram casos isolados, resolvidos, quase sempre, com uma advertência simples. Quando muito, em caso extremo, uma suspensão bastava para que o baderneiro tomasse jeito de gente correta, de juízo. No nosso grupo, entre os 15 com mais de 35 anos, ninguém testemunhou expulsões ou situações de desentendimento grave, envolvendo alunos e educadores. Os tempos eram outros.

A educação na escola era a extensão da boa educação recebida em casa e vice-versa. Lembro-me, quando criança, das boas lições do velho Botelho. Numa ocasião, no jardim, ganhei uma caixa pequena de lápis de cor de uma coleguinha. Quando cheguei em casa, feliz da vida com o presente, meu pai viu a caixinha e ficou uma fera.

Pensou que eu a tivesse roubado. Nem Jesus para fazer o velho Botelho acreditar que era um agrado da Camila. O coroa linha dura só sossegou no dia seguinte, ao ouvir o sorriso da mãe da bela confirmando o mimo. Ainda ganhei um carinho da dona Edna. Tem coisas que a gente não esquece na vida.

País sem educação não tem futuro. Alguém tem dúvidas disso? Está passando da hora de discutirmos com mais seriedade a questão da falta de limites por parte de nossas crianças. Em Brasília, falam em kit isso, kit aquilo. Que tal, senhores, um kit Educação?

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 31/8/11

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Bob Boca de Aço


O pequeno Bob, de 5 anos, provocou reboliço em Iaras, cidade do interior de São Paulo, quando foi intimado a depor na Seccional Sul, especializada em crimes da pesada. Bob é acusado de ter mordido a mão da professora Mary, que obteve licença médica e foi buscar paz em praia do Guarujá. Ela não quis falar com a imprensa. Os moradores do conjunto habitacional da Rua Mike Tyson, esquina com Evander Holyfield, onde vive Bob Boca de Aço, também se recusam a comentar o ocorrido. O acusado chegou a delegacia acompanhado da mãe, Sally, bailarina. “Mãe, pode deixar que resolvo essa parada”, disse Bob, diante do mal-encarado agente Big Dog, um armário de dois metros, braço direito da chefia. “Ok, filho. Qualquer coisa, mamãe está aqui”, disse a bela mulher, sentada na antessala do departamento de polícia.

Big Dog e Boca de Aço seguiram lado a lado até a sala do delegado. O pequeninho batia pouco acima dos joelhos do gigante. Juntos, cruzaram corredor sombrio entre celas abarrotadas de bandidos de todos os tipos. Bob e seus olhinhos esverdeados tremeram na base, mas não deixaram transparecer. “Ufa”, suspirou o pirralho, aliviado, ao vencer o trajeto. Big Dog segurou a vontade de rir. O delegado Aranha, homem de regras e jogo duro, estava a esperar. Com seu idefectível bigodinho paulista, puxou o interrogatório:

– Então, é o senhor o famoso Bob Boca de Aço!?
– Bob. Só Bob. Boca de Aço é apelido.
– Apelido? Por que?
– Por causa dos meu dente. Olha só…
– Deixe-me ver… hum… mas só tem quatro.
– Tô trocando. Minha mãe disse que vai nascer mais.
– Entendo... Bebe alguma coisa? Um toddy?
– Não, obrigado! Minha mãe meu deu um yakult. Quer?
– Tem mais aí no bolso?
– Tenho. O senhor pode querer. Tenho dois.
– Então, vou experimentar. Posso?
– Pode. O senhor é legal.
– Obrigado. Bob… a professora Mary disse que você não foi legal com ela.
– Foi sem querer. Tem que beber de uma vez… assim… Não é bom?
– Muito bom. Mas ela ficou com quatro marquinhas na mão… seus dentes?
– Ela entrou na frente. Era o Billy quem eu queria morder. O senhor gosta dos Smurfs?
– Smurfs? Billy é seu amigo?
– Era. A gente tá brigado. É. Os Smurfs. Minha mãe vai me levar no cinema agora.
– Legal. Por que você e Billy estavam brigando, Bob?
– Esqueci. Se o senhor quiser, pode ir com a gente.

Já era tarde. Aranha liberou Bob sem demora para que ele não perdesse o filme. Sally sorriu ao ver o filho, feliz, voltar no colo do homem da lei. “Cuide bem do Boca de Aço aqui, senhora!”, disse o delegado.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 29/8/11

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

A árvore da vida


Tenho um nó na cabeça, desde que fui levado pela Violeta para ver um filme muito curioso. O mais intrigante que já vi em toda a minha vida. Desde então, não penso em outra coisa. Caramba! O filme é cabeça demais. Seu realizador, um tal Terrence Malick, é doido além da conta. É admirável a sua visão da existência.

Vimos muita gente deixar o cinema. De fato, não é obra fácil de suportar. Tem ritmo e jogo de imagens muito particulares, daqueles que só os filmes de arte conseguem imprimir. O Adelson vive me zoando: “Você, Josiel, é meio metido a besta. Perde tempo demais com coisa que não é do nosso mundo”. Sinceramente, Adelson, você ainda não me convenceu de nada, de nenhum assunto, sobre o qual conversamos, que não seja do nosso mundo.

Tudo, amigo, absolutamente tudo pertence ao nosso mundo. Para nós, seres pensantes, não há questão que nos proíba a opinião. Alguns passam a vida a filosofar nos botecos. Eu, você sabe, gosto de me embebedar de cinema. E esse “A árvore da Vida” me chapou o melão. Trata-se de uma reflexão teológica e filosófica sobre a existência.

A relação do homem com o pai, com a natureza, com o Criador. A origem davida e seus efeitos, num poema imagético musicado por temas clássicos. O movimento das câmeras e o tratamento das imagens são diferenciais que provocam estranhamento aos que curtem apenas as fitas mais comuns. Um jovem acompanhado por grupo de amigos, não escondeu sua insatisfação com o filme e saiu da sala dizendo: “Sei lá, véi. É artístico demais. Não gostei”.

Há muito tempo ainda, moço, para gostar do que pode parecer estranho. Caro leitor, companheiro fiel de Bandeira Dois, se há uma coisa que a idade traz é a tolerância com o desconhecido. Disso, não tenho dúvidas. O mais incrível é que o filme parece ter sido feito para as minhas convicções mais íntimas e mais sagradas. Na minha cabeça, ainda que miúda, Deus e natureza se confundem na força criadora de todas as coisas.

Nascimento e morte, para mim, são duas partes de um único sistema. O que nos faz crer que nossa vida tem mais valor do que a vida de outro ser vivo qualquer? Luz e sombra, água e fogo, o sim e o não, o céu e a terra. Tudo, acredito, tem a sua razão de ser. O grande desafio é saber lidar com tudo o que se opõe ao que estamos dispostos a acreditar. Recuso-me a fazer render o assunto da religião no mundo com toda a ignorância, com toda a cegueira, que o tema produz.

Em “A árvore da Vida”, na minha mínima compreensão, o sagrado está na força da vida, não no que determinam e fazem regras os homens. Violeta e eu deixamos o cinema com a cabeça nos dois caminhos apresentados por Terrence Malick, Brad Pitt, Sean Penn, Jessica Chastain e companhia: o da graça e o da natureza. O da graça é o caminho de Jó, o da fé inabalável.

Tudo e qualquer coisa como uma bênção do Criador. Já a natureza, contra a qual é inútil revoltar-se, é o rumo do entendimento de que tudo o que ela produz é para alimentar a si mesma. Todas as nossas boas e más ações fazem parte elementar e têm efeito no movimento do universo. Uma viagem no abismo do infinito? É possível. Contudo, uma única certeza: pensar é a diferença que nos resta. Pensemos, então!

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 24/8/11

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

A viagem da mãe morta


Aconteceu de a mãe do Kiko morrer com ele em cana por crime besta. Por absoluta falta de juízo e má influência, o trocador desempregado topou parada errada e invadiu casa de bacana em condomínio de afortunados. Azar de principiante, Kiko e seus comparsas foram escolher logo a residência de casal de empresários com relações muito estreitas na polícia. Não podia terminar diferente. Dias depois do assalto: cadeia. O bando ainda nem havia repartido o “lucro” quando foi grampeado.

A mãe do Kiko, dona Jandira, não se conformou com a notícia: “Meu filho! Não! Não é possível”, chorou tristíssima, no interior, ao saber da má conduta do rebento. Por ocasião da condenação, em Belo Horizonte, a artesã estava presente. Viu quando seu moleque, de 23 anos, cabisbaixo, chorou de vergonha e arrependimento. “A vida é dura, dona Jandira. Quem anda errado, mais cedo ou mais tarde, aqui ou do lado de lá, acaba acertando suas contas. Seu menino em breve vai voltar pra casa. Isso vai fazer bem pra ele, a senhora vai ver. Agora, ele vai ter tempo de pensar na vida”, disse o Assis, advogado parente, homem de regras, verdades e de poucas concessões.

No Vale do Jequitinhonha, com o coração partido, Jandira seguia a moldar suas bonecas de barro. Mesmo a quase mil quilômetros de distância, não deixava de visitar o filho uma vez por mês, sempre no domingo. Na primeira visita, segurou as lágrimas ao ver o moço de cabeça raspada, muito mais magro e sem um dos dentes da frente:

– O que fizeram com você, meu filho?
– Nada, mãe. É muito calor aqui. Cortei o cabelo pra dar menos trabalho.
– E sua boca? Tá machucada...
– Cai. Foi nada não. Escorreguei no pátio.

Aquilo ficou guardado com dona Jandira, que prometeu ao filho, no primeiro domingo de cada mês, ao menos, trazer-lhe um pouco de companhia. E assim, juntaram-se meses até que, de tristeza, talvez, quis o coração da mãe parar de bater à véspera do domingo de agosto. O parente advogado, vizinho, tudo fez para conseguir a liberação do Kiko para velar a mãe. Não conseguiu. Então, em respeito à vontade de dona Jandira, o bom Assis levou ele mesmo o caixão até o presídio. Lá, Kiko teve os 15 minutos mais sofridos de toda a sua vida para se desculpar com a mãe morta.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 22/8/11

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

No rastro dos garotos sem juízo


Sou homem do volante e posso dizer de carteira: há um prazer fora de comum no mundo das rodas. Basta dizer que, para os homens, são os carrinhos, ao lado da bola, os brinquedos mais populares desde os tempos de berço. Os meses se somam aos anos e, na maioria das vezes, os efeitos dos automóveis de mentira ganham raízes para toda a vida. O Wanderley, companheiro de praça, cinquentão, que o diga: desde moleque cuida de coleção de centenas de miniaturas de carrinhos de todos os modelos, cores e tamanhos. Há muito tempo quero escrever sobre a paixão do homem pelos carros, mas outros assuntos mais urgentes vivem a ocupar-me as linhas. No último domingo, Dia dos Pais, depois de conversa em família com amigo policial sobre duas Ferraris apreendidas pela Receita Federal, decidi dedicar folha de papel pautado ao tema.

Meu amigo, primo, que aqui vamos chamar Mustafá, está no rastro de alguns garotos ricos que andam pintando e bordando nas noites, em alta velocidade, por avenidas de Belo Horizonte. Especialmente, na Nossa Senhora do Carmo, sentido Belvedere. Sei bem do que ele disse. Eu mesmo, nas últimas semanas, já fui cortado várias vezes por carrões importados em altíssimas velocidades ali, nas proximidades do Bairro Sion. Mustafá disse que não vai sossegar enquanto não ajudar a enquadrar essa garotada irresponsável que desrespeita as leis de trânsito, colocando em risco a vida dos outros. “Quer correr? Vai ser profissional nas pistas próprias para isso. O país está mesmo precisando de bons pilotos. Mas nas estradas e vias urbanas é que não dá para ser”, disse inflamado o Mustafá, homem das leis e das boas regras.

A conversa foi tema do dia porque todos na casa do pai do Mustafá estavam encucados com o mistério das duas Ferraris clonadas, de documento único, que estavam circulando em Belo Horizonte. “Tenho certeza, Josiel, de que não são de um único dono. O documento é um só, mas um bacana clonou outro bacana, pode estar certo. Você não é capaz de imaginar o que esse povo cheio da nota, que não tem mais onde colocar dinheiro, é capaz de fazer para ter um carrão desse. É como um vício para muita gente. Eles disputam entre eles quem é capaz de ter mais ou de fazer a maior loucura. Mania da gente rica, maluca por superesportivos. Vai além da nossa imaginação. Isso está muito distante do nosso mundo, pobres mortais que somos. Sei como este povo é porque já tive oportunidade de conversar com alguns. São inacreditáveis. É assunto sem fim para a Receita Federal”, afirmou o experiente homem da lei.

A conversa rendeu e o que pareceu comum à toda família presente é que gostar de carro não é problema nenhum. Todos os homens presentes – 14 pais e filhos – são grandes apreciadores de carros. O Wanderley, por exemplo, tem 27 Ferraris muito bem cuidadas na palma da mão. A questão é a ilegalidade. E o mais grave: os malucos e imprudentes playboys que pisam fundo no acelerador, transformando suas máquinas em armas letais em potencial. Para o Mustafá, investigador desde 1990, gente assim é tão criminosa quanto qualquer outro condenado a ver o sol nascer quadrado. “Lugar de bandido, pobre ou rico, é na cadeia. Tem que ser assim. Mas neste país, o que se vê, na maioria dos casos, é a impunidade”, indigna-se o bom policial. Está certo o Mustafá. Carro mata. Não é brinquedo. Só a bela coleção do Wanderley.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 17/8/11

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

A menina e o pivete


Nágila nasceu mesmo para fazer diferença no mundo da pouca novidade no plano da pessoa. Moça boa estava ali, a pensar na vida, pelas bandas de canteiro de obras no cruzamento das avenidas Cristovão Colombo e Getúlio Vargas. Já era fim de tarde de poeira baixa em sábado de movimento sem graça. A menina tinha acabado de levar fora do namorado ciumento por bobagem besta, dessas comuns aos que beiram os vinte e poucos anos de idade. “Você dá mole demais. Aí os caras caem matando. Não gosto de mulher estrambótica. Me dá o capacete! Fui!”, disse o mané, mordido com o sucesso que a moça fazia por onde quer que passasse. Nem olhou para trás e picou a mula, de motoca, sentido Nossa Senhora do Carmo acima, rumo o Bairro Santa Lúcia. “Estrambótica?”, perguntava-se, triste, enquanto o garoto mimado se ia.

“Estrambótica?”. Sem condução, Nágila desceu Cristovão Colombo a pé, com o pensamento nas grimpas, chateada com o panguá. Afinal, gostava do sujeito de verdade. Não era para menos: primeiro namorado sério, depois de cinco anos de rolo doído, à distância, com americano que conheceu em intercâmbio. “Estrambótica?”, continuava a pensar alto. Enquanto caminhava a esmo, a garota catou o celular amarelo na bolsa para pesquisar dicionário no aparelho. Lá, encontrou o significado da palavrinha que tanto lhe martelava. Na ponta dos dedos matou o enigma: “Extravagante, fora do comum, singular”. Sorriu, já que não era algo tão ruim assim de ser. No fundo, a balconista de loja chique do shopping até sabia que, de fato, de comum não tinha nada.

Já nem pensava no fulano da moto, quando deu de cara com pivetão mal-encarado, com a mão por baixo da camisa furada: “Perdeu, tia! Passa o celular! Rápido! Senão, dou um tiro! Um tiro!”, ameaçou. Nágila não perdeu calma, controle nem simpatia: “Sem nenhum problema! Tome. Olhe, é seu. Pode ficar. Mas, será que você, caso não se importe, é claro, não poderia me dar o meu chip? É que os números dos telefones de todos os meus familiares e amigos estão nesse chip. Será que você poderia fazer isso pra mim? Please, please!”, sorriu sorriso lindo, estrambótico, para o pivetão, que, certamente, não estava acostumado a ser recebido com tanta cordialidade e educação. O “please”, então, com aquele inglês impecável, charmoso, da Nágila bateu no fundo da consciência do moleque, que já se preparava para dar no pé com o aparelho malocado. O pivetão encarou fundo a vítima e mandou papo num diálogo reto:

– Ô tia… Tome o celular. Pode ficar. Você me desculpa, viu!?
– Não. De jeito nenhum. Ele agora é seu. Eu só quero o chip, se você não se importar, tá!?
– Não, tia. É sério, sô. Quero mais ele não. Tô até com vergonha porque você é muito legal.
– Você é que está sendo legal me dando o chip. Aqui, só um minuto… já tô quase conseguindo.
– Não precisa mais não, Tia. É sério!
– Pronto! Você não está me roubando. Estou dando ele pra você. Tome. Vai com Deus!

O moleque chegou em casa no aglomerado da Serra e olhou diferente para os cinco irmãos pequenos e para a mãe barriguda ao fogão. Lembrou a bela e boa Nágila e prometeu com o sussurro da alma estudar e trabalhar para vencer na vida. O celular amarelo guardou como recordação do dia em que aprendeu a ser gente.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 15/8/11

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Bombeiros: heróis do Brasil


Fui ao cinema ver Capitão América. Não podia deixar de assistir ao meu herói preferido dos quadrinhos em grande produção. Não sei bem o porquê da predileção, talvez pelo super escudo que sempre me impressionou pra burro. Incrível aquele escudo, não!? Parece um bumerangue mágico protetor. Era menino em Santa Efigênia, quando ficava no quintal brincando com o tampão da lata de lixo. Meu pai, um dia, vendo aquilo, ficou tão sensibilizado que me deu uma fantasia, com escudo e tudo. E isso fora de época. Não era Natal, meu aniversário nem Dia das Crianças. Na época, o Brasil ainda vivia sufocado pelo regime militar. Disso, fui saber depois. A famigerada ditadura fazia e acontecia lá fora e eu, em casa, guri, enfrentando vassouras, mesas e cadeiras. Anos mais tarde, fui entender porque o velho Botelho tinha tanto pavor das forças armadas.

A gente cresce e a cabeça da gente ganha novas ideias. Pouco mais crescido, fiquei pensando porque o Brasil também não tinha o seu Capitão América – já que os capitães de futebol nunca foram grandes heróis para os que me são caros. Hoje, então, menos ainda, com essa dinheirama que corre solta no mundo da bola. Mas isso é outra conversa. O fato é que a história de super-herói fazia a minha cabeça e isso durou ainda algum tempo. A pergunta continuava: onde estavam os super-heróis brasileiros? O velho Botelho, pai sempre muito atento, decidiu dar uma força e me levou para conhecer o batalhão do Corpo de Bombeiros. Foi uma emoção muito grande, aos 12 anos, conhecer o caminhão da corporação. Ali, para mim, naquela tarde, conheci heróis de verdade. Aí, saí de lá com plena convicção de que se no Brasil houvesse um Capitão América, ele, certamente, seria do Corpo de Bombeiros.

Toda esse hitória, resgatada na memória, voltou a me pulular os pensamentos depois de assistir ao novo Capitão América. Confesso que esperava bem mais do filme. Chega a ser bobo em muitos momentos – ou será reflexo da minha alma adulta envelhecida? Vai saber. No entanto, serviu-me especialmente para reviver os tempos de criança. A questão do patriotismo carregado que há no filme nem me incomoda. Natural. Em plena Segunda Guerra, não seria diferente para os americanos. Já a maioria dos brasileiros não sabe ser patriota e sabemos bem disso. Inacreditável que nossa bandeira e nossas cores tenham mais força apenas por meio dos esportes. Aqui, “Orgulho de ser brasileiro” é coisa da publicidade. Triste isso.

Violeta tem razão quando diz que o Capitão América do Brasil é o Capitão Nascimento. E isso fica ainda mais evidente no filme Tropa de Elite 2. O país precisa mesmo de um herói como o personagem da ficção do cineasta José Padilha. Para a bela e letrada Violeta, herói por essas bandas só mesmo um sujeito de coragem, honesto, que vai à luta para combater toda essa podridão que faz uso indevido de dinheiro público e faz piada o pobre trabalhador brasileiro. Por enquanto, caro leitor, só na ficção. Contudo, sigo na fé. Desculpe-me, Violeta, mas para mim, os heróis brasileiros continuam sendo os bombeiros de Minas, que, este mês, festejam seu centenário.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 10/8/11

terça-feira, 9 de agosto de 2011

O tempo das flores

Desde que Antúrio e Margarida tiveram a menina Rosa, os tempos são outros no Bairro Bom Jardim. O casal de funcionários públicos, velhos namorados, foram escolhidos pelo Criador para trilha diferenciada, voltada apenas para o que tem valor no mundo das recompensas. Diferentemente daqueles que podem viver os pecados tão comuns à existência, Antúrio e Margarida têm olhos e intenções voltados para a qualidade de vida da filha Rosa. Rosinha é portadora de doença rara. Uma criança entre centenas de milhares nasce assim, com problema neuromuscular que a impede os movimentos.

De início, lá no fim dos anos 1980, o primeiro encontro de Antúrio e Margarida já anunciava caminho diferente. Foi amor à primeira vista, com poesia e cenário de novela. Em Copacabana, durante o verão. Os pais de Margarida, filhos de cariocas, sempre gostaram muito de visitar a família no Rio de Janeiro. Já Antúrio, mineiro de Poços de Caldas, no Sul de Minas, estava na cidade pela primeira vez. Participava de um grupo em excursão, reunido pelo grêmio do Estadual Central, onde estudava em Belo Horizonte.

Margarida, sentada na pedra, estava a escrever poemas, quando o moço de mesma idade, 18, desgarrado da turma, hipnotizado pelo mar, pensou alto: “Que bonito isso!”. Antúrio não conhecia o mar. Também, timidíssimo, jamais havia namorado na vida. Participou de beijo único numa colega de sala certa vez. “Um desastre”, segundo ele. Nada mais. Ali, diante de toda aquela água bela, o formando do ensino médio – na época chamado segundo grau –, de olhos bem fechados e braços abertos, se encantou com o sopro salgado do vento. Margarida, que, até então, não havia sido notada, também pensou alto: “Bonito isso”. Dali, mais tarde, escreveu: “O menino e o mar”.

Na ocasião, foi ela a puxar assunto: “Você é de Minas?”. Ele respondeu que sim. “Sabia. Toda vez que vejo um garoto imitando o Cristo, de braços abertos, aqui na pedra, penso: “Só pode ser mineiro”. Risos. Falante, Margarida ganhou ali o coração do garoto tímido. Contou-lhe que também morava em Belo Horizonte e que estava na casa dos avós. Trocaram telefones e boas impressões. Não passou mês para que firmassem namoro. O casamento veio oito anos passados, depois de encaminhados no trabalho: ele advogado, ela economista.

A pequena Rosa nasceu em 2001. Com a doença rara da pequeninha, o amor que ambos tinham era muito e aumentou. “Infelizmente, ela não deve completar um ano de vida”, disse o médico, na lata. Em oração, os dois conversaram com Deus e pediram força. Antúrio e Margarida decidiram, então, fazer relógio de flores no quintal da casa, construída no Bairro Bom Jardim, em homenagem a filha. Lá, para a família, as horas passam no tempo das flores. Rosinha vai muito bem, com 10 anos e feliz com o futuro.P.S. Para Leonardo, Márcia e Aninha, aqui, ficam votos de muita força, saúde e alegria.

P.S. Para Leonardo, Márcia e Aninha, aqui, ficam votos de muita força, saúde e alegria

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 8/8/11


sábado, 6 de agosto de 2011

De Aninha, a lição de vida


Estão no coração os segredos da vontade inabalável de viver da menina Ana Luisa Vieira Santos Moreira, de 10 anos. Portadora de atrofia muscular espinhal (AME) – diagnosticada quando era bebê –, Aninha emocionou cerca de 200 profissionais de saúde em palco do Ouro Minas Palace Hotel, na tarde de ontem. Difícil não se tocar com o depoimento da mocinha, participante de um painel com nome rebuscado: “O outro lado da moeda: vivência de uma criança usuária de ventilação não invasiva”. A pequena cadeirante precisou apenas dos olhos e da voz ao microfone para sensibilizar organizadores e integrantes da V Jornada de Pneumologia e Alergia Pediátrica, promovida pelos hospitais João Paulo II e Felício Rocho.

Bastaram 15 minutos de fala para que a palestrante arrebatasse a atenção do médico Miguel Ramalho, de Portugal, que do palco a convidou, sem pestanejar, para encontro internacional. Tão representativa e arrebatadora a performance, que em 2014 Aninha vai a Barcelona com a família para voltar a falar sobre sua trilha de superação e esperança. A relação da estudante e blogueira com o futuro é bastante particular. Pequeninha, aos 6 meses de idade, seguramente sem entender quase nada sobre caminhos, teve o prognóstico sombrio de que não completaria um ano de vida. O pai, naturalmente, se revoltou: “Deus, você brigou comigo?”, relembra o advogado Leonardo Drumond ao descrever sua primeira reação. Dez anos passados, com o sorriso aberto, conclui: “Foi no primeiro momento, somente. Depois, o sentimento foi de batalha, de luta, para dar qualidade de vida para a minha filha. De fazer o melhor possível para ela”.

A mãe, Márcia Vieira, também teve conversa séria com o “criador” quando recebeu a notícia: “Deus, é esta a minha missão? É isso mesmo? Então, vou fazer o melhor. Mas você vai ter que me ajudar!”, pediu ao “pai”. E Ele, segundo a economista, não a desamparou por um momento sequer. “Ele não só tem me ajudado, como tem me carregado no colo”

Futuro

Não faltam razões para que Márcia esteja realmente feliz com o amigo lá de cima, senhor de todos os céus. A filha está bem e tem determinação admirável: “No futuro, pretendo ser grande cientista”, disse Aninha, durante a apresentação cuja espontaneidade infantil contrastava com a exibição de conteúdos em programa de computador. Com força e convicção, proferiu para todo mundo ouvir: “Não deixo de ser feliz”. Arrancou risos até dos chorões da plateia quando falou que não gosta de ser vista com olhos de peixe morto. Nem de parecer “extraterrestre” ao outro. Criticou o preconceito. Para a mãe, fiel escudeira: “Somos iguais. De forma diferente”.

“É uma menina fantástica, com uma força muito grande. Ela é o ponto alto do evento”, afirmou o médico Wilson Rocha, especialista em pneumologia pediátrica, coordenador de serviços do Hospital Infantil João Paulo II. “Você já viu o blog dela?”, perguntou a mãe. Desde o final de junho, Aninha empresta suas ideias ao blog O jardim secreto da Aninha (http://blog.educacional.com.br/flordeaninha/)”. Lá, solo virtual ilustrado por coraçõezinhos, flores e crianças cadeirantes, a estudante da 5ª série do Instituto Metodista Izabela Hendrix, fã de Justin Bieber, faz da internet ferramenta para celebrar a vida, contar as piadas prediletas e compor poemas.

Os amigos não desperdiçam a oportunidade de fazer do site lugar para contato e mensagens de força. Entre tantos comentários de carinho está o de Ione de H. Botelho: “Aninha, adorei seu blog, as flores encantam nossos olhos e alegram o mundo, mantenha seu olhar para o lado bonito do mundo e se deixe encantar, aprecie as obras do artista Monet, seus jardins são encantadores como o seu. Beijos”. Nesta semana, o seguidor João Basílio compareceu: “Aninha, adorei conhecer o seu blog, foi seu pai quem me mostrou. Acho que agora descobri qual é o jardim mais bonito que existe: é o coração de uma criança”.

Gerais - Jefferson da Fonseca Coutinho - 6/8/11

(Fotografia: Juarez Rodrigues)

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Antes da justiça, a morte


Data venia, até que se podia imaginar a costureira Laureci Gonçalves de Oliveira, de 52 anos, dar seu último suspiro num tribunal de Justiça. Batalhadora desde menina, findar seus dias por causa trabalhista diante de uma juíza. Não pelo dinheiro, apenas, mas para dialogar direitos de mais de década trabalhada em confecção de Minas Gerais. Em estado terminal, acometida por câncer no pulmão e complicações cardiovasculares e cerebrais, Laureci compareceu bem cedo à 19ª vara, em Belo Horizonte. Na quarta-feira, antes das 9h, era importante o esforço, já que era dia de alta – afinal, não estava no Hospital Luxemburgo nem no Mário Penna, onde vivia em tratamento de tempos em tempos. Assim, ficaria desobrigada de presença no futuro.

Em cadeira de rodas, na companhia dos irmãos Epaminondas e Rosângela, com o sopro que lhe restava, a profissional de corte e costura aguardou com calma a audiência, antecipada em duas semanas, visto a urgência de sua condição de saúde. “Conseguimos antecipar do dia 18 para o dia 3 de agosto. Infelizmente, não deu tempo”, disse o advogado Fernando José de Oliveira.

A juíza e seus colaboradores, é importante dizer – há muitas testemunhas –, tudo fizeram para poupar mais esforço por parte da reclamante. Como os 15 dias já pareciam não bastar, tamanha fragilidade física da doente, era preciso puxar a fração da hora. “Diante disso, foi informado que a audiência seria realizada tão logo fossem comunicadas as presenças necessárias”, diz a ata. O documento oficial registrou também: “Às 9h30, o advogado da reclamante informou ter se comunicado com a reclamada, a qual lhe disse não ter recebido a notificação pelo fato de ter havido equívoco na indicação do número de seu apartamento”. Acontece.

A juíza, sensibilizada, quis ajudar. Mobilizou assistentes para tratar a particularidade, o inusitado. Era preciso correr contra o tempo: o susto, o mal-estar, e, rapidamente, Laureci precisando de amparo médico. Tudo indicava que a costureira não encararia mais a outra parte, para quem trabalhara, ausente pelos tropeços tão comuns no plano das correspondências jurídicas.

Socorro

Os cuidados dos funcionários do tribunal impressionaram bastante o advogado de Laureci, veterano, de 71: “O pessoal da secretaria foi de uma presteza admirável”. O drama da família, ali, e o assombro anunciado da perda iminente marcaram sobremaneira o doutor Fernando. O Samu foi chamado às pressas para socorrer a costureira. Corre-corre e movimentação de toda a boa gente de alma e coração no edifício do Bairro Barro Preto, na Região Centro-Sul da capital. A equipe médica também foi acionada. Alessandra, secretária de audiência, socorrista, fez respiração boca a boca e massagens no peito da mulher. O casal de irmãos, doído, nada mais podia fazer no vazio do abraço partido.

“Minutos depois, os profissionais médicos deram por encerradas as tentativas de reanimação, concluindo pela morte da paciente. Sensibilizados, foram suspensos os trabalhos da secretaria. Registra-se a total assistência dos funcionários desta secretaria”, diz o documento. Minuto de silêncio. Processo suspenso até que novo representante legal seja nomeado para levar o assunto adiante. Por telefone, voz miúda, exausta por dois dias em claro por conta de velório e sepultamento, Epaminondas quer saber para que a entrevista. “Um registro.” O comerciante decide ceder, então, um minuto a mais de sono perdido: “Laureci era dinâmica e trabalhadora. Muito justa. Gostava sempre de ponderar, de estar atenta ao que é certo e o que é errado. Deixa amizades sérias e verdadeiras”.

Laureci se foi, sem deixar filhos. Descansa agora, no Cemitério da Paz. Para a família, diminuída, aparada pelas costuras do destino, fica a saudade, que começou a apertar cedo, antes mesmo da hora de partir. Para o tribunal, ainda que com os seus bons juízes, assistentes e socorristas, apenas mais um processo à espera de justiça.

Gerais - Jefferson da Fonseca Coutinho - 5/8/11

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Ainda sobre a Amy Winehouse


A imprensa internacional também espinafrou o tal impostor, duramente criticado em nosso quintal na semana passada. Chamou de mau gosto e indelicada a postura do sujeito, pseudo-humorista, que invandiu o funeral da menina morta. Por essas bandas, terras de Minas, a repercussão foi grande. Bem maior do que muitos podiam imaginar. Foram muitos os e-mails de leitores que entenderam total desrespeito e “triste fim do humor brasileiro” – disse Maria Helena Borges, professora em Uberlândia – a falta de criatividade desses programecos da tevê aberta.

O Luís Henrique, comerciante em Valadares, desabafou: “Você disse bem, Josiel, ao relembrar Mazaropi e Grande Otelo, na minha opinião os melhores de todos os tempos. Mas nem precisa ir tão longe, é só falar do TV Pirata, por exemplo, que fazia um humor completamente diferente desses que a gente vê hoje. É uma vergonha isso que está aí e que chamam de programa de humor. E as rádios também vão para o mesmo caminho. Nem tenho ido mais ao teatro de tão ruim que tenho achado esse povo que diz que é comediante e que fica contando piada, fazendo graça com o que não tem a menor graça. Lembro-me de um espetáculo que vi do Rogério Cardoso, aí em Belo Horizonte. Faz muito tempo. Aquilo sim, era humor. Ele sozinho no palco e a plateia toda feliz da vida”.

É, Luís Henrique, o Rogério Cardoso era mesmo genial. Lembra-se dele na Escolinha do Professor Raimundo? Ele roubava a cena. Mais mensagem: Edgar Caetano, de Luz, escreveu: “Bom-dia, Josiel. Sou leitor de sua coluna, dificilmente não leio uma. Você disse muito bem sobre a atual fase do humor brasileiro. Principalmente, de alguns programas em específico. Uma tristeza. Chega a ser desagradável com o telespectador. Mas, fazer o quê? Não é mesmo!? Só nos resta não assistir a essas idiotices. Se você quer rir, sorria com as reportagens do Eli Aguiar e suas tiradas espontâneas. Simples, sem ofender os outros. Garanto que é melhor que muito programa de humor por aí. Um abraço, muita saúde e paz para você e seus familiares”. Obrigado, Edgar. Seja bem-vindo e faça uso deste quintal. Luz é terra de gente muito querida. Tenho grande amigo nascido na região: o músico e jornalista Augusto Pio. Grande abraço.

Lessandro F. Teixeira enviou e-mail bacana e fez alguns importantes comentários. O primeiro é que considerou uma grande injustiça da minha parte não citar o Ronald Golias. E tem toda razão. Deixo aqui as minhas desculpas. O Golias foi, de fato, um dos maiores humoristas de todos os tempos. O leitor escreveu ainda: “Realmente, é um absurdo o que esse impostor fez no velório da Amy. Desrespeitando o velório daquela maneira, considero que desrespeitou toda a humanidade. Houve um grande desrespeito também à religião judaica, pois, para protagonizar aquela palhaçada, com todo respeito aos verdadeiros palhaços, ele utililzou de maneira debochada o "quipá", que é um símbolo sagrado do judaismo, o qual todos devemos respeitar”.

Por último, Lessandro quis saber se o disco que ganhei do meu filho, citado na coluna, era fruto de pirataria. Não, caro Lessandro. Veio de CDs originais para uso doméstico por parte de um pai caipira e cheio de saudade. Meu abraço!

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 3/8/11

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A preparação do ator


Por Gloria Reis

Por vezes desconsiderado como área de produção de conhecimento científico e ainda pouco contemplado nas pesquisas e debates acadêmicos, o teatro possibilita reflexões acerca do cotidiano de um grupo social, pode ser analisado como microcosmo das relações em um dado espaço, uma das chaves para a compreensão das transformações e das permanências e uma das lentes para percepção do denso emaranhamento dos processos de construção de identidades coletivas. Observar e até mergulhar em experiências semelhantes ou diferentes das nossas próprias são vivências que o fenômeno teatral proporciona, e essa capacidade de transitar por várias lógicas potencializa as manifestações artísticas.

Considero que fazer arte é, dentre outras coisas, pesquisar linguagens, criar motivações, refletir sobre modos de vida, traduzir demandas sociais, desconstruir e construir identidades. A criação artística reconhece conceitos e valores que criadores e intérpretes têm em relação à sociedade, é expressão de como o sujeito enxerga e pensa o mundo. Pode se constituir em protesto, denúncia, provocação, alerta, uma forma de reforçar padrões ou questionar valores, manifestar concordância ou opção pelo confronto. Ao assimilar o espírito de sua época e dialogar com várias realidades, o artista se inspira, cria, expõe-se, adquire linguagem própria, posiciona-se e interfere individual e coletivamente nos contextos que o cercam.

É a partir dessas premissas que a preparação de atores tem sido objeto de minhas preocupações. Não há dúvida que o aumento do número de centros formadores favorece a profissionalização, mas esse crescimento exige reflexões cada vez mais sistematizadas sobre a importância dos artistas-professores, a qualidade dos profissionais que estão se formando e os impactos na produção artística e na cena cultural da cidade. Não se pode perder de vista que conexões e diálogos entre formação de artistas, fenômenos socioeconômicos, profissionalização e mercado, criação artística e academia se realizam em complexas e muitas vezes contraditórias instâncias mediadoras.

Especialmente neste ano, em que o Centro de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado (Cefar) comemora 25 anos e a Escola de Teatro da PUC Minas completa 11 anos, escolas das quais me orgulho de pertencer desde a criação, tenho refletido muito sobre a produção do conhecimento artístico nas relações de mão dupla entre ensino e aprendizagem.

Escolha

O que significa estudar teatro para cada aluno que procura uma escola, tanto do ponto de vista profissional quanto pessoalmente? Por que, jovens ou não, com histórias tão peculiares, fazem essa escolha? O que vão buscar ali e com o que se defrontam? Os riscos são muitos, há a pressão financeira, os preconceitos, a falta de reconhecimento profissional, a perversa ilusão de sucesso, nada de glamour. As experiências vividas em uma escola de teatro são marcantes, porque é impossível passar, com indiferença, por situações tão diversas daquelas do universo do ensino formal.

A nossa responsabilidade, de quem leciona e comanda escolas de teatro, vai ficando cada vez maior, pois, se o comprometimento com o aluno já é intenso, temos também o compromisso com a comunidade artística, que nos delegou a função de preparação dos futuros atores, e ainda com o público que comparece euforicamente e em grande número às atividades e espetáculos dos alunos-artistas, dando a eles muita importância.

A escola de arte não surge por acaso. Ela é fruto de um momento que requer profissionalização, do desejo do público por obras de boa qualidade, de demandas da sociedade, que cobra participação mais efetiva na pesquisa, na criação, na sistematização e na distribuição do conhecimento artístico.

A sala de aula é o lugar da mistura e da síntese, um dos mais favoráveis campos de encontro e de criação, pois reúne pessoas com mentalidades diversas, que, por isso mesmo, são extremamente importantes umas às outras e às possibilidades cênicas. O intercâmbio de ideias e experiências, o convívio com a diversidade, os choques de valores, os conflitos entre tradições e inovações, a exposição da pluralidade são extremamente necessários à dinâmica das aulas de teatro, em que limites, dificuldades e alternativas de superação vêm à tona. Uma escola de teatro deve informar e formar, mas também desformar, tirar da forma padrão, transformar.

As restrições impostas pelas condições de inserção de um departamento de teatro em uma instituição de maior porte, pública ou privada, de cunho cultural ou essencialmente educacional, interagindo com as permissibilidades que essas mesmas condições oferecem, criam dinâmica particular, expõem as contradições e as diferenças individuais e coletivas. Aí se situam conflitos, negociações, o confronto de opiniões, o tempo da ruptura e o tempo da continuidade.

São quase sempre conflituosas as relações entre propostas de formação artística e planilhas orçamentárias, verbas de custeio, mapas de custo, número de alunos por turma, taxas de evasão, disputas por espaço. Elas acabam por evidenciar a contraposição entre a viabilidade financeira das escolas e as necessidades pedagógicas e ansiedades estéticas daqueles profissionais que se entregam, com competência e paixão, ao trabalho de formação. Para não abandonar a essência de suas propostas, precisam encontrar brechas e alternativas para levá-las à frente, convivendo com regras e hierarquias que, muitas vezes, afastam-se do ambiente ideal para a criação artística. As cobranças são necessárias, fazem parte do processo, mas devem ser pautadas pelas singularidades do ofício.

Não raro, nossa atividade profissional é confundida com hobby, entretenimento, lazer, relaxamento e considerada menor, fácil, quase desnecessária. “Importante é a formação de médicos, que trabalham com a vida”, ouvimos dizer. Ora, também lidamos com vidas tantas vezes em situação de risco, limítrofes, em sérias dificuldades físicas e psicológicas. Recebemos o aluno repleto de sonhos, entregando-nos suas inquietações e dúvidas, a sua paixão, muitas vezes confiando a nós o seu futuro profissional. Nosso ofício toca nos sentimentos de quem faz e de quem assiste, temos responsabilidade sobre cada um que está ali para conhecer técnicas, instrumentalizar-se, procurar caminhos, emocionar-se, imaginar, levantar questões, encontrar formas de dialogar nas fronteiras tênues entre a razão e a emoção. A construção de cada frase que será dita pelo personagem, o desenho da partitura corporal, da proposta vocal, a investigação da história, a criação da encenação como um todo requerem processo infindável de experiências, tentativas às vezes dolorosas, despreendimento.


Teatro é exigente. A formação é contínua. Quando se chega a uma resposta, mudou-se a pergunta. Nos processos de preparação do ator, as identidades são individualmente resgatadas e coletivamente reconstruídas. Ao entrar na lógica dos personagens, dar vida cênica a eles, recriamos realidades e permitimos ao público se encontrar, representar-se por narrares múltiplos. O coletivo, como um espelho, refrata, a cada instante, a individualidade, o particular, o detalhe que se tornará, então, diverso e universo.

Mestre

Para o professor-artista, um dos maiores desafios é provocar no aluno a reflexão sobre quais pressupostos estão constituídos nos códigos coletivos, levá-lo a discutir valores e dinâmicas sociais, gerar inquietações e novas aspirações para transformar em linguagem cênica percepções, questionamentos e perspectivas.

Nesse sentido, acredito que a preparação do ator deva ocupar um espaço maior que o delimitado pelas salas de aula e pelos palcos ou aquele socialmente reconhecido. O que o teatro pode proporcionar vai muito além da experiência estética. Cada aluno acaba fazendo, ainda que despretensiosamente, a escolha por transitar em estradas sinuosas e pouco pavimentadas, aprende a lidar com o inusitado e com a busca de alternativas. É uma opção desafiadora e extremamente apaixonante.


Por acreditar na vitalidade e na potência transformadora da arte, sinto-me à vontade para dizer ao aluno-ator: aproveite, deguste, saboreie, exerça com responsabilidade e paixão a oportunidade que o palco lhe oferece. Ocupe o espaço, alongue-se, respire, transpire e inspire, aqueça a voz, o corpo e a cabeça, concentre-se, sinta o foco, busque o conhecimento e se aproprie dele. Abra os ouvidos para as avaliações, escute os mestres, desconfie das facilidades, faça leituras e releituras, observe, vá ao teatro, assista a filmes, frequente exposições, cante, dance, interprete, toque, estude, amplie o olhar, provoque e deixe-se provocar, componha, pergunte, crie, repita, arrisque, erre, tente outra vez, prontifique-se, proponha, considere a angústia uma necessidade, saia da área de conforto, apaixone-se pela inquietude. Não tenha medo do novo e nem despreze ou rejeite o já feito, caminhe na trilha de mão dupla entre a tradição e a modernidade, esteja disponível, fique em estado de alerta e seja generoso. E, quando tocar o terceiro sinal, ciente de seu compromisso com a coletividade, entregue-se à sábia loucura de estar em cena.

Gloria Reis é professora, coordenadora da Escola de Teatro PUC Minas e ex-diretora do Centro de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado (Cefar).

(Artigo publicado no caderno Pensar do Jornal Estado de Minas, sábado, 30/7/11)

Festa de descasamento


Hilário e Bernadete até que foram mais ou menos felizes. Por exatos 37 meses. Os dois anos de namoro, então, foram uma beleza. Depois, com o casamento, é que a coisa desandou. Aí, foi um pega pra capar sem precedentes. O amor virou amizade e a amizade acabou costume. “Não dá mais. Sou de outro!”, disse na lata a mulher, já enrabichada com fulano qualquer. “Como assim?”, ele quis saber, já que pensou ser para sempre. Naquela noite de rompimento não teve mais conversa. Foi um chororô sem fim madrugada adentro. Um em cada canto da casa. Ele, no quarto do corredor, pensava em como fazer para viver sem ela. Ela, na suíte de casal, aos soluços, pensando no que ia dizer para o papai e para a mamãe, católicos tradicionais e honestos. Fim do enlace. Cada um seguiu seu rumo sem olhar para trás. É preciso ser assim entre adultos de juízo.

Contudo, feridas abertas, a separação foi bastante doída. Ela queria se ver logo, o quanto antes, livre do nome do sujeito. Já ele, não teve pressa: “Vai que um dia ela volta”. Bem típico dos rejeitados mais tolos. Não. Ela não voltaria. Já não havia mais nada em comum entre os dois. Melhor para o Hilário que conheceu Maria. O que havia de melhor e mais interessante em Bernadete parecia até defeito em Maria. Moça boa para toda a vida estava ali, tão perto, na mesa ao lado da repartição. Demorou até para o Hilário acreditar que merecia tanto. “Meu Deus!”, pensou alto, logo na primeira noite que saíram juntos. Ele foi bastante sincero quando aceitou o convite: “Melhor não. Ainda tenho a diaba na cabeça”. Maria foi implacável: “Sei bem como juntar os seus cacos”. Não só sabia como o fez inteiro depois de bom prato de massa e garrafa de vinho chileno.

Hilário nem se lembrava mais o que era carinho. Maria já gostava do moço havia tempo. Tanto que nem escondeu contentamento quando soube da separação. Ainda assim, esperou quase mês para tentar conquistar o sujeito. Na noite do jantar, em Santa Tereza, preparou cenário de cinema. Na manhã seguinte, Bernadete e o amante já eram poeira nas ideias de Hilário. Foi a pé para o trabalho para ter tempo de repensar a vida. Passou em flora requintada na Floresta e dobrou a esquina do escritório. Lá, na frente de todos os companheiros de departamento, deu flores e fez declaração ao novo amor. O casal conseguiu semana antecipada de férias com o chefe gente boa e seguiu para pousadinha em Santa Catarina. Foram dias de futuro e aconchego. Hilário e Maria se divertiram, se coisaram e se quiseram muito e mais. “Engraçado o destino”, suspirava o moço, enquanto Maria dormia sorrindo, exausta, com a cabeça em seu peito.

A ideia veio num estalo, por ocasião da data da assinatura do divórcio conhecida pelo telefone: “Claro! Uma festa! É isso! Uma festa!”. Hilário, felicíssimo, decidiu dar um baile de arromba para comemorar o fim do imbróglio com a Bernadete. Raspou todas as economias da caderneta de poupança, contratou o mesmo cerimonial de seu casamento e repetiu a farra para 500 convidados, no mesmo casarão de eventos em Nova Lima. Até os mais chegados da ex-mulher ele fez questão de chamar. Passou a noite nos braços de familiares e amigos para amanhecer para sempre dentro de Maria.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 1º/8/11