Por Gloria Reis
Por vezes desconsiderado como área de produção de conhecimento científico e ainda pouco contemplado nas pesquisas e debates acadêmicos, o teatro possibilita reflexões acerca do cotidiano de um grupo social, pode ser analisado como microcosmo das relações em um dado espaço, uma das chaves para a compreensão das transformações e das permanências e uma das lentes para percepção do denso emaranhamento dos processos de construção de identidades coletivas. Observar e até mergulhar em experiências semelhantes ou diferentes das nossas próprias são vivências que o fenômeno teatral proporciona, e essa capacidade de transitar por várias lógicas potencializa as manifestações artísticas.
Considero que fazer arte é, dentre outras coisas, pesquisar linguagens, criar motivações, refletir sobre modos de vida, traduzir demandas sociais, desconstruir e construir identidades. A criação artística reconhece conceitos e valores que criadores e intérpretes têm em relação à sociedade, é expressão de como o sujeito enxerga e pensa o mundo. Pode se constituir em protesto, denúncia, provocação, alerta, uma forma de reforçar padrões ou questionar valores, manifestar concordância ou opção pelo confronto. Ao assimilar o espírito de sua época e dialogar com várias realidades, o artista se inspira, cria, expõe-se, adquire linguagem própria, posiciona-se e interfere individual e coletivamente nos contextos que o cercam.
É a partir dessas premissas que a preparação de atores tem sido objeto de minhas preocupações. Não há dúvida que o aumento do número de centros formadores favorece a profissionalização, mas esse crescimento exige reflexões cada vez mais sistematizadas sobre a importância dos artistas-professores, a qualidade dos profissionais que estão se formando e os impactos na produção artística e na cena cultural da cidade. Não se pode perder de vista que conexões e diálogos entre formação de artistas, fenômenos socioeconômicos, profissionalização e mercado, criação artística e academia se realizam em complexas e muitas vezes contraditórias instâncias mediadoras.
Especialmente neste ano, em que o Centro de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado (Cefar) comemora 25 anos e a Escola de Teatro da PUC Minas completa 11 anos, escolas das quais me orgulho de pertencer desde a criação, tenho refletido muito sobre a produção do conhecimento artístico nas relações de mão dupla entre ensino e aprendizagem.
Escolha
O que significa estudar teatro para cada aluno que procura uma escola, tanto do ponto de vista profissional quanto pessoalmente? Por que, jovens ou não, com histórias tão peculiares, fazem essa escolha? O que vão buscar ali e com o que se defrontam? Os riscos são muitos, há a pressão financeira, os preconceitos, a falta de reconhecimento profissional, a perversa ilusão de sucesso, nada de glamour. As experiências vividas em uma escola de teatro são marcantes, porque é impossível passar, com indiferença, por situações tão diversas daquelas do universo do ensino formal.
A nossa responsabilidade, de quem leciona e comanda escolas de teatro, vai ficando cada vez maior, pois, se o comprometimento com o aluno já é intenso, temos também o compromisso com a comunidade artística, que nos delegou a função de preparação dos futuros atores, e ainda com o público que comparece euforicamente e em grande número às atividades e espetáculos dos alunos-artistas, dando a eles muita importância.
A escola de arte não surge por acaso. Ela é fruto de um momento que requer profissionalização, do desejo do público por obras de boa qualidade, de demandas da sociedade, que cobra participação mais efetiva na pesquisa, na criação, na sistematização e na distribuição do conhecimento artístico.
A sala de aula é o lugar da mistura e da síntese, um dos mais favoráveis campos de encontro e de criação, pois reúne pessoas com mentalidades diversas, que, por isso mesmo, são extremamente importantes umas às outras e às possibilidades cênicas. O intercâmbio de ideias e experiências, o convívio com a diversidade, os choques de valores, os conflitos entre tradições e inovações, a exposição da pluralidade são extremamente necessários à dinâmica das aulas de teatro, em que limites, dificuldades e alternativas de superação vêm à tona. Uma escola de teatro deve informar e formar, mas também desformar, tirar da forma padrão, transformar.
As restrições impostas pelas condições de inserção de um departamento de teatro em uma instituição de maior porte, pública ou privada, de cunho cultural ou essencialmente educacional, interagindo com as permissibilidades que essas mesmas condições oferecem, criam dinâmica particular, expõem as contradições e as diferenças individuais e coletivas. Aí se situam conflitos, negociações, o confronto de opiniões, o tempo da ruptura e o tempo da continuidade.
São quase sempre conflituosas as relações entre propostas de formação artística e planilhas orçamentárias, verbas de custeio, mapas de custo, número de alunos por turma, taxas de evasão, disputas por espaço. Elas acabam por evidenciar a contraposição entre a viabilidade financeira das escolas e as necessidades pedagógicas e ansiedades estéticas daqueles profissionais que se entregam, com competência e paixão, ao trabalho de formação. Para não abandonar a essência de suas propostas, precisam encontrar brechas e alternativas para levá-las à frente, convivendo com regras e hierarquias que, muitas vezes, afastam-se do ambiente ideal para a criação artística. As cobranças são necessárias, fazem parte do processo, mas devem ser pautadas pelas singularidades do ofício.
Não raro, nossa atividade profissional é confundida com hobby, entretenimento, lazer, relaxamento e considerada menor, fácil, quase desnecessária. “Importante é a formação de médicos, que trabalham com a vida”, ouvimos dizer. Ora, também lidamos com vidas tantas vezes em situação de risco, limítrofes, em sérias dificuldades físicas e psicológicas. Recebemos o aluno repleto de sonhos, entregando-nos suas inquietações e dúvidas, a sua paixão, muitas vezes confiando a nós o seu futuro profissional. Nosso ofício toca nos sentimentos de quem faz e de quem assiste, temos responsabilidade sobre cada um que está ali para conhecer técnicas, instrumentalizar-se, procurar caminhos, emocionar-se, imaginar, levantar questões, encontrar formas de dialogar nas fronteiras tênues entre a razão e a emoção. A construção de cada frase que será dita pelo personagem, o desenho da partitura corporal, da proposta vocal, a investigação da história, a criação da encenação como um todo requerem processo infindável de experiências, tentativas às vezes dolorosas, despreendimento.
Teatro é exigente. A formação é contínua. Quando se chega a uma resposta, mudou-se a pergunta. Nos processos de preparação do ator, as identidades são individualmente resgatadas e coletivamente reconstruídas. Ao entrar na lógica dos personagens, dar vida cênica a eles, recriamos realidades e permitimos ao público se encontrar, representar-se por narrares múltiplos. O coletivo, como um espelho, refrata, a cada instante, a individualidade, o particular, o detalhe que se tornará, então, diverso e universo.
Mestre
Para o professor-artista, um dos maiores desafios é provocar no aluno a reflexão sobre quais pressupostos estão constituídos nos códigos coletivos, levá-lo a discutir valores e dinâmicas sociais, gerar inquietações e novas aspirações para transformar em linguagem cênica percepções, questionamentos e perspectivas.
Nesse sentido, acredito que a preparação do ator deva ocupar um espaço maior que o delimitado pelas salas de aula e pelos palcos ou aquele socialmente reconhecido. O que o teatro pode proporcionar vai muito além da experiência estética. Cada aluno acaba fazendo, ainda que despretensiosamente, a escolha por transitar em estradas sinuosas e pouco pavimentadas, aprende a lidar com o inusitado e com a busca de alternativas. É uma opção desafiadora e extremamente apaixonante.
Por acreditar na vitalidade e na potência transformadora da arte, sinto-me à vontade para dizer ao aluno-ator: aproveite, deguste, saboreie, exerça com responsabilidade e paixão a oportunidade que o palco lhe oferece. Ocupe o espaço, alongue-se, respire, transpire e inspire, aqueça a voz, o corpo e a cabeça, concentre-se, sinta o foco, busque o conhecimento e se aproprie dele. Abra os ouvidos para as avaliações, escute os mestres, desconfie das facilidades, faça leituras e releituras, observe, vá ao teatro, assista a filmes, frequente exposições, cante, dance, interprete, toque, estude, amplie o olhar, provoque e deixe-se provocar, componha, pergunte, crie, repita, arrisque, erre, tente outra vez, prontifique-se, proponha, considere a angústia uma necessidade, saia da área de conforto, apaixone-se pela inquietude. Não tenha medo do novo e nem despreze ou rejeite o já feito, caminhe na trilha de mão dupla entre a tradição e a modernidade, esteja disponível, fique em estado de alerta e seja generoso. E, quando tocar o terceiro sinal, ciente de seu compromisso com a coletividade, entregue-se à sábia loucura de estar em cena.
Gloria Reis é professora, coordenadora da Escola de Teatro PUC Minas e ex-diretora do Centro de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado (Cefar).
(Artigo publicado no caderno Pensar do Jornal Estado de Minas, sábado, 30/7/11)
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