Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O circo e a cidade

Varekai fica em cartaz em BH até 12 de fevereiro

Até outubro do ano passado, o servente Alexandre dos Santos, de 23, a mulher, Anita Ribeiro, de 26, e o pequeno Alexander, de 3, viviam na companhia dos grilos em casinha miúda, em frente ao Córrego Sarandi, na Avenida Professor Clóvis Salgado, nº 1.400, no Bairro Bandeirantes, na Região da Pampulha. Vizinhos do campo do União Futebol Clube e de vários lotes vagos de lixo, mato e terra vermelha, o casal nem podia imaginar ver o entorno de sua posse, de pouco mais de 200 m2, se transformar no endereço mais badalado do verão em Belo Horizonte. “Falaram pra gente que ia chegar um circo. Aí, pensei que fosse um circo de palhaço”, conta Anita, grávida de oito meses. A dona de casa gostou da novidade e diz ter ficado encabulada com o grande movimento no preparo do terreno. Agora, o que a impressionou mesmo foi a chegada das 65 carretas, com mil toneladas de metal. Diante dos olhos estatelados da família Santos, em sete dias – como o mundo criado por Deus –, cerca de 200 operários, comandados por 22 técnicos estrangeiros ergueram as sete tendas do Cirque du Soleil. Uma cidade mambembe com 125 funcionários de 25 nacionalidades, vindos de quatro continentes. Nela, além da tenda principal, com capacidade para 2.612 espectadores, estacionamento, área vip, academia de ginástica, casa de máquinas e cozinha.


Alexandre e Anita estão curtindo a vizinhança internacional


O banheiro do papa

Um complexo circense de encantar, que mudou a paisagem do lugar, próximo a velha Toca da Raposa. Tudo ao redor da casinha de número 1.400, da família Santos, que tem no quintal o galo Fred, o gato Neném e os cães Tigresa, Magaiver e Vitória. “Agora, depois desse circo, o bairro vai crescer mais”, diz Alexandre, empolgado com os novos vizinhos saltadores, já que dos grilos ele não dá mais notícia. O canto ali agora é outro. É a trilha original de Montanaro Michael, que embala os saltos fantásticos e a mise-en-scène espetacular dos 58 performers do maior circo do planeta. Anita, convidada pela produção, foi ver Varekai e aprovou a performance da vizinhança. “É tudo bonito demais”, diz. A quilômetro dali, na Rua Policarpo Magalhães Viotti, tem outro cidadão bastante entusiasmado com as tendas. Logo que soube da atração internacional no bairro, Eduardo Rodrigues do Patrocínio, de 42, fez empréstimos para levantar R$ 17 mil e investir em seu botequim. Fez do seu micronegócio o que faz lembrar O banheiro do papa, filme uruguaio de 2007, baseado em fatos reais, que levou à tela a transformação que a notícia da passagem do Papa João Paulo II provocou numa comunidade. O comerciante, homem de hábitos simples, pai de família, repaginou o Área Verde Sport Bar e está se dando bem no atendimento de servidores do Soleil.

Eduardo, o filho Taymisson Edgar, de 19, e a mulher, Carmem Aparecida, de 41, até esticaram o horário de trabalho. Antes, davam expediente das 16h até às 23h. Com o Soleil, chegam a ficar das 6h até à 1h30. Ezequiel Souza, de 45, mora nos fundos do botequim. “É quem cuida do patrimônio”, brinca o patrão. O balconista elogia os novos vizinhos. “Tudo gente boa. Fiz até amizade com uns canadenses”, sorri. Eduardo prevê que, com o sucesso do lugar, a área deve ser transformada em espaço para grandes eventos. Espera, agora, que o poder público continue “dando moral” para o bairro. “A gente ainda carece de linha de ônibus e de mais segurança. Durante o evento, aqui é muito seguro. Só que, depois, falta policiamento”. O bar, com mesa de sinuca, é agradável, sortido, e tem salgado feito no capricho. “Estou neste endereço há 27 anos. Antes do circo, isso aqui era uma vergonha. Os lotes todos sujos. Agora, os vizinhos, para faturar com estacionamento, limparam tudo”, comenta.

Do outro lado do Córrego Sarandi, em frente à posse da família Santos, já é o Bairro Santa Terezinha. Pedro William Almeida Lima, de 15, auxiliar de jardinagem, pausa o trabalho para admirar o circo. “Olhe só que interessante aquele regador em cima da tenda maior. Deve ser para aliviar o calor, né!?”, imagina. O estudante, que sonha ser militar, se mostra grande fã da trupe internacional. Diz que a conhece bem pelo DVD de um tio, admirador do grupo canadense. “Eles são incríveis. No trapézio não há nada parecido. Eles saltam de alturas bem loucas. É radical”, entusiasma-se. Pedro William jamais pensou ter a oportunidade de trabalhar tão perto da companhia. Diz contentar-se com isso. Bom moço, estudante, até teria condições de pagar pelo ingresso mais barato (R$ 70, a meia-entrada), mas pensa na família. Especialmente nas irmãs menores de 12 e 6 anos. “Elas já assistiram ao DVD e endoidaram”, conta, já de volta ao serviço. Na calçada, duas mocinhas, tia e sobrinha. Letícia Oliveira, de 15, e Luana Silva Oliveira, de 14, também estão encantadas com o complexo de lonas. Luana, que mora no interior, não vai poder ver Varekai. Letícia, feliz, já tem ingresso.


Cynthia Clemente, venezuelana, relações públicas do Soleil


Sob as tendas do Cirque

Por dentro das lonas, o esquema da segurança tem rigor de primeiro mundo. A portaria lateral, ao lado do Área Verde Sport Bar, tem movimentação intensa, de serviço, para a alegria do Eduardo. Sob as tendas menores, que dão acesso ao palco principal, o caminho é marcado pela presença de artistas em treinamento. Disciplinados, homens e mulheres de corpos torneados se aquecem, saltam e malham pesado. Há um russo na maca, com o joelho em tratamento. Cena comum entre os intrépidos acrobatas, capazes de realizar os saltos que encantam tanto o auxiliar de jardinagem Pedro William e suas irmãs. Quatro chefs – um holandês, um espanhol e dois canadenses – cuidam da cozinha. A venezuelana Cynthia Clemente, de 31, há seis anos faz parte da trupe criada e dirigida por Dominic Champagne. A bela relações públicas, que já esteve no Brasil em 2005, com o espetáculo Saltimbanco, deixa evidente o orgulho de fazer parte da cidade sobre rodas do Cirque du Soleil. Fora dos palcos, é uma das responsáveis pelo bom trânsito dos técnicos e performers estrangeiros com a cultura local.

Para a venezuelana, fazer parte do Soleil é estar pronta para uma nova vida a cada temporada. Além dos funcionários da companhia, participam da turnê alguns acompanhantes – cônjuges e filhos. Ao todo, 170 estrangeiros. Para os serviços de recepção, bilheteria, portaria e limpeza, entre outros, 150 profissionais foram contratados para a temporada em Belo Horizonte. Cynthia ressalta que quatro professores atuam em período integral. Em cada cidade, em cada país – só Varekai, em dez anos, já esteve em 60 localidades de 15 países –, uma nova experiência. “Quando os artistas conheceram o samba no Rio de Janeiro, eles disseram que não havia melhor aquecimento que sambar”. E aprenderam? “Daquele jeito gringo que vocês conhecem”, diverte-se. Em Belo Horizonte, estão encantados com o Mercado Central e com os bares da Região Centro-Sul. Eles tiram a segunda-feira, dia de folga, para conhecer um pouco da cidade e da Região Metropolitana. Hoje, no programa, a histórica Ouro Preto e as cachoeiras da Serra do Cipó.

A noite cai e, do lado de fora, o trânsito começa a ficar complicado. Paulo José, de 30, faz malabarismo sobre a mureta do Córrego Sarandi para indicar o estacionamento e controlar as filas de carros que começam a se formar na Avenida Professor Clóvis Salgado para pagar R$ 30. Não quer perder clientes para os estacionamentos clandestinos, que cobram R$ 10. Ainda é cedo, falta hora para Varekai. Robson de Oliveira, de 52, e o irmão Rogério de Oliveira, de 46, motoristas, vieram de Divinópolis, trazendo oito pessoas para ver o Soleil. Satisfeita, a família Santos assiste a tudo do número 1.400, enquanto Eduardo, a mulher e o filho colhem os frutos dos investimentos aplicados na reforma do Área Verde Sport Bar. A privada ajuda a aumentar o faturamento: R$ 0,80 pelo uso da casinha.


Cidadã do mundo

Canadense, com formação em teatro, dança e música, Isabelle Corradi é a típica artista completa que faz do Cirque du Soleil referência mundial. Há 18 anos na trupe, já foi professora, preparadora de elenco e, atualmente, canta em Varekai. Simpática, poliglota – arrisca-se sem fazer feio com bom vocabulário em português –, Isabelle é contagiante. Diz-se imensamente feliz com sua “missão humana”, especialmente pela alegria que seu trabalho oferece para as plateias de todo o mundo. De família de três gerações de músicos, “casada com o Varekai”, demonstra prazer em conversar e fazer novas amizades. Vegetariana, a cantora circula com gosto pelos pequenos cafés próximos ao hotel, na Região Centro-Sul, e diz gostar muito do pão de queijo mineiro. Antes do Soleil, Isabelle estrelou shows nos Estados Unidos e na Europa, com carreira também na televisão. Nas suas andanças pelo planeta, diz ter conhecido lugares inesquecíveis. Na Região Metropolitana de Belo Horizonte, cita o “Topo do Mundo”, na Serra da Moeda, com o entusiasmo de quem sabe apreciar a natureza. Despede-se com “Namastê” – o Deus que há em mim saúda o Deus que há em você – e segue rumo a grande tenda com seus passos leves de menina-bailarina.

Social

Para ajudar a diminuir o abismo social que existe entre o alto nível de sua estrutura e a vizinhança de poucos recursos, com ingressos a preços pouco populares – entre R$ 140 e R$ 395 – o Cique du Soleil tem projeto social para atender crianças e adolescentes carentes. Entre outras iniciativas da companhia, está a liberação da entrada em pré-estreias para convidados selecionados por parceiros locais da Fundação Cirque Du Monde, mantida pela trupe.

Estado de Minas - Jefferson da Fonseca Coutinho
Fotos: (1) Divulgação/Soleil (2) e (3) Túlio Santos

O aniversário da Margô


Ah, a Margô! Mulher boa estava ali. Para casamento. Mas a doutora, advogada de altíssimo nível, quarentona, de boas carnes, não queria saber de compromisso sério com sujeito algum. “Comprometimento ali, só com a OAB”, diziam baixinho, pelos corredores do fórum, os barrigudos e carecas de gravata do Barro Preto. Não havia em metro quadrado de Belo Horizonte e Região Metropolitana profissional mais competente no trato com as leis. Uma especialista em Direito Criminal. Doutora Margô sabia de frente para trás e de trás para frente o Código Penal, a Constituição e o Houaiss. Como escrevia e falava difícil a danada! As más línguas diziam até que ela conseguia tudo o que queria porque chegava a acanhar as autoridades – promotores, juízes e políticos dos mais graúdos – com o poder de sua escrita e a beleza de sua oratória.

Sem falar nos predicados físicos. Data venia, a doutora era uma delícia. Corpão bem tratado de deixar no bolso muita menininha na casa dos vinte anos. Sorriso radiante e peitos de inspirar rábulas e excelências. Doutor Tristão, veterano das causas perdidas, chegava a fazer balangar a dentadura quando via a doutora passar, perfumada, cítrica, graciosa, com seus vestidinhos florais – também tinha isso. Doutora Margô, muito elegante, não andava travada até o pescoço, “enfreirada”, como a maioria de suas colegas. Não. Era muito diferente. Curtia calcinhas minúsculas de virar a cabeça de quem passasse por ela. Já teve magistrado babão, durante julgamento, que cambaleou o raciocínio tentando imaginar as roupas íntimas da doutora sob o longo pano negro da ordem. Uma loucura.

Era difícil entender como mulher de tantos atributos continuava solteira. De sexo ela gostava. E muito. Mas, para ela, sexo não tinha nada a ver com amor. Era outra coisa. Podia até dar aula sobre o assunto. No entanto, não gostava de desperdiçar saliva. Com ela, era ação. Capaz de levar à lona qualquer homem de fôlego e entusiasmo, Margô mantinha vida íntima discretíssima. O que se sabia é que a doutora tinha enorme atração por gente maluca. Quanto mais problemático o namorado mais excitada ela ficava. O último, doido de jogar pedra, era tão ciumento que chegou a pagar garoto de programa bonitão para dar em cima da Margô. Só pra ver se ela caía em tentação. Não caiu e ainda resolveu despachar o malucão. Fim de caso. Depois que soube da combinação, assim, desgostosa, quis dar um tempo nos paqueras.

Semana passada, Margô precisou levar alvará de soltura para liberar cliente em grande depósito de presos da cidade. Comentou com o delegado, velho fã e grande admirador, que era dia de seu aniversário. O policial não teve dúvida e em fração de minutos armou homenagem com a turma da carceragem. Colocou três mil detentos para cantar parabéns para a doutora. Foi uma farra que fez chorar o monumento.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 30/1/12

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O estranho mundo de Alice

Hoje, e amanhã, às 23h, "Alice ao avesso", da Querida Companhia de Arte, se despede do palco italiano do Teatro Dom Silvério. Depois, segue para a Sala João Ceschiatti. O espetáculo faz parte da 38ª Campanha de Popularização teatro e Dança de Minas Gerais. Em janeiro de 2011, o inesquecível artista e crítico de arte Marcello Castilho Avellar escreveu:


A lógica do absurdo

Por Marcello Castilho Avellar

O romance Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll (1832-1898), pertence a uma categoria integrada por poucos membros. Mais do que contar uma história ou apresentar personagens e peripécias, propõe ao leitor uma lógica que pertence exclusivamente ao universo da ficção, que não finge ter vínculos objetivos com as lógicas do mundo real, e povoa-a com arquétipos. Talvez por isso sua adaptação para outras linguagens seja tão difícil, como verificamos recentemente no filme homônimo dirigido por Tim Burton. O espetáculo Alice ao avesso, que Jefferson da Fonseca dirigiu para a Querida Companhia, vence exatamente por compreender a singularidade do material em que se inspira.

Alice ao avesso não pretende simplesmente recontar no palco o livro de Lewis Carroll, nem explicá-lo. Na essência, aceita sua lógica absurda, assume seus arquétipos e verifica sua atualidade. Arquétipos, como entes do inconsciente humano, tendem à atemporalidade. Se no século 19 criaturas como Alice ou a Rainha de Copas falavam das contradições da Inglaterra vitoriana, no Brasil do século 21 elas continuam capazes de dizer algo, mesmo que este algo seja diferente do que era há século e meio atrás. Uma festa, música eletrônica, piadas e situações contemporâneas constituem o material colocado sobre a estrutura criada pelo autor. No processo, Alice ao avesso fala ao espectador tanto de seu tempo quanto do que ele divide com milênios de história humana, dos medos contemporâneos ao fascínio pelo desconhecido que parece inerente à humanidade.

É produção que confia mais no elenco que em recursos materiais. E os jovens intérpretes se saem bem, transformam em algo que parece ser deles a história escrita por outro e sonhada por muitos. Se não chega a fazer de sua precariedade material um manifesto estético, Alice ao avesso pelo menos é capaz de incorporá-la a certo clima de teatro underground que combina tanto com o espaço em que se apresenta – o Sesi Holcim é apertado, claustrofóbico – quanto com o clima onírico que propõe. O resultado é algo que consegue produzir desconforto mesmo enquanto diverte.

Estado de Minas - 26/1/11

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Quando a web é a voz do povo


Há tempos estou de olho nas redes sociais da internet. Não é lá muito fácil seguir de perto a onda dos computadores, em marolas na velocidade da luz. Mas, aqui com os meus teclados, faço o possível para não ficar para trás. Tenho amigos entendidos no assunto e eles garantem que, muito em breve, computadores e a grande rede – o famoso www – serão mais comuns que geladeiras e fogões. Tenho motivos para acreditar que sim, porque sei de gente simples, de poucos recursos, que já acompanham as notícias pela internet do aparelho celular. Tem base? Sério. Conhecidos que já fizeram parte do Orkut e, hoje, não saem dos tais Facebook e Twitter. Se o amigo leitor nunca ouviu falar em Orkut, Facebook e Twitter, pode estar certo de que faz parte de um pequeno grupo no Brasil.

Trago o assunto hoje ao nosso quintal para falar de conversa muito interessante da qual fiz parte ontem sobre a voz do povo que vem se levantando na internet. O assunto começou por causa daquele programa emburrecedor chamado Big Brother Brasil. É aquela história de abuso sexual, que envolveu dois participantes depois de bebedeira. Não vou fazer render o ocorrido aqui porque isso é de muito baixo nível e prometi para mim mesmo não ceder espaço para o que não tem valor. O fato é que pelas redes sociais e pelo Twitter o abuso provocou verdadeira revolta em milhões de pessoas, o que levou a TV Globo a eliminar o suposto estuprador. Amauri e Oswaldo, excelentes pais de família, revoltados, decretaram a TV desligada ou em qualquer outro canal enquanto o tal programa estiver no ar. Já a Sueli e o Betão, muito politizados, chamam a atenção para a força que a internet provou ter com o episódio em questão.

Num outro nível, por meio das redes sociais, a sociedade civil organizada também mostrou força ao conseguir que o prefeito de Belo Horizonte vetasse o aumento de 61,8% dos salários dos vereadores. No mesmo dia em que o governo de São Paulo foi duramente criticado e combatido nos aparelhos eletrônicos (celulares, iPads etc) e computadores de todo o Brasil por ação desmedida no Bairro Pinheirinho (foto), com o uso de força policial de guerra para expulsar centenas de famílias assentadas em São José dos Campos, a 97 quilômetros de São Paulo. Até helicópteros e carros blindados foram usados na ação. Na grande rede o internauta não perdoou e espinafrou a operação. O que, naturalmente, deve respingar no governador Geraldo Alckmin, hoje muito mais antipatizado pelo poder sem limites da web.

Claro que a internet promove bobagens – como aquela gracinha, envolvendo a menina Luiza, no Canadá, que se tornou estrela da noite para o dia por causa de um comercial tosco na Paraíba –, mas, ainda que em mínima proporção, assuntos sérios têm se levantado no mundo virtual e o brasileiro parece, enfim, se despertar para os efeitos reais dessas mobilizações. Não só para punir um abusado em programa besta ou criar celebridades que não têm o que dizer, mas para transformar bites e kbites na voz do povo. Um indicativo, talvez, de que nem todo mundo é tão tolo quanto parece.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 25/1/12

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"Um Inimigo do Povo" no Palácio das Artes

Amanhã, dia 26, no Grande Teatro do Palácio das Artes (Av. Afonso Pena, 1.537 - Centro), às 20h30, tem "Um inimigo do Povo", de Henrik Ibsen. Espetáculo teatral imperdível, em única apresentação pela 38ª Campanha de Popularização Teatro e Dança de Minas Gerais. Ingressos a preços populares (R$ 10) nos postos do Sinparc e da Belotur.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Nem tudo é festa


Walker quis dar um tempo ao movimento dos últimos anos, desde que entrou para a empresa de ricaço, promotor de baladas em Belo Horizonte e Nova Lima. Quis janeiro diferente, já que, entra ano, sai ano, vivia de agitar bebedeira e pegação para os outros. “E em mim? Cadê a festa?”, perguntou-se no silêncio da madrugada.

Não conseguiu pregar o olho às 6h, quando chegou ao pequeno apartamento financiado a perder de vista. Sem tirar a roupa da moda – de profissional chique de boate da Zona Sul –, olhou para a mulher, Alessandra, linda, a dormir profundo, do lado direito da cama. No criado dela, sob a meia luz do abajur lilás, livro sobre a vida das abelhas.

Do lado dele, no pequeno móvel, nada de livro. Cartela apenas, com tubo de energéticos. Droga para dar conta do trabalho nas viradas dos fins de semana. Olhos avermelhados, coração aos pulos, respirou fundo, acariciando os cabelos negros da mulher de boas carnes e deixou a cama para andar pela rua do Bairro Paraíso. Precisava espairecer.

Walker rodou quarteirão com as mãos no bolso, chutando latinhas. Acendeu um cigarro: “O último. Agora é sério”. Vivia de fazer tal promessa para a mulher amada. Alessandra, companheira, sonhou vida diferente ao lado do marido. Conheceram-se durante o último ano do ensino médio em colégio público do Bairro Santa Efigênia. Enamoraram-se e, juntos, traçaram linha comum de afeto e vontades.

O trabalho na noite veio como oportunidade naquele ano. “Véi, é fino o trampo. A gente fica perto só de gente bonita, da alta, e ainda descola uma grana”, ofertou o sujeito, colega de sala. Alessandra, na época enamorada, até deu força. “Depois você arranja coisa melhor. É só por um tempo”, sorriu-lhe.

O tempo: 10 anos, oito meses e 15 dias, anotados em caderninho de bolso, hábito de garoto. No início, Walker até se divertiu e arrebatou relações de interesses. “Pobres garotos ricos”, rabiscou repetidas vezes na agenda, toda vez que ouvia conversa furada, sem valor. “Festa emburrece”. E como emburrece.

A padaria de esquina já estava com os portões de aço levantados. Walker entrou e pediu café sem açucar para ajudar a fluir o pensamento. O homem de jaleco branco e olho de vidro o atendeu sorrindo. O promouter sacou a cadernetinha do bolso e revisou garranchos em frases soltas, desalinhados nos últimos meses.

Em letra miúda, contou suas melhores passagens e se assustou com a soma: nenhuma alegria. Suspirou fundo para espantar a pobreza de espírito – às vezes dá certo –, deixou trocado sobre o balcão e voltou apressado pra casa. Lá, em pranto seco, amou a mulher, grávida de outro – um vizinho, talvez – como há muito não fazia.

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P.S.: Dia 26, quinta-feira, às 20h30, tem a peça “Um inimigo do povo”, no Palácio das Artes. Vai ser um prazer receber o amigo leitor no Grande Teatro.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 23/1/12

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O amor sem limites


Semana em família para fazer valer ainda mais a vida. Desde que meus garotos nasceram, e isso faz tempo, o mundo me trouxe novos valores. Quis a força das circunstâncias a distância: eles, no Espírito Santo; eu, em Minas Gerais. O leitor amigo, que acompanha Bandeira Dois, às quarta-feiras, sabe bem da história – já que, vez por outra, volto ao assunto. O fato é que, desde sempre, faço das tripas o coração para estar por perto. Não é nada fácil, mas, na medida do possível, dou conta de não deixar somar mês sem passar um fim de semana (ao menos) na companhia dos dois. Nas férias, duas vezes por ano, estamos sempre juntos. Dedicação recompensada pela amizade da ex-mulher, Norma, amiga da minha atual companheira. A mãe dos meus filhos – hoje, muito bem casada – sabe reconhecer a importância do respeito em família, mesmo que em dois endereços. Isso, tema de hoje, para reforçar a minha fé de que os filhos estão acima de qualquer casamento fracassado.

O assunto surgiu, domingo, provocado pela Lúcia Helena, paulista, recém-separada, velha conhecida da Violeta. A professora passou uns dias na nossa casa e disse ter se encantado pelo carinho dos meus filhos com a madrasta (e vice versa). Mãe da doce Maria, de 5 anos, Lúcia Helena está enfrentando a maior barra com o marido, dentista, que, segundo ela, está fazendo a cabeça da menina. “Não sei mais o que faço. A menina só quer saber do pai. Está lá, com ele, e disse que não vai mais voltar pra casa. Não sei mais o que faço. Tive até que sair de lá para espairecer…”, disse. Lúcia Helena contou também que há mais de ano, desde o divórcio, não conversa com o ex-marido, pai da Maria. “Ele resolve tudo com a minha mãe, porque não quero vê-lo nem pintado de ouro”. Conversamos muito. Ela ainda está bastante magoada com a separação. Não aceita o rompimento. “Ele disse que estava infeliz e foi embora. Voltou a morar com os pais. Assim: da noite para o dia”, desabafou.

Para Violeta, Lúcia Helena explicou detalhes do drama. O que penso, e disse isso a ela, é que a pequena Maria não pode continuar nesta situação, com os pais brigados, inimigos. Não é preciso estudar psicologia e ser pai de dois filhos muito amados para saber disso. Não é fácil, sei bem. Sempre alguém sai ferido na separação. Quando envolve crianças, então... Penso que, por mais difícil que seja, os pais precisam fazer de tudo pelo bem dos filhos. É pior quando a separação é marcada pela inimizade e pelo desafeto. Na praça, sei de casos aos montes em que situações assim fizeram crescer garotos cheios de problemas. Estou escrevendo apenas o que conversamos. A história está publicada com a autorização da Lúcia Helena, que, ontem, na rodoviária, despediu-se dizendo que, esta semana, vai “acertar os ponteiros” com o pai da Maria.

Mais tarde, em família, durante sorvete para festejar o sol, tive ainda mais certeza de que meu maior acerto na vida foi fazer de tudo para estar sempre por perto dos garotos. Importante também foi entender que a Norma deixou de ser minha mulher, mas continua mãe (e muito boa mãe). Antes da Violeta – mulher da minha vida –, parceiras que não entenderam isso passaram como ventania. Na alcova, viver de curtição com quem não tem compromisso é fácil. O difícil, por incrível que pareça, é aprender amar, respeitar e conviver com quem jamais foge das responsabilidades.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 18/1/12

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Sinimbu trabalha para sair da lama


O sol parece querer se firmar depois de temporada de desastres na Zona da Mata mineira. Milhares de pessoas, ainda em pesadelo sem fim, tentam manter forças para sair da lama e reconstruir o futuro. São famílias inteiras que perderam tudo pelas águas impiedosas dos primeiros dias de 2012. Quem passou por Guidoval (foto), Dona Euzébia e Além Paraíba, certamente, jamais vai esquecer os rastros de destruição deixados pelas tsunamis de lama, causadas pelas cheias que chegaram a atingir 15 metros de altura. Num lugarejo de nome desconhecido, na zona rural de Dona Euzébia, bem próximo a Cataguases, pequenos produtores de Sinimbu se movimentam como podem para voltar a ganhar o pão.

Pela estrada, gado perdido na pista, colocando em risco motoristas, e muito, muito cachorro vira-lata. Adiante, no vilarejo, com cerca de 50 famílias, que vivem de pequena produção agropecuária, o Rio Pomba fez estragos de dar dó na florista Vânia Oliveira Ribeiro, de 36, carioca de Nilópolis, na Baixada fluminense. Há 23 anos na roça da Zona da Mata mineira, Vânia diz que, ali, todo ano é a mesma história, mas, que, dessa vez, o Rio Pomba está um pavor. Mostra a encosta trincada de fora a fora na fazendinha em que vive com a família e aponta para o meio do rio: “Veja só... está vendo aquela árvore sozinha, com água até em cima do tronco? Ontem, dava para ver a areia da ilha”, compara. Isso, coisa de mais de metro.

Nas terrinhas vizinhas da floricultura, ranchos abandonados e mais rastros de devastação. O aposentado Vair Calixto, de 61, tenta dar jeito em destroços em quintal de pura lama. Mas sua maior tristeza é pelas seis vaquinhas magras que teve que vender barato: “Tinha nove. Tudo de estimação. Aí, pra não passar fome, tive que vender barato”, lamenta. Pior é a situação do vizinho granjeiro. José Roberto Araújo, de 38, perdeu todos os 21,5 mil pintinhos que criava, já encomendados. Um horror. No galpão destruído, o odor insuportável da criação morta, misturada à lama, sob telhado de amianto em pedaços, de onde ouve-se apenas o canto trágico dos pombos.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Sete dias na lama

Foram mais de 1,3 mil quilômetros percorridos na companhia de brava equipe de reportagem do Estado de Minas, da Zona da Mata mineira até o estado do Rio de Janeiro. O motorista Anderson de Oliveira e o repórter fotográfico Marcos Michelin não entregaram os pontos em jornadas diárias de mais de 16 horas em lugarejos e estradinhas de difícil acesso. Pelo caminho, cenas e personagens inesquecíveis... de apertar o coração. Duas dezenas de mortos e milhares de desabrigados, que perderam casas e viram sonhos levados por tsunami de lama e melancolia. De volta a Belo Horizonte, não está nada fácil colocar de novo a vida nos trilhos.
















Apenas águas de verão


O que pensar desse tal Fernando Bezerra Coelho, cabeça do Ministério da Integração Nacional? Os estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo se desmanchando e, ao que tudo indica, ele fazendo política com dinheiro público. Em Minas, na semana passada, ficou três horas em encontro com o governador. Bem que podia ter passeado pela Região Metropolitana de Belo Horizonte, feito turismo pela histórica Ouro Preto e dado uma passadinha pela Zona da Mata. Podia ter sido até pelo ar mesmo. De helicóptero ou avião. Desde que, claro, tivesse na janela para ver a desgraça que atingiu milhares de mineiros que perderam tudo. Muitos, ilhados, sem água potável, remédio, energia e telefone, chegaram a passar fome.

É de revoltar qualquer cidadão de bem. O velho Botelho, lá do Espírito Santo, assim como eu, também não se conforma. E olha que o homem é budista, calmo como uma plantação de romã. Conversamos muito por telefone e ele disse já ter perdido a esperança no poder público brasileiro. Até tomei nota na caderneta de papel pautado de trecho que ele me disse ontem, quando soube de mais mortos na catástrofe que causou muitos estragos em Sapucaia, no Rio de Janeiro e em Além Paraíba, na Zona da Mata mineira. Ele disse:

“Neste mais de 70 anos de vida, meu filho, vi a chuva causar muita desgraça. Mas nada parecido com o que está acontecendo agora. As cidades crescem, as pessoas vão ocupando o que é da natureza, muita gente em áreas de risco, sem ter recursos para viver com segurança, e, com isso, as tragédias se tornam cada vez mais comuns. Muito triste, todo ano, ver milhares de pessoas perderem suas casas, seus sonhos, suas vidas, Josiel. A gente vê o Brasil crescer, ganhar respeito internacional, virar potência na economia... imagina se houvesse menos corrupção? Imagine só, meu filho, se essa bandalheira que desvia verbas públicas, pinta e borda com o dinheiro público, colocasse a mão na consciência e desce ao Brasil o que é, de fato, do povo brasileiro... Hoje, não estou para muitas esperanças, Josiel”.

Não é fácil ouvir do pai, homem de bem e bom senso, sempre preocupado com o outro e de olho no futuro, depoimento assim. Isso, pai, só faz aumentar a minha revolta com o país dos privilégios e das relações de interesses. O que tenho visto tem tocado a minha alma e me tirado o sono. Fico a pensar no Brasil dos meus filhos e dos filhos dos meus filhos. No momento, também falta-me força e convicção para encará-los de frente e dizer-lhes que tudo isso são apenas águas de verão.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 11/1/12

Foto: Marcos Michelin/EM/D.A Press

domingo, 8 de janeiro de 2012

O país da cesta básica

Em trânsito desde quarta-feira, dia 4, pela castigada Zona da Mata mineira na companhia de brava equipe de reportagem do Grupo Diários Associados – Marcos Michelin (foto) e Anderson de Oliveira – , é muito difícil conviver com a politicagem que tenta fazer a cheia das águas, que aterroriza milhares de pessoas, de palanque eleitoreiro para oportunistas de plantão. Enquanto Fernando Bezerra, do Ministério da Integração Nacional, parece dar de ombros para o Estado de Minas Gerais, vários outros sujeitos interesseiros ensaiam sorrisos e apertos de mão pelas cidades mais afetadas pelas chuvas.

Em muitos municípios em situação de emergência, do alto dos casarões mais chiques, gente aparecida, de recurso, reunida, ensaia ações de ajuda e de projeção para forçar amizade e simpatia. Em meio a destroços aqui e ali, com suas bravas picapes importadas e botinas de ocasião, pretensos candidatos se aproveitam para tentar enfraquecer prefeitos, vereadores e lideranças comunitárias. Assim como alguns burocratas de gabinete, na calada, perseguem opositores e demitem desafetos.

Do outro lado, miúdo, o cidadão eleitor, morador da beirada de rios, passa longe dos gigantes pobres de intenção. É muita gente sofrida, catando restos pela sobrevivência. Em diversos cantos da região mais afetada de todo o estado de Minas Gerais, são milhares de desabrigados a esperar por ajuda efetiva. As enchentes e os desastres que se repetem entra ano, sai ano, só nos primeiros dias de 2012, deixaram mais de 100 municípios mineiros em situação de alerta.

Em muitos deles, o que se vê de perto, com o pé na lama, ou pelo noticiário, é o desespero de gente humilde, sem casa e centavo, carente de futuro. Mineiros sofridos que já tiveram suas casas destruídas por enchentes passadas e que, hoje - depois de receber sorriso, aperto de mão e colchãozinho -, vivem de aluguel e fé de que ainda (quem sabe) vão ter novo teto. “O que esperar de país que gasta muito mais para remediar do que para prevenir?”. É o que mais se ouve entre os esclarecidos em pracinhas destruídas. Os mais humildes, fedidos e sujos de barro, têm pergunta mais curta: “O senhor dá cesta básica, moço?”.

É de partir o coração.


Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 9/1/12

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Rio-BH em 30 horas


Km 584, da BR-040, próximo ao trecho interditado em Itabirito



Próximo a Conselheiro Lafaiete


Foram 30 horas para vencer pouco mais de 600 quilômetros – de Paraty, no Rio de Janeiro, a Belo Horizonte, Minas Gerais. Com a notícia da interdição nos dois sentidos da BR-040, em Itabirito, pousada para madrugada de descanso em Juiz de Fora. Pela manhã, a notícia da liberação da rodovia. Pé na estrada. Falta pouco: 250 km. Em dia comum, sem pressa, coisa de 3 horas. Não era dia como outro qualquer. Nova queda de barreira voltou a interditar a BR e acrescentou mais 5 horas de suplício. O rádio anuncia 10 quilômetros de engarrafamento sentido BH e 5 quilômetros rumo ao Rio. Paciência. O importante era chegar bem.

A saga da volta para casa começou na segunda-feira, dia 2, às 10h, em estradas cariocas. Apesar da chuva sem trégua, de Paraty até Paraíba do Sul, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o tráfego fluía. Até que uma carreta de São Bernardo do Campo, São Paulo, bateu de frente com carro popular no Km 181 da Rodovia Lúcio Meira, em Três Rios, matando Jonathan Soares Sabino, de 24 anos. Do carro de passeio, apenas restos espalhados pelo asfalto. Durante a tarde, depois de hora de interdição, a liberação da pista foi alternada nos dois sentidos, provocando congestionamento de quilômetros.

Em Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira, primeira manhã de sol de 2012. Até Conselheiro Lafaiete – cerca de 170 quilômetros –, duas horas de tranquilidade ao volante. Dali por diante, horas de lentidão e paradas nas duas mãos para operação de retirada da lama no Km 583, da BR-040, em Itabirito. Os vizinhos de asfalto também contam aventuras. Bruno Dias, de 21 anos, e Érica Borher, de 33, também estão há quase 30 horas na estrada, vindos de Arraial do Cabo (RJ). Isabelle de Araújo, Ana Tereza e Giordana Schettino, saíram cedo de Leopoldina. No entanto, não perdem o bom humor. Sob sombrinhas, chamam a atenção na beira da estrada porque são só sorrisos em meio a muita gente de cara amarrada e com fome.

Ronald Pereira Pena, de 26, taxista, deixou Entre Rios de Minas às 11h30. Já são mais de cinco horas de batente. Em corrida até Betim, Região Metropolitana de Belo Horizonte, leva para casa os garotos Alejandro Estevão Ferreira Costa e Wendel Iglander, ambos de 11, que voltam de passeio de fim de ano na Zona Rural. “Ainda bem que os meninos almoçaram. Eu seguro a onda. Tenho que segurar. Hoje, ainda vou fazer o caminho de volta”, afirma o motorista do táxi vermelho. Casal mais velho corta a estrada em busca de banheiro. O homem de barriga e cabeça branca abre o guarda-chuva para fazer “cabaninha” para a mulher fazer xixi. Do outro lado, o rapaz tatuado deixa o volante para fazer andar o skate “na falta do que fazer” no acostamento.

Depois de vencer o Km 583, parada no Mirante da Serra, na beira da estrada. A proprietária Zilda Santana, de 52, diz que, em 14 anos, nunca viu tanto movimento no estabelecimento. Conta que seu faturamento triplicou nas últimas 24 horas com a queda da barreira. Mas não faz cara de satisfação. Solidária ao drama dos mais velhos e das crianças – os mais prejudicados com o caos na rodovia –, reclama: “Esse trecho não tem jeito. A gente não pode ter nem telefone público”. Líder do negócio em família, diz que fez de tudo para oferecer o melhor atendimento possível, mas “com tamanho movimento, nem tem jeito”. Nos dois banheiros, marcas da multidão. Mais tarde, em casa, só as chinelas para dar jeito no cansaço pela saga ao volante.



Bruno Dias e Érica Borher levaram mais de 30 horas de Arraial do Cabo (RJ) a BH


Isabelle, Ana Tereza e Giordana Schettino



Alejandro Estevão (ao fundo) e Wendel Iglander penaram na volta para casa



Zilda mal deu conta do atendimento

A capital mundial do teatro



Esta semana, Belo Horizonte deixa para trás o título de capital mundial dos botequins para dar espaço ao teatro, com a 38ª Campanha de Popularização do Teatro e da Dança de Minas Gerais. Seguramente, com dezenas de espetáculos em cartaz a preços populares, a cidade volta a movimentar milhares de pessoas em torno das artes cênicas, como faz todo ano. Tem drama, tragédia, comédia, teatro do absurdo, experimental, cabeça e ét cetera e tal. Há quase 40 anos, os produtores locais se reúnem em grande festa para celebrar as produções do ano e, também, sucessos de tempos passados – que se repetem porque caíram nas graças da plateia.

Desde garoto, não perco uma campanha de popularização do teatro. O velho Botelho, sempre ele, aplicou-me histórias inesquecíveis levadas à cena pelos artistas de BH. Na companhia do pai, conheci Maria Clara Machado (O rapto das Cebolinhas, A bruxinha que era boa, A menina e o vento, Maroquinhas Fru-Fru, O cavalinho azul, Tribobó City, Maria Minhoca, entre outros), Maurice Maeterlink (O pássaro azul), James Barrie (Peter Pan), Lyman Frank Baum (O mágico de Óz). Depois, adulto, conheci outros autores que mudaram a minha vida: Ariano Suassuna, Guarnieri, Vianinha, Shakespeare, Kafka, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, Ibsen, Molière, Eugene O’Neil, Tennessee Williams, Samuel Beckett, Ionesco, Brecht, Durrenmatt e mais um monte de gente bacana.

No batente da praça, até fiz amizade com autores, atores e diretores da cidade, que me dão muito orgulho de ser mineiro. Não vou citá-los aqui porque posso esquecer algum nome e não quero cometer nenhuma injustiça. O que posso dizer é que, embora muita gente não saiba, há em Belo Horizonte muitos artistas desconhecidos do grande público, que não ficam atrás de nenhuma estrela da TV ou do cinema. Aliás, fica a dica para quem está cansado das mesmas caras de sempre… vá ao teatro ver ao vivo, amigo leitor. Depois, me diga se tenho ou não tenho razão. O Adelson nunca tinha ido ao teatro. Aí, há uns cinco anos, ele foi ver um drama na campanha de popularização e enlouqueceu: “Josiel, os caras mandam bem demais! Fiquei fã!”.

Desde então, vai ao teatro durante todo o ano. Em janeiro e fevereiro, durante a campanha, volta com amigos e familiares. Aprendeu a gostar de tudo um pouco: drama, comédia e peças para crianças. “Prefiro as histórias mais fortes, mas também gosto muito dos comediantes. Tem muita gente boa, que sabe fazer a gente se divertir no teatro”, disse, ontem, quando o assunto foi a temporada que começa amanhã. A Violeta, outra apaixonada pelo teatro, já fez lista com os espetáculos que não quer perder na campanha deste ano. Já enviou até e-mail para arrebanhar os amigos para o programa. “O que é bom tem que ser compartilhado”, justificou. Eita, Violeta!

Resolvi dedicar nossa Bandeira Dois de hoje ao teatro porque, domingo, primeiro dia de 2012, encontrei-me com amigo ator que vai estar em cartaz na campanha e achei interessante a fala dele: “Josiel, escreve lá no Aqui sobre a campanha. Não precisa falar do meu espetáculo. Quero é que as pessoas vejam que aqui, na nossa cidade, tem um movimento teatral maravilhoso, com artistas extraordinários que dão um duro danado para sobreviver da arte. Diz lá que BH não é a roça que muita gente pensa”. Taí, Zinho! A BH que a gente ama tem o maior movimento popular de teatro do Brasil.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 4/1/12

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

O Altamir e a virada do ano



Altamir, de 38 anos, corretor de imóveis, acordou e não reconheceu a mulher comprida a dormir profundo, com ele, de conchinha. Cheirou as longas madeixas louras que lhe invadiam o nariz e não reconheceu o perfume cítrico da nuca. Afastou-se com cuidado para não acordar a parceira e acabou por esbarrar numa garrafa de vodka barata, vazia, a cutucar-lhe o quadril. Levantou o lençol e só aí se deu conta de que, assim como a boazuda, também estava nu. Empenhou-se fundo no resgate da memória e nada. Não fazia a menor ideia de como havia chegado naquela situação. Com o corpo doído, fechou os olhos numa nova tentativa de esquadrinhar o ocorrido: “Réveillon… Isso! Hoje é 1º de janeiro! Claro! Mas… e ela? Quem é ela? E que casa é essa?”, quis muito saber.

Não era casa. Era um quarto e sala do Edifício Maletta, na Região Central, bem decorado, com pintura especial, em pátina, em todas as paredes azuladas. Sentado na cama, não avistou nenhum de seus pertences. No criado-mudo, um celular cor-de-rosa. Não resistiu e catou o aparelho para ver se encontrava alguma pista. Abriu pasta de mensagens, de últimas ligações… nada. Entre as fotografias armazenadas, surpresa: a loura e ele, vestidos de branco, sorridentes até, de rostinhos colados, em brinde cheio de entusiasmo, tendo ao fundo o sol nascente na lagoa da Pampulha. Data e hora do retrato: sete horas antes, naquele mesmo 1º de janeiro. “Caracol sem casa! Que parada é essa?”, confundiu-se. Ainda mais com outras duas imagens, nas quais mandava ver narguilé de olhinhos virados.

O rádio relógio dispara: alarme com canto meloso de frangote: “Mas se mesmo assim, quiser me deixar, as lembranças vão na mala pra te atormentar”. Um tal Luan Santana. “Isso não! Até parece castigo”, estapeia o rádio que pisca meio-dia. A loura nada. Altamir toca o ombro da moçoila: “Ei! Ou! Psiu!”. Nada. O sono é profundo e a expressão da figura é a melhor possível. Tem carinha de quem está felicíssima. “Feia não é. Ao menos isso”, pensou alto. Não era a primeira experiência estranha do corretor. Lembrou-se de quando acordou ao lado de tribufu banguela e fedorenta, numa quarta-feira de cinzas, num casão de luxo de bairro chique da Zona Sul.

Reuniu forças, levantou-se, andou pelo apê e nada das roupas. “Putz! Minha cueca, minha carteira, as chaves da minha casa, do carro… cadê meu carro?” Nada. Nenhum fiapo de memória recente. Por último, na lembrança, a peleja para estacionar próximo ao Redondo. Repassou a recordação da noite até o momento em que saiu de casa, no Bairro Buritis, por volta das 22h30. Estava triste por ter levado fora da noiva depois de dois anos de idas e vindas. “Não fosse a Lu, não tava neste aperto”, considerou. A loura se espreguiça e ressona manhosa. Abre os olhos sem pressa e dá de cara com o Altair de pé, enrolado ao lençol, num canto do ambiente. Com a voz inconfundível de travesti, sorri com seus dentes de homem: “Bom-dia, bebê!”.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho