Fim de semana de trabalho na cidade histórica de Mariana. Lugar
aconchegante, de povo hospitaleiro e muito querido. O duro foi a
ausência de Violeta, que ficou em Belo Horizonte na companhia da mãe. A
mulher amada está ainda mais linda, grávida de sete meses. E a gente,
cada vez mais juntos, porque assim é a vida que compensa: somar para
acrescentar. Boa relação é aquela em que o amor tem mão dupla. Pode até
demorar, mas, um dia, a melhor união se ajeita – mesmo que para isso
seja necessário vencer tormentas.
Na volta de Mariana, depois de dia e noite de trabalho no Festival de Inverno, de carona no ônibus especial da equipe, a caneta correu solta na caderneta de papel pautado. Bem perto de ser pai pela terceira vez, o pensamento tem andado numa velocidade difícil de controlar. Cresci ouvindo o velho Botelho falar em liberdade. Liberdade é, sem dúvida, a palavra que mais ouvi, em família, nestes 40 anos de vida. E deu que nos fundos da pousada em que ficamos, bem na divisa do meu quarto, estava o presídio da região.
Só fui saber pela manhã, ao abrir a janela. Foi um choque ver os sujeitos de cabeça baixa e com as mãos para trás atravessando o corredor, sob o olhar atento da guarda armada de plantão, no alto, próximo ao topo do muro de arames cortantes. Fiquei ali por minuto, sem ação, com os olhos voltados para a imaginação do tempo perdido de toda aquela gente sem liberdade. Num outro cômodo dividido por muro grosso, cena curiosa: presidiária uniformizada passava a vassoura no quintal e, ao mesmo tempo, chutava uma bola murcha, sem rumo. Brincadeira para ajudar a passar o tempo, talvez.
A mulher, de no máximo 30 anos, cantarolava baixinho. Ora um chute na bola, ora a piaçava no cimento grosso. Do outro lado, tomando banho de sol no pátio, dezenas de detentos. No ar, vozes formavam coro confuso, barulhento. “Bom dia!”, disse um dos presos de timbre soturno, invisível abaixo da muralha branca. Silêncio. “Bom dia”, ele repetiu. Quando abri a boca para responder, mesmo sem vê-lo, uma mulher no andar de cima soltou a voz em meu lugar: “Bom dia”. O homem completou: “Ah, agora sim. Deus te abençoe!”, encerrou o assunto.
Voltei-me para o quarto e lamentei a condição de todos aqueles sujeitos. Não pode haver crime que compense a falta de liberdade. Está aí uma coisa que jamais entrou na minha cabeça. Sempre evitei as drogas e todas as sujeiras da alma por medo de perder a lucidez e a liberdade. Quando tive um primo, quase irmão, preso com mais de quilo de maconha foi um choque e tanto. Eu devia ter uns 8 ou 9 anos. Na época disseram-me que ele tinha viajado. Até que o velho Botelho teve uma conversa de homem para homem comigo, mais de ano depois.
Disse-me muitas coisas sobre liberdade e “armadilhas do mundo”. Nunca me esqueci dessa conversa. Ao fim do assunto, recebi um carrinho de madeira, feito pelo meu primo na penitenciária. Meu pai tinha ido visitá-lo. Todo mês ele ia vê-lo. Daquela vez, o primo me mandou o presente. Também mandou um recado escrito em papel de pão. Terminou a mensagem assim: “Escuta sempre o tio, Josiel”. Algumas passagens marcam muito a vida da gente, amigo leitor. Meu primo nunca mais foi o mesmo. Deixou a cadeia uns três anos depois e foi morar no interior. Morreu nos anos 1990. Para muitos, de tristeza.
Na volta de Mariana, depois de dia e noite de trabalho no Festival de Inverno, de carona no ônibus especial da equipe, a caneta correu solta na caderneta de papel pautado. Bem perto de ser pai pela terceira vez, o pensamento tem andado numa velocidade difícil de controlar. Cresci ouvindo o velho Botelho falar em liberdade. Liberdade é, sem dúvida, a palavra que mais ouvi, em família, nestes 40 anos de vida. E deu que nos fundos da pousada em que ficamos, bem na divisa do meu quarto, estava o presídio da região.
Só fui saber pela manhã, ao abrir a janela. Foi um choque ver os sujeitos de cabeça baixa e com as mãos para trás atravessando o corredor, sob o olhar atento da guarda armada de plantão, no alto, próximo ao topo do muro de arames cortantes. Fiquei ali por minuto, sem ação, com os olhos voltados para a imaginação do tempo perdido de toda aquela gente sem liberdade. Num outro cômodo dividido por muro grosso, cena curiosa: presidiária uniformizada passava a vassoura no quintal e, ao mesmo tempo, chutava uma bola murcha, sem rumo. Brincadeira para ajudar a passar o tempo, talvez.
A mulher, de no máximo 30 anos, cantarolava baixinho. Ora um chute na bola, ora a piaçava no cimento grosso. Do outro lado, tomando banho de sol no pátio, dezenas de detentos. No ar, vozes formavam coro confuso, barulhento. “Bom dia!”, disse um dos presos de timbre soturno, invisível abaixo da muralha branca. Silêncio. “Bom dia”, ele repetiu. Quando abri a boca para responder, mesmo sem vê-lo, uma mulher no andar de cima soltou a voz em meu lugar: “Bom dia”. O homem completou: “Ah, agora sim. Deus te abençoe!”, encerrou o assunto.
Voltei-me para o quarto e lamentei a condição de todos aqueles sujeitos. Não pode haver crime que compense a falta de liberdade. Está aí uma coisa que jamais entrou na minha cabeça. Sempre evitei as drogas e todas as sujeiras da alma por medo de perder a lucidez e a liberdade. Quando tive um primo, quase irmão, preso com mais de quilo de maconha foi um choque e tanto. Eu devia ter uns 8 ou 9 anos. Na época disseram-me que ele tinha viajado. Até que o velho Botelho teve uma conversa de homem para homem comigo, mais de ano depois.
Disse-me muitas coisas sobre liberdade e “armadilhas do mundo”. Nunca me esqueci dessa conversa. Ao fim do assunto, recebi um carrinho de madeira, feito pelo meu primo na penitenciária. Meu pai tinha ido visitá-lo. Todo mês ele ia vê-lo. Daquela vez, o primo me mandou o presente. Também mandou um recado escrito em papel de pão. Terminou a mensagem assim: “Escuta sempre o tio, Josiel”. Algumas passagens marcam muito a vida da gente, amigo leitor. Meu primo nunca mais foi o mesmo. Deixou a cadeia uns três anos depois e foi morar no interior. Morreu nos anos 1990. Para muitos, de tristeza.
Bandeira dois - Josiel Botelho - 18/7/12
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