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sábado, 14 de julho de 2012

Jornalismo de valor




João Paulo e Zuenir Ventura, dois dos mais importantes colaboradores de Vida Bandida – em exemplo e inspiração –, estão juntos, hoje, no Pensar. Estado de Minas. Página 2, Olhar:

Casos de Família

Por João Paulo*

Zuenir Ventura (foto) tem uma obra jornalística dessas que fazem acreditar na profissão. Quando, já maduro, decidiu escrever livros com suas reportagens, teve a humildade de começar de novo. O caso merece atenção. Jornalista, por definição, deveria ser habitado pela virtude socrática do “só sei que nada sei” e carregar a humildade como uma segunda pele. Não é o que se vê. Zuenir, além do mais, fez o caminho inverso. Depois de se aposentar como editor e passar pelas principais redações do país, pegou a caderneta e a caneta e foi apurar suas histórias na rua.

O resultado foram livros importantes para o Brasil, a começar por 1968, o ano que não terminou, que a partir de um réveillon festivo puxou o fio de uma história cultural do pesadelo que tomou conta do país com a decretação do AI-5. Um livro sobre a sensibilidade de uma época que tinha muito a dizer aos leitores de muitas décadas depois. O que parecia ser passado se revelou como uma utopia interrompida. É livro que dá vontade de viver.

Em seguida, o repórter escreveu Cidade partida, um livro que revelou o que estava na cara de todo mundo, mas que teimava em se esconder sob a capa da ideologia. O Rio de Janeiro não continuava lindo, exibia uma fratura social que ameaçava romper a cidade em duas realidades em guerra: de um lado o asfalto, de outro a periferia. A lei que valia num polo era letra morta no outro. Além disso, a atmosfera de beligerância estava por um fio para inaugurar uma guerra civil indisfarçável.

O que o livro permitiu, entre outros resultados, foi trocar o preconceito contra o “inimigo” pela responsabilidade pela injustiça nossa de cada dia, que convocava a ações de inclusão. Tudo o que veio depois, do movimento Viva Rio a várias ONGs, tem um pouco dívida com Cidade partida. Uma reportagem que ajuda a mudar o modo de ver o mundo, atacar preconceitos e melhorar, na medida do possível, a cidade em que vivemos, cumpriu a melhor parte de seus propósitos.

O velho Zuenir foi ainda ao Acre acompanhar o julgamento dos matadores de Chico Mendes e trouxe para o leitor todo o teatro de um julgamento no meio da mata, que concentrava o interesse do mundo e as contradições de nosso tempo entre o valor da vida e o valor da riqueza a qualquer preço. O repórter fez ainda o que todo manual de jornalismo desaconselha, mas que a ética humana prescreve: se imiscuiu no julgamento e trouxe uma testemunha (um rapaz) para morar com ele e assim protegê-lo de perseguições.

Chico Mendes – Crime e castigo tem ainda mais uma lição de jornalismo: o exercício da memória responsável. Depois de escrever sobre o assassinato e o julgamento, o repórter voltou à cena do crime, 15 anos depois, para mostrar o que havia mudado desde então. Todo mundo sabe o que ele encontrou, mas muitas vezes preferimos a docilidade do esquecimento ao compromisso com a verdade que precisa ser retomada com o passar do tempo.


Invenção e memória

Na casa dos 80 anos, Zuenir ataca de romancista com Sagrada família (Editora Alfaguara, 226 páginas, R$ 36,90). É livro de memórias pessoais mescladas com fantasia, que tem como epígrafe um verso do poeta pantaneiro Manoel de Barros: “Só dez por cento é mentira, o resto é invenção”. Possivelmente, o mais inverossímil deve ser verdade, como sempre acontece na vida.

A história se passa na cidade serrana de Florida. Um lugar muito frio, com a geografia das pequenas cidades fluminenses, com suas pracinhas arborizadas, igrejas, clubes e zona boêmia. Em pleno começo dos anos 1940, o menino Manuéu (grafado dessa forma por um erro do escrivão) passa as férias na casa da tia Nonoca, de 37 anos, que tem duas filhas, Cotinha e Leninha, de 15 e 14 anos.

Se o contexto político lembra a era Vargas e o momento de decisão sobre que lado da Grande Guerra o país iria apoiar, o ambiente humano é marcado mais pelas paixões da carne do que por qualquer outro estímulo. Como explicitou Freud, tudo é sexo. Quem não faz sexo fala de sexo. Em Sagrada família a sacanagem, falada e vivida, corre solta.

Os 37 anos de Nonoca – hoje uma idade mais perto da juventude que da maturidade – são vividos quase como um exílio dos chamamentos da carne. Mas apenas para efeito externo. A jovem viúva não perdoa o desejo, mas não se exibe. Logo na primeira cena, Manuéu acompanha a tia até a farmácia, onde ela recebe injeções três vezes por semana. Tem metáfora que não precisa explicar.

Além da família do narrador, outros personagens compõem o panorama moral de Florida, entre eles o violento e carismático Douglas e seu irmão, Tony; dona Edith e suas meninas da Vila Alegre, na zona de meretrício; os tuberculosos anônimos que frequentam a cidade em busca de tratamento. A trama por vezes sai de Florida e vai até o Cassino da Urca, onde acompanha visita de Orson Welles.

Tudo descrito a partir da ótica provinciana de uma família cheia de esqueletos no armário (alguns deles revelados ao final da trama, já nos dias de hoje). Há um misto de Nelson Rodrigues com Lúcio Cardoso: tudo que não é dissipação cheira a segredo. O mineiro Zuenir, embora se reinvente fluminense em seu romance, não deixa de lembrar o cheiro de vela e amores adulterinos no ar. O autor é craque na criação da atmosfera, mas parece compreender tudo. O que, em matéria de ficção, pode ser uma demasia.




Estilo é tudo

Zuenir Ventura já havia se aventurado na ficção com Inveja, livro que, no entanto, trazia alguns macetes do jornalista, como a apuração benfeita sobre o assunto. Em Sagrada família o escritor, desde o primeiro momento, decide colocar a memória a serviço da boa história. E conduz o livro com mão segura, com espaço para humor, um pouco de suspense e erotismo que se equilibra entre o espanto do jovem e a pressa das mulheres que se julgam velhas. Sensualidade é o momento em que a idade não conta.

No entanto, num romance que ensina tanto sobre a família, o Brasil e os desejos inconfessáveis, Zuenir talvez tenha escrito tudo com muita classe. O hábito da clareza, que é uma gentileza do jornalista, às vezes pede um pouco de sombra quando se aproxima de zonas menos luminosas do psiquismo e da moral. Não que escrever bem seja defeito, mas por vezes um pouco de desafio obriga a pôr em ação outros prazeres da leitura. Sagrada família é um romance que se lê com prazer e com senso de reminiscência, mesmo quando as experiências não fazem parte do repertório do leitor. Mas o que diverte nem sempre estimula a querer mais.

Ao mesclar memórias pessoais e invenção, o autor pode ter acertado mais na fantasia que na reconstrução de época que lhe ditou a razão e o discernimento. A passagem para o romance encontrou um narrador maduro na pele de um romancista que começa a trilhar o caminho que tem tudo para nos dar grandes histórias. Até que o criador, daqui a um tempo, se emparelhe com o jornalista. O que é um desafio e tanto.



Estado de Minas - Caderno Pensar - 14/7/12

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