Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

terça-feira, 10 de julho de 2012

Os filhos de Irene

Texto: Jefferson da Fonseca Coutinho
Foto: Beto Magalhães/EM/D.A Press


No início dos anos 1990, no Bairro Lagoinha, Região Noroeste de Belo Horizonte, na esquina das ruas Além Paraíba e Adalberto Ferraz, a presença constante de crianças e adolescentes largados, sujos, delinquentes, chamava a atenção de moradores e trabalhadores do entorno da Igreja Nossa Senhora da Conceição. Para a maioria dos cristãos do quarteirão, uma deformidade social que precisava ser combatida. Para grande parte da vizinhança, um desrespeito que atrapalhava o comércio, enfeava endereços e assombrava a paz. Na ponta da discórdia, uma médica estrangeira, loura, de olhos azuis e coração enorme: Irene Adams, holandesa, imunologista, voluntária, decidida a impedir o avanço das contaminações pelo vírus da Aids entre os meninos de rua. Na casa de apoio, atraída pelo pão e pelo cobertor para os tempos de fome e frio, a meninada acabava recebendo também o carinho da doutora, de plantão, disposta a ensinar o amanhã. Em 2012, passados mais de 20 anos, a clínica Ação Multiprofissional com Meninos em Risco (Ammor) já acolheu 2.509 menores, dos quais 28 soropositivos. Juntos, duas gerações somam os “filhos” de Irene, viúva, mãe e avó, que, longe da família – na Europa e nos Estados Unidos –, vive de lançar luz ao futuro de quem não conhece esperança.

Doutora Irene Adams, de 72 anos e sotaque carregado, fala da afilhada Marlene, de 40, com a satisfação de quem acompanha a realização dos filhos: “Ela esteve comigo em 1989, quando nos conhecemos. Hoje, ela tem marido, filhos e acabou de ser avó. Até hoje vem fazer ‘check-up’ comigo”. Diz-se feliz pela amizade fortalecida com a menina saudável e crescida, retirada das ruas. Sorriso aberto, o semblante é de quem aprendeu a sorrir com a alegria do outro. No apartamento modesto, bem próximo à tumultuada Avenida Cristiano Machado, pilhas de papéis sobre mesas e bancadas da sala. “Não repare, sou uma workaholic”, faz menção à condição permanente de pouco sono e muito trabalho.

Elegante, de roupa social econômica – calça, camisa e paletó –, tem nos pés tênis surrado. Especialista em imunologia, com passagem por diversos países, não é de falar de si. Com relógio de plástico no pulso, mostra-se simples, atenta apenas ao necessário para levar adiante uma vida missionária. “Não gasto com relógio caro e não tenho nenhum tipo de joia. O pouco me basta. Sou uma pessoa frugal”, considera-se. O carinho pelo Brasil aumentou na década de 1970, em viagem com o marido, funcionário de multinacional, para o Rio de Janeiro. Na década seguinte, no surgimento da Aids, já era médica em Belo Horizonte. Tinha interesse intelectual pela doença e amor arrebatador pelas crianças de rua, segundo ela, “alvo pontecial para a proliferação do vírus”.

“Como médica, trabalhando há tempos com doenças autoimunes, veio a Aids, uma doença relativamente nova. Eu conseguia lidar bem com pacientes com câncer nessa situação potencialmente fatal, mas, com a Aids, descobri que era diferente”, conta, que também é oncologista. Irene revela que foi tocada pelo preconceito e por toda a culpa que chegava junto do vírus HIV. Para a doutora, a pessoa com Aids precisava de muito mais que um médico. Emocionada, faz voltar os ponteiros da própria história: “Fui uma criança muito doente. Lembro-me aos 4 anos quando entrava num consultório, sofrendo, e vinha a pessoa de branco… só a presença dela já me tranquilizava. Foi quando, pequena, decidi ser médica e ajudar os outros”.

O início
Para a doutora, a Aids trouxe a necessidade de um novo profissional da saúde, bom ouvinte, atento às particularidades vindas no rastro do novo mal, que dava o que falar em todo o mundo. Em 30 de abril de 1987, durante comemoração do Dia da Rainha, feriado importante na Holanda, Irene conheceu um casal de voluntários que estava no Brasil trabalhando com menores de rua. Da conversa sobre Aids e crianças abandonadas, a pergunta: “O que aconteceria se uma criança de rua fosse contaminada?”. Foi o suficiente para que a holandesa abraçasse a causa e decidisse fincar raízes na capital mineira.

No início, entre os principais aliados, a Arquidiocese de Belo Horizonte por meio da Pastoral do Menor, e o colega imunologista da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Dirceu Bartolomeu Greco. “Foi quando conseguimos verba para um projeto de prevenção entre os meninos de rua. Nessa época, a pastoral ganhou espaço no porão da Igreja Nossa Senhora da Conceição e os meninos compareciam por causa da casa de apoio”, diz. Das descobertas na nova missão, Irene destaca “a pessoa dentro da pessoa”. A médica missionária considera que mais que ajudar, é preciso acreditar nos desfavorecidos. “É preciso entender que dentro de um menor infrator tem uma pessoa que precisa de ajuda”, diz.

“Ele não quer muito. Quer ser tratado como pessoa. Muitos garotos voltavam com frequência para o ‘check-up’ para o contato com a clínica, apenas para que pudessem ser olhados sem medo. Para se sentirem respeitados. Pense bem: já não têm família e ainda vivem sob o olhar do medo e da discriminação. Que futuro poderiam ter? Não é um trabalho de atendimento médico apenas. É ação. É resgate”, explica. “A Aids era de menos. A doença, em média, depois da contaminação, leva 10 anos para os primeiros sintomas. A maioria das crianças de rua não tinha essa perspectiva de vida. Imagine: todo mundo dizendo ‘você não presta’, ‘você é criminoso’. O menino passa a acreditar nisso, porque tem baixa autoestima”, ressalta.

Irene conta que hoje 90% das crianças acolhidas pela Ammor vieram de abrigos. Felicidade e orgulho se confundem no azul iluminado dos olhos. Para a doutora, impossível não ficar feliz com o resultado da força-tarefa pela proteção dos pequenos carentes. “Hoje temos o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Conselho Tutelar, que movimentam toda uma rede de proteção ao menor. Tenho muito orgulho de morar em Belo Horizonte, de ser cidadã honorária da cidade. Sinto-me parte dessa rede. Seria impossível realizar sozinho algo dessa natureza”, considera. No entanto, para a missionária, os avanços ainda estão longe de eliminar os problemas.

“A grande maioria dos menores vem de famílias esfaceladas. Estão nos abrigos porque as famílias continuam desestruturadas, porque não há referências de uma vida diferente. Porque falta amor, respeito. Temos uma equipe que vai aos abrigos e trabalham dinâmicas com educadores e educandos do lugar. Uma pergunta muito importante na qual eles aprendem a pensar é ‘quem sou eu?’. É preciso que eles se reconheçam e ganhem confiança, acreditem num novo caminho”, sugere. Irene diz que a certeza de que seu trabalho está na direção correta vem do retorno de seus afilhados. “Muitos meninos que passaram pela clínica, voltam. Não para pedir dinheiro, mas em busca de um olhar de carinho.”

Família
Os filhos de sangue estão longe. Um nos EUA, onde atua como representante comercial. A outra, engenheira, faz carreira na Bélgica. Não são eles ou os netos a maior preocupação da doutora. São os filhos “adotados”, invisíveis, os que tiram seu sono. Entre 1992 e 1996, a imunologista trouxe recursos de organizações holandesas para as crianças de Belo Horizonte. “O apoio foi interrompido porque eles disseram que o Brasil é um país rico, que aqui o problema é a distribuição de renda”, conta. Irene Adams critica a falta de tradição do brasileiro em ser voluntário. Lamenta a falta do hábito de doações regulares aos projetos sociais que ajudam a combater as diferenças.

“Na Holanda, nos Eua, isso é muito diferente. Meu sonho é de uma nova consciência que dê sustentabilidade aos trabalhos sociais. Lutar pela cidadania dos outros é ganhar a minha cidadania. Aqui, eu não tenho direito ao voto, mas vocês precisam votar muito certo. Por vocês e por mim”, provoca. Solitária, imersa em mundaréu de compromissos, lazer só tarde da noite, com os filmes Amor impossível, de Lasse Hallström, e Para Roma, com amor, de Woody Allen, anotados na agenda. Para encerrar a conversa, o desejo de quem aprendeu amar as crianças de Belo Horizonte, de graça: “Já comprei meu abrigo no Cemitério do Bonfim. Quero ser enterrada na cidade onde aprendi a viver”, sorri.








SAIBA MAIS: PROJETO AMMOR
(Foto:Victor Schwaner/Divulgacao)
 
O foco do projeto está no desenvolvimento humano de excluídos. As pessoas são motivadas a procurar atendimento médico pela informação e prevenção. Com isso, o paciente tem a autoestima resgatada, a cidadania e a convivência com a família. Em 2006, com o fechamento da Clínica Nossa Senhora da Conceição (CNSC) –projeto da Arquidiocese de Belo Horizonte que acolhia pacientes com câncer terminal e portadores do vírus HIV – serviços sociais importantes ficaram sem teto. A imunologista Irene Adams resolveu integrá-los à Clínica Ammor. Assim, o projeto integra ações como o Comvidha, de assessoria jurídica; o Papel e Cia, de capacitação por meio de oficinas de artes; a Academia de Ginástica Movimento Saúde, a Cooperativa Grupo Solidário, além do atendimento às crianças e adolescentes em risco social. Informações: (31) 3444-3877 e 9503-8277.

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