Arquiteto é pouco. Um mestre das artes cênicas de Minas. Nos últimos 50 anos, são bem poucos os bons espetáculos produzidos em Belo Horizonte que, direta ou indiretamente, não tiveram a participação de Raul Belém Machado. Seja no teatro, cenário, figurino, objetos ou adereços projetados por ele, seja pela presença de algum de seus inúmeros aprendizes na ficha técnica. Professor dos principais cursos de arte da cidade, vindo de Araguari, no Triângulo Mineiro, Raul entra em cena no fim dos anos 1960 para mudar o conceito de cenário e figurino no Brasil. Este mês, ao completar 70 anos, o cenógrafo que já foi carnavalesco tem muitas razões para comemorar: câncer combatido – que quase o fez sucumbir no ano passado – e a agenda retomada por força produtiva sem igual.
Antes de Raul Belém Machado, as roupas para a cena vinham de casa e os móveis, emprestados ou doados por artistas e amigos. Recém-formado em arquitetura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Raul cria o cenário da montagem Procura-se uma rosa, de Gláucio Gil, sob a direção de Carlos Alberto Ratton. Em seguida, ambienta espetáculo dirigido por Rogério Falabella: Geração em revolta, de John Osborne. A partir do encontro com o Teatro Experimental (TE), de Jota Dangelo, emenda um trabalho no outro e dá projeção ao profissional de cenário e figurino no tablado nacional. Trabalho e dedicação reconhecidos em Raul Belém Machado – O arquiteto da cena, lançado pela Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, em 2009. O livro faz parte da memória do Palácio das Artes, principal palco da capital mineira, onde Raul passou a maior parte de sua carreira.
“Hoje, todos os produtores são cenógrafos e figurinistas. Também não pode ser assim. Isso não é bom”, critica, defendendo mais apuro e cuidado técnico com os espetáculos. Licenciado da Fundação Clóvis Salgado (FCS), inquieto, retoma o ritmo intenso de produção, depois de árdua batalha pela vida. Nas redes sociais, criou-se corrente de fé pela saúde de Raul. Amigos, fãs e ex-alunos acompanharam notícias e torceram por sua recuperação. Valente, amante da vida, os três últimos anos não foram fáceis para o arquiteto. “Primeiro, um infarto, depois uma picada de cobra, uma jararaca adulta, e, no fim de 2010, o câncer”, conta, certo das boas razões para não se abater. O novo amor e o amparo da família, fundamentais para a sua recuperação.
No apartamento no Bairro Serra, Região Centro-Sul de Belo Horizonte, na prancheta, esboços para o futuro: outra morada, em lugar mais apropriado para a idade que chega, e muitos trabalhos. Uma nova Carmen, de Bizet, para o Teatro Castro Alves, em Salvador, com direção de Francisco Mayrink; um espetáculo de Nelson Rodrigues e a recuperação de importante casa brasileira de espetáculos – segredo guardado a sete chaves. O escritório de arquitetura cênica e cenotécnica de Raul vai bem, cheio de propostas, bem no ritmo de sua recuperação. Ao lado da parceira Mariluce Duque e de outros arquitetos agregados, Raul comenta que há muito a realizar. Ainda mais agora, longe do Centro Técnico de Produção (CTP) da FCS, criado por ele em 2004, nos galpões de uma fábrica de tecidos, em Sabará, Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Empenho e decepção
O CTP é um capítulo à parte na biografia de Raul Belém, com 30 anos de serviços oficiais prestados ao estado. Lá, espaço idealizado pelo arquiteto, professor e diretor, para armazenamento do acervo da FCS, tudo foi pensado para funcionar também como ateliê de criação e execução de cenários e figurinos e ambiente de ensino de maquinaria cênica, alfaiataria, maquiagem e criação de adereços. Raul não esconde a mágoa de ruptura melancólica com o departamento: “Tem uma ferida aberta que não vai cicatrizar. Por um jogo político perverso por parte de alguns indivíduos, fui humilhado, desrespeitado e posto nos corredores”, desabafa. Sem entrar em detalhes, diz apenas que, operário da arte, “leal e íntegro”, não costuma olhar para trás e ver maldades. “Tudo na fundação era ‘Raul dá conta’. Dois meses para colocar de pé uma ópera, que exigia no mínimo três. Quantas vezes, sozinho, no sábado, peguei um chapéu para fazer às 14h e terminar às 22h? Não foram corretos comigo”, lamenta.
Os aborrecimentos nos dois últimos anos na FCS fizeram com que Raul questionasse a sua opção por ficar em Belo Horizonte. “Sempre me perguntaram por que fiquei em Minas. Pensava: ‘Por que a pergunta? Será que Minas não merece seus artistas? Tive várias oportunidades para ir morar no Rio ou em São Paulo. E ouvia sempre as pessoas dizendo que ‘isto aqui é pequeno demais’. Nunca concordei com esse pensamento. Hoje, depois de tanto desrespeito, tenho minhas dúvidas”, reconsidera. Mesmo com o coração em Belo Horizonte, Raul é sempre lembrado fora dos limites do estado. Foi dele a aula inaugural em 2010 na SP Escola de Teatro, em São Paulo, no primeiro centro de tecnologia de espetáculos do Brasil. O arquiteto participou ainda do Resgate e Desenvolvimento de Técnicas Cênicas, projeto do Instituto Brasileiro de Arte e Cultura (Ibac), com apoio da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Estado de Minas - Jefferson da Fonseca Coutinho - 1/4/12
Foto: Renato Weill
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