No retrocedor do tempo, na carona dos ponteiros que contam passos, voltamos as horas: meia-noite. Ariela toca a campainha do apartamento do pai. Ananias assiste a programa qualquer de televisão. Irrita-se sem saber quem poderia ser tão tarde. Mal pôde crer ao identificar a filha do outro lado do olho mágico. Parou para pensar por instante, antes de abrir a porta. Por fração de segundo, pensou não atender. A saudade envergou a vergonha do velho, que girou a tetra-chave. Pai e filha frente a frente, dois tristes anos passados.
Primeiro foi o silêncio. Depois, abraço e choro sem lágrima. Ele deixou a passagem da porta livre, em convite, para que a menina entrasse. Abaixou o som da televisão, sentou-se no antigo sofá em couro de dois lugares, e, com os olhos e uma das mãos no estofado apenas, ofereceu espaço ao seu lado. Das duas partes, por ausência e acontecimentos, havia muito a ser dito. “Quer um café? Vou passar pra você”, foi só o que ele conseguiu dizer. Levantou-se desconcertado e deu meia dúzia de passos até a cafeteira sobre a pia, enquanto Ariela observava o ambiente.
A quitinete não oferecia nenhum conforto. Cortinas desbotadas e uma cama de solteiro ao fundo, ladeada por cadeira improvisada como criado-mudo. Um abajur barato, com fio branco dependurado, emendado por fita isolante. Algumas revistas Seleções amareladas e uma bíblia. Uma cômoda com seis gavetas servia de suporte para o pequeno aparelho de TV, com antena interna. Ao lado do sofá, mesinha de canto com vitrola e alguns discos de vinil, com músicas românticas, dessas que tocam em bailes para a terceira idade. Chumbada na parede, bem próxima à pia, tábua com dobradiças, armada sobre as duas banquetas de madeira escura. Era tudo o que havia no cômodo com um armário embutido. Foi o velho a trazer palavra e quebrar o gelo:
– Ainda tá meio improvisado, mas é por uns tempos. É só até o inquilo entregar a casa lá do Bairro Padre Eustáquio. Aqui é de um amigo da polícia. Estava fechado e ele me emprestou até as coisas se ajeitarem.
– Simpático. Fica perto de tudo. Bom que o senhor pode ir a pé pro mercado.
– Eu tenho ido. Às vezes passo o dia todo lá. Você ainda gosta de café água-rala?
– Tanto faz. Aprendi a tomar café de qualquer jeito.
– Você tá com fome?
– Um pouco.
– Tem miojo. Posso fazer pra você.
– Prefiro pizza. Vou pedir para nós dois. Posso?
– Você ainda gosta dessas porcarias?
– Gosto. Tenho o telefone de uma pizzaria que fica pertinho, na Avenida Amazonas. Eles entregam até tarde. Conheço o dono de lá. O senhor quer de quê?
(Continua na próxima segunda-feira)
Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 8/11/10
Primeiro foi o silêncio. Depois, abraço e choro sem lágrima. Ele deixou a passagem da porta livre, em convite, para que a menina entrasse. Abaixou o som da televisão, sentou-se no antigo sofá em couro de dois lugares, e, com os olhos e uma das mãos no estofado apenas, ofereceu espaço ao seu lado. Das duas partes, por ausência e acontecimentos, havia muito a ser dito. “Quer um café? Vou passar pra você”, foi só o que ele conseguiu dizer. Levantou-se desconcertado e deu meia dúzia de passos até a cafeteira sobre a pia, enquanto Ariela observava o ambiente.
A quitinete não oferecia nenhum conforto. Cortinas desbotadas e uma cama de solteiro ao fundo, ladeada por cadeira improvisada como criado-mudo. Um abajur barato, com fio branco dependurado, emendado por fita isolante. Algumas revistas Seleções amareladas e uma bíblia. Uma cômoda com seis gavetas servia de suporte para o pequeno aparelho de TV, com antena interna. Ao lado do sofá, mesinha de canto com vitrola e alguns discos de vinil, com músicas românticas, dessas que tocam em bailes para a terceira idade. Chumbada na parede, bem próxima à pia, tábua com dobradiças, armada sobre as duas banquetas de madeira escura. Era tudo o que havia no cômodo com um armário embutido. Foi o velho a trazer palavra e quebrar o gelo:
– Ainda tá meio improvisado, mas é por uns tempos. É só até o inquilo entregar a casa lá do Bairro Padre Eustáquio. Aqui é de um amigo da polícia. Estava fechado e ele me emprestou até as coisas se ajeitarem.
– Simpático. Fica perto de tudo. Bom que o senhor pode ir a pé pro mercado.
– Eu tenho ido. Às vezes passo o dia todo lá. Você ainda gosta de café água-rala?
– Tanto faz. Aprendi a tomar café de qualquer jeito.
– Você tá com fome?
– Um pouco.
– Tem miojo. Posso fazer pra você.
– Prefiro pizza. Vou pedir para nós dois. Posso?
– Você ainda gosta dessas porcarias?
– Gosto. Tenho o telefone de uma pizzaria que fica pertinho, na Avenida Amazonas. Eles entregam até tarde. Conheço o dono de lá. O senhor quer de quê?
(Continua na próxima segunda-feira)
Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 8/11/10
Um comentário:
Rapaz, custei a achar este capítulo, estava bem atrasado. Fiquei cheio dos compromissos esses dias e dei uma sumida. Mas ainda cheguei a tempo . Não perco um. Abração, Jefferson. Paz e bem.
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