Em tempos de estudo (sempre) – é assim o caminhar do ator –, muitos textos me ganharam a cabeceira. Jean Louis Barrault (1910-1994), mímico francês, homem de teatro, deixou escrita de grande valor. O texto que segue é um trecho do capítulo 2 das Réflexions sûr le Théâtre, onde Barrault fala de seu encontro com Étienne Decroux e da pesquisa que ambos desenvolveram sobre o mimo. (In “Réflexions sûr le Théâtre”, Jean-Louis Barrault, Jacques Vautrain Editeur, Paris, 1949, págs. 34-35. Tradução de Roberto Mallet). Na foto, Michel Simon e Barrault (D), em Drôle de drame ou L'étrange aventure de Docteur Molyneux.
Sobre o Caminhar, por Jean-Louis Barrault
"Não há nada mais difícil do que caminhar e pode-se descobrir o homem pela maneira como caminha. O estudo excessivo do caminhar me deformou tanto que levei bem uns dez anos para reencontrar um caminhar normal… (e ainda hoje recaio nisso!…). Há um tempo atrás, um dos maiores cozinheiros da França confiou-me que um dos pratos mais difíceis de se fazer é: um ovo ao prato. Trata-se de cozinhar a gema ao mesmo tempo que a clara. Isto só pode ser feito com uma chama tão fina quanto a de uma vela. De fato são as coisas mais simples as mais difíceis de realizar.
Saber ler, por exemplo. Saber ler exatamente aquilo que está escrito, sem deixar escapar nada do que está lá e, ao mesmo tempo, sem acrescentar nada. Saber captar exatamente aquilo que está contido nas palavras que se lê. Saber ler! Saber escrever também! Saber fixar sobre o papel o seu pensamento com precisão, com o auxílio de palavras que não o deformem em nada e que possuam o som justo, o mesmo som, exatamente, que se ouve no mesmo instante ressoar na cabeça. Saber escrever!
Saber caminhar!
Aquele homem caminha como se esperasse que seus pés o conduzam. Ele permanece vertical e espera. Seus pés, um após outro, cegamente, deslocam-se para a frente e apóiam-se sobre os calcanhares. E somente quando o homem se sente “assegurado” assim pelo calcanhar é que ele completa seu passo. Aquele homem não caminha. Ele se deixa conduzir pelos seus pés. Aquele outro tem pés estrábicos, o que nós [os franceses] denominamos de pés en dedans. Aquele outro, tem as pernas afetadas, os bailarinos por exemplo. As pernas dos bailarinos parecem experimentar uma tal alegria em se deslocar que parecem pasmar-se no ar. O homem, acima delas, as segue.
Ora, um homem que caminha é um TODO que se desloca. O caminhar não tem o seu centro nem na ponta do pé nem no calcanhar. Ele tem o seu centro à altura do peito.
É o peito, sustentado por essa flexível coluna vertebral, que deve exprimir uma vontade de deslocar-se. E sob essa vontade de deslocar-se, as pernas desdobram-se.
É digno de nota que todo ponto do corpo sobre o qual nos concentramos (sob a condição de haver uma concentração suficiente) atrai a atenção de quem nos observa. Como se esse ponto fosse luminoso.
O homem que caminha não deve atrair a atenção para os seus pés, nem para os joelhos, mas para a frente do peito; é, se assim posso me exprimir, o peito que dá o primeiro passo. O homem que caminha tomou a decisão de se deslocar; e o que ele desloca primeiro é o centro dele mesmo; essa caixa mágica e oca graças à qual ele respira e que o sustém, como um emblema de vida, pela haste mais flexível do mundo: sua coluna vertebral. Primeiro o homem todo se compromete; ele acredita em si mesmo; ele vai para a frente, confiante no reflexo de suas pernas. E suas pernas seguem-no, servem-no; elas ondulam sob ele. É um homem que se desloca e não um homem que segue seus pés. O ponto mais avançado de seu peito não deve jamais deixar-se ultrapassar pela ponta do pé que está à frente.
Eis ao menos o caminhar em estado puro.
Sabendo-se isso todos os caminhares são permitidos. Cada homem tem seu caminhar pessoal que o revela sem que ele o saiba. Cabe ao ator trabalhar o caminhar de seu personagem. Mas esse caminhar puro, como o saber ler, como o saber escrever, como o saber cozinhar um ovo ao prato, é a coisa mais difícil de executar".
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