Menina Ariela sacou da bolsa o celular cor-de-rosa e pediu pizza marguerita. Na espera, pai e filha se olhavam, simplesmente. Havia muito entre eles. No silêncio que diz à beça, laço remoído de passado, infelicidade e ausência. “Diabos! Como está parecida com a mãe”, pensava Ananias ao ver a filha ajeitando os dois únicos pratos da quitinete sobre a mesa. O policial aposentado viu na filha a ex-mulher, grande amor e dor de cabeça. O entregador chegou logo com a massa de excelente qualidade. Ariela fez questão de pagar com dinheirinho ganho à tarde, suado nos quadris.
Comeram com gosto. Ananias se rendeu ao sabor em boa companhia. Há dias sem sair de casa, passava apenas a conhaque, café amargo e miojo. Ariela disparou a falar coisa com coisa sem tocar no tempo presente. Também não fez perguntas nem tocou assunto sério. O pai, tímido, até esboçou sorriso seco com comentário da menina: “O senhor ainda tem o mesmo cheiro. É bom”. Ariela, quando pequeninha, vivia a brincar com o desodorante do pai. Um papo puxou outro e, no avanço da madrugada, Ananias insistiu para que a filha ficasse. A menina adormeceu na cama do velho, que não pregou o olho. Trouxe à cena garrafa de conhaque escondida e viu passar a vida no gargalo. Olhou para o corpo feito da filha, de 20 anos incompletos, e ficou a remendar histórias.
Com o sol a lamber as vidraças do JK, Ariela acordou com o pai transtornado, irreconhecível. Ananias havia revirado a bolsa e o celular da filha enquanto ela dormia. Imaginou coisas e, tomado por ideias ruins, construiu teorias de traição. A menina se ofereceu para passar café e foi sabatinada pelo velho. Para a discussão foi um passo. Das perguntas e ofensas às agressões: Ananias retirou do armário taco velho de sinuca, quebrou-o violentamente na mesa e partiu para cima da menina, que conseguiu recuperar a bolsa, abrir a porta e ganhar o corredor. “Não sou mais seu pai, vagabunda! Some da minha vista! Some!”. Daí, o amparo da vizinha.
De volta ao presente, no apartamento da cantora Dorinha, galopam os ponteiros na velocidade do pensamento. As duas mulheres já se entendiam amigas e confidentes. Foi o cão Raul, o schnauzer, o primeiro a reagir ao estampido vindo da quitinete ao lado, emprestada por conhecido ao velho Ananias. Dorinha e Ariela correram para a porta fechada do ex-policial. “Pai”, foi só o que deu conta de soprar a filha com a garganta embargada. Do lado de dentro, ao som de “Perfídia” tocado na vitrola por um tal Trio Irakitan, Ananias sangrava despedida, caído, com um 38 na mão.
Comeram com gosto. Ananias se rendeu ao sabor em boa companhia. Há dias sem sair de casa, passava apenas a conhaque, café amargo e miojo. Ariela disparou a falar coisa com coisa sem tocar no tempo presente. Também não fez perguntas nem tocou assunto sério. O pai, tímido, até esboçou sorriso seco com comentário da menina: “O senhor ainda tem o mesmo cheiro. É bom”. Ariela, quando pequeninha, vivia a brincar com o desodorante do pai. Um papo puxou outro e, no avanço da madrugada, Ananias insistiu para que a filha ficasse. A menina adormeceu na cama do velho, que não pregou o olho. Trouxe à cena garrafa de conhaque escondida e viu passar a vida no gargalo. Olhou para o corpo feito da filha, de 20 anos incompletos, e ficou a remendar histórias.
Com o sol a lamber as vidraças do JK, Ariela acordou com o pai transtornado, irreconhecível. Ananias havia revirado a bolsa e o celular da filha enquanto ela dormia. Imaginou coisas e, tomado por ideias ruins, construiu teorias de traição. A menina se ofereceu para passar café e foi sabatinada pelo velho. Para a discussão foi um passo. Das perguntas e ofensas às agressões: Ananias retirou do armário taco velho de sinuca, quebrou-o violentamente na mesa e partiu para cima da menina, que conseguiu recuperar a bolsa, abrir a porta e ganhar o corredor. “Não sou mais seu pai, vagabunda! Some da minha vista! Some!”. Daí, o amparo da vizinha.
De volta ao presente, no apartamento da cantora Dorinha, galopam os ponteiros na velocidade do pensamento. As duas mulheres já se entendiam amigas e confidentes. Foi o cão Raul, o schnauzer, o primeiro a reagir ao estampido vindo da quitinete ao lado, emprestada por conhecido ao velho Ananias. Dorinha e Ariela correram para a porta fechada do ex-policial. “Pai”, foi só o que deu conta de soprar a filha com a garganta embargada. Do lado de dentro, ao som de “Perfídia” tocado na vitrola por um tal Trio Irakitan, Ananias sangrava despedida, caído, com um 38 na mão.
Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 15/11/10
Um comentário:
Parabéns, Jefferson por mais este belíssimo conto! O que é bom dura pouco. Estava delirando com esta narrativa que, a despeito da trágica história, é muitíssimo agradável de leitura. Meu grande abraço. paz e bem.
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