Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

sábado, 16 de maio de 2009

Uma rua chamada solidão (parte 4)

"Ela até pediu bebida mais forte ao velho banguela do jaleco encardido. Virou a dose amarela num só trago para trapacear os sentidos. Na cabeça, jogo cruel de imagens: a mãe morta e o sorriso do tímido João"


Maria entrou em boteco copo-sujo para beber sozinha. Enquanto isso, na rodoviária de Vitória, no Espírito Santo, moço evangélico de terno feito no corpo embarcava em ônibus para Belo Horizonte. Na plataforma, sob céu de poucas estrelas, o jovem estudante de administração mantinha o olhar profundo, marcado por lembranças. Aos 22 anos, contra a vontade do pai, pastor maranata, João não conseguia esquecer a bela mineira mulher da vida. Enquanto aguardava a hora do embarque, no andar lento dos ponteiros, reviu a vida na retina: Maria. Foi na época em que rebolava em boate vagabunda, explorada por traficante capixaba, que ela fez homem o menino protestante.

Por quase ano, ela, aos 20, e ele, aos 17, juraram amor sob lençóis em barracão à beira-mar. Dele ela nunca cobrou centavo. Nem na primeira vez. João, ao abrir a carteira, ouviu sussurro ao pé do ouvido: "Presente meu. Pelo carinho". De fato, por 20 minutos, ela se sentiu carinhada como jamais. O ex-marido, bandido foragido, só fez afundar-lhe a carne na Zona da Mata. Pesadelo que ela fazia questão de deixar enterrado. Amargura e falta de sorte endureceram Maria. Por fim, no caminho das drogas, foi jurada de morte. João, generoso, lhe arranjou trabalho em igreja carioca. Pouco depois, sem rumo, ela voltou a vender o corpo e decidiu matar o rapaz nos pensamentos.

Naquela noite, no botequim do Bairro São Gabriel, enquanto queimava cigarro de palha, Maria não conseguiu evitar João. Ele, silencioso, mais carinhoso que nunca, invadiu-lhe as ideias. Ela até pediu bebida mais forte ao velho banguela do jaleco encardido. Virou a dose amarela num só trago para trapacear os sentidos. Na cabeça, jogo cruel de imagens: a mãe morta e o sorriso do tímido João. Já tarde da noite, no barracão 158F, Claudete despertou de cochilo e estranhou a demora da amiga. Deixou Julim dormindo para ir atrás de Maria. "Ela só ia telefonar para a mãe… aonde se meteu essa menina?", pensou alto ao subir a rua estreita de pouco movimento.

No breu do ônibus estrada adentro, João recorria a meia dúzia de salmos decorados na infância. No carro de muitas poltronas, só barulho de marcha e motor. Combinação sinistra em canção de viagem que lhe trouxe lembrança recente de busca em vão no Rio de Janeiro, quando, sem notícias há dois anos, esquadrinhou Copacabana em busca de Maria. Distribuiu dinheiro e número de telefone para metade das putas do lugar. Meses depois de seu retorno a Vitória, voz rouca deu a dica: "Belo Horizonte". Fez mala e vestiu seu melhor terno para reencontrar Maria. Naquela madrugada fria, com o leito inclinado, olhos abertos, distantes, João repensava o jeito menina da mulher da vida.

"Ponte Nova. Parada de 15 minutos", anunciou o motorista engravatado.

(Continua no próximo sábado)

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 16 de maio de 2009

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