Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

sábado, 2 de maio de 2009

Uma rua chamada solidão (parte 2)

"Viu-se endurecida por tempos ruins. Lembrou-se, um a um, dos cinco abortos já provocados. Com as mãos trêmulas, parecia sentir o sexo sangrar em dor na alma"

Maria adiantou o pagamento do mês. Quartinho com água quente, privada e janela. Com vista para a Guaicurus, rua da solidão. Dali pode ver o movimento de curiosos e desfavorecidos que se amontoam na entradinha estreita do hotel. Manteve a porta de madeira barata fechada e repassou a vida como filme. Enquanto isso, em quadrado vizinho, Claudete, a velha prostituta carioca, já mentia prazer debaixo de gordo fedorento.

Com o corpo doído de viagem difícil, sem sono, Maria se deitou na caminha vagabunda e fechou os olhos. Ainda podia ouvir o último suspiro da nordestina de vida fácil, morta há dois dias por bala perdida no Rio de Janeiro. Também, fantasmas, podia ouvir os gemidos dos homens sem nomes que lhe compraram o sexo nos últimos anos. Cabeça às ferroadas, teve saudades da mãe doente deixada na Zona da Mata. Nos domingos de lágrimas secas, costumava falar com dona Iracema. Há mais de mês não tinha notícias da lavadeira aposentada, de pernas feridas e boca desdentada.

Viu-se endurecida por tempos ruins. Lembrou-se, um a um, dos cinco abortos já provocados. Com as mãos trêmulas, parecia sentir o sexo sangrar em dor na alma. Respirou profundamente e dormiu pesado na companhia de assombrações. Horas depois, despertou com os berros em chamado da amiga vizinha. “Pensei que tivesse morrido, mulher!”, foi o que ouviu ao abrir a porta esmurrada. Banhou o rosto e ajeitou o cabelo para almoçar bem em restaurante popular.

Pratos vazios, passearam pelo Shopping Oi para ver o preço das coisas. “Está tudo pela hora da morte”, comentou a mulher experimentada. “Julim queria videogame de aniversário, mas vai ter que esperar”, referiu-se ao neto de 9 anos. Claudete assumiu o rebento da filha logo que ela fugiu com homem velho para o Nordeste. Não gostava de tocar no assunto. Para o mundo, o garoto era seu, com registro em cartório fluminense e tudo. Segredo confiado a Maria, na época em que trabalharam em Copacabana.

Tiraram a tarde para conhecer melhor Belo Horizonte. “Vem comigo, Maria. Tô precisada de dindim, mas hoje a gente vai é andar pela cidade”. Quando chegou na capital mineira, Claudete só pensava no bem do pequeno Julim. “Aqui, vou dar vida decente a este menino, Maria”. Foi caminhando pela Avenida dos Andradas que as duas putas, pela primeira vez, falaram em futuro. Maria se encantou quando viu a Praça da Estação com suas águas apontadas para o céu. Sorriram meninas como há muito não faziam.

De sandálias nas mãos, correram molhadas, molecas, pela fonte do Bulevar Arrudas.

(Continua no próximo sábado)

Arte: George Grosz - Circe, 1927 - Vida Bandida - 2 de maio de 2009 - Jefferson F. Coutinho

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