Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Água não tem cabelo

Sou um homem do mar. Desde garoto. Sempre digo isso aqui. Entristece-me profundamente histórias de afogamento. Já salvei e já fui salvo. A manchete principal de nosso Aqui de ontem, “Tragédia nas águas”, abafou a alegria do meu feriadão. A reportagem do bom companheiro Pedro Ferreira, até à tarde de segunda-feira, apurou 21 mortos só em Minas Gerais. Entre as vítimas, Renê Horlando do Nascimento, de 9, morto na Represa de Furnas, em Alfenas, no Sul do estado. Muito triste.

Ontem foi um dia estranho. Depois de ler os jornais, nosso Aqui, especialmente, fui tomado por silêncio que perturbou a Violeta. Ela insistiu para que eu dissesse o que estava sentindo. Falei que era bobagem. Mas mulheres como a Violeta não se contentam com qualquer resposta. “Se não quiser dividir comigo, vou entender. Mas desabafar pode fazer bem”, disse. Resolvi respirar fundo e trazer o passado que me embargava a garganta. Falei do Dirceu, amigo do Bairro Santa Terezinha, que morreu muito moço, afogado nas águas do Espírito Santo.

O filho da dona Maria e do “seu” Pedro, irmão do Tonho e da Dadá, partiu muito cedo. Não havia em toda a Pampulha, tenho certeza, rapaz mais educado e gentil que o Dirceu. Jogamos muita bola na rua da casa da minha avó. Era sempre uma alegria brincar e conversar com o Tonho e com o Dirceu. Os dois irmãos foram os melhores amigos que tive na infância e na adolescência. Falei por mais de hora e a Violeta ali, ouvindo tudo, revivendo comigo a saudade dos amigos. Lembrei-me ainda do Jovelino, morto quando caçava caranguejo no mangue, às margens do Rio Itapemirim, também no Espírito Santo. Ele estava sozinho e se atolou no lamaçal. A maré subiu e o Jovelino foi encontrado sem vida com os braços para cima. Uma tragédia que marcou para sempre a família Batalha, na Barra do Itapemirim.

Contei para a Violeta que, no início dos anos 1980, por muito pouco as águas não me levaram. Passei anos repensando a vida depois daquele verão. Estava com alguns amigos pegando onda na praia de Marataízes, quando avistei um emaranhado de mato que parecia formar uma jangada. Subi naquela falsa plataforma, que acabou cedendo e me deixando preso sob o balcedo. Havia pouco espaço para respirar e vivi momentos de desespero até que a mão de um amigo conseguiu me trazer à superfície. Bom nadador, o Careca cortou o mar numa velocidade que impressionou a todos. Desde então fiz um pacto de respeito com as águas.

Violeta tinha razão. Falar do Dirceu e do Jovelino ajudou a desafogar o peito. Relembrar amigos tão caros, levados pelas marés, é uma maneira de mantê-los para sempre entre nós. Que Deus dê muita força às famílias dos que partiram neste carnaval. Que os mortos tenham vida eterna junto aos seus. E que fiquemos todos atentos, pois, como diziam os antigos: “água não tem cabelo”.

Bandeira Dois - Josiel Botelho - 17 de fevereiro de 2010

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