Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Os sons do coração



No calendário amarrotado, Julião marcou dia por dia, contados, até aquele domingo de agosto. Foram 363 madrugadas de rabisco no quadrado do papel barato, de bolso, com retrato de cachorro bonito, bem tratado, no verso – propaganda de canil. Enfim, data de rever o filho, de 5 anos, vindo dos céus, depois de temporada longa no exterior. O taxista vestiu a melhor roupa, fez barba e cabelo para seguir as horas no Aeroporto Internacional Tancredo Neves, em Confins, plantado no salão de desembarque.

A ex-mulher, Marta, garçonete na Austrália, avisou a volta com antecedência. Por telefone, uníssona: “12 de agosto, Julião. 12 de agosto”, pontuou a conversa. No ano passado, o rompimento do casal foi duro – efeito de desafeto e agonia. Caos provocado pelas bebedeiras de Julião, afundado no nada com os falsos amigos. Os vizinhos do predinho antigo da Rua Jaguaribe, no Bairro Renascença, ainda comentam o drama do taxista largado pela mulher aguerrida.

“A Martinha teve foi muita coragem. Juntar as coisas e o filho, assim, e se mandar para a Austrália”, comentou Joana, vizinha de porta no terceiro andar. Do lado do Julião, só o Nelson, policial reformado, morador do 101: “Se é mulher minha, eu dava um tiro. Um tiro!”. Dava nada. O capitão aposentado era chegado numa bravata e o Julião bem o conhecia. Tanto que não só não deu ouvidos ao sujeito, como também, por conta própria, parou de beber e decidiu se redimir.

E, assim, sóbrio, o descasado rabiscou os números no calendário de bolso para desafogar o coração. “Ah, meu filho…”, soprava baixinho sempre. Foto do moleque o Julião tinha para a direita e para a esquerda – em casa, no carro e na carteira. A mesma cena: rostos grudados de pai e filho, no aniversário de 3 anos do garoto. Imagem capturada pela Martinha, durante passeio feliz, no Parque Guanabara. Agora, em Confins, a fotografia estava para ceder lugar ao mocinho crescido.

Na fração do instante, as flechas do relógio seguram os suspiros. No alto, o quadro de voos indica a aeronave no chão. Ao lado, o velho de boné comenta com a companheira, de braço em laço: “Daqui a pouquinho ela aparece”, notando o olhar brilhante, puxa assunto com o taxista: “Está esperando… já sei… mulher e filho. Certo?”. Silêncio. “Sim… Como o senhor descobriu?”– Julião quis saber. “Pelo cavalinho de madeira, com o laço de presente… e pelas flores, que o senhor segura tão firme”, sorriu.

Nisso, a filha do casal desponta. “Com licença” – diz o velho. Os três se aconchegam num só laço. Carinho que aumenta ainda mais a angústia de Julião. “Boa sorte na vida, meu senhor!”, despede-se o homem que, entre dois amores, toca a bagagem e desaparece no saguão. No quadrante, afeto que se repete entre outros que esperam. Nada do garoto. Em cada minuto o clarão de madrugada inteira, passada. Vazio. Portal descortinado, um moleque salta na velocidade dos bons. A vozinha rouca, feliz, parece música para Julião: “Papai! Papai!”.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho

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