Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

sábado, 24 de março de 2012

Olhar que faz pensar...


Primeiro Mundo é de quinta

Por João Paulo

Esta semana, um brasileiro, Roberto Laudisio Curti, foi morto pela polícia australiana. O rapaz tomou choques, sofreu ataques de gás pimenta, foi surrado até falecer. O crime, que não houve, foi a suspeita do furto de um pacote de biscoitos. Ele era de classe média alta, a família mora em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo, e estava na Austrália para aperfeiçoar o inglês.

Sua irmã morava na mesma cidade, Sydney, e ficou sabendo da tragédia quando deu queixa à polícia sobre o desaparecimento do rapaz. Não é casual que dois jovens procurem morar no mesmo país estrangeiro, como se isso tecesse entre eles uma rede de reconhecimento que permitisse tornar mais acolhedora a nova situação. O grave é que seus destinos se encontrem num necrotério em razão do preconceito.

A situação, trágica sob qualquer ponto de vista, tem marcas ainda mais cruéis quando se analisa a forma como Roberto perdeu a vida. O uso de armas “não letais”, pelo visto, só funciona quando interessa à repressão. Assim, a morte sem metáforas do rapaz não foi exceção, mas a regra de uma polícia que diferencia as pessoas por sua origem. Se fosse no Brasil, seria com certeza pobre e preto. Na Austrália, bastou que fosse brasileiro.

É sempre perigoso generalizar comportamentos específicos como síntese de um povo ou de uma nação. Mas o que se percebe, seguidamente, é o preconceito cada vez mais afinado contra os estrangeiros em países ditos do Primeiro Mundo.

O Brasil, por muito tempo, parecia protegido dessa situação não por seus méritos, mas por suas culpas. Como exportava gente para exercer funções desvalorizadas, em condições precarizadas de trabalho, a discriminação era um horizonte temido, mas nunca contestado. O brasileiro de Governador Valadares, em algum desvão de sua menos-valia, achava que merecia ser maltratado.

Quando o Brasil – que hoje, felizmente, lota aeroportos e voos internacionais – passou a ser tratado de forma ambígua (para os estrangeiros, somos bons para gastar, mas ruins de conviver), começou a ficar claro o desprezo com que sempre fomos considerados. A situação da senhora presa por dias no aeroporto de Madri, em risco para sua integridade, por razões inaceitáveis, comoveu alguns. Já é alguma coisa frente à condenação universal que ela receberia há 10 anos – afinal, lugar de pobre sempre foi no Brasil.

Um país mais pobre, como a Espanha, com maior índice de desemprego, como a Espanha, em situação econômica desvantajosa no mercado internacional, como a Espanha, que discrimina trabalhadores brasileiros, como a Espanha, não tem estatuto ético para maltratar uma senhora de 70 anos que chegou pela porta da frente e foi expulsa pela área de serviço.

O próprio conceito de Primeiro, Segundo e Terceiro Mundo, que tem raízes geopolíticas, ganhou conotações qualitativas e morais. No tempo da guerra fria, o Primeiro Mundo reunia países capitalistas ricos ou economias afluentes e exportadoras de bens industrializados em regime de desvantagem comercial para os parceiros; Segundo Mundo eram as nações socialistas e comunistas alinhadas com a União Soviética; Terceiro Mundo era o apanhado compósito de países pobres e subdesenvolvidos.

A lógica era econômica e política. No entanto, por uma operação ideológica primária, foi convertida em padrão de julgamento. Integrantes do Primeiro Mundo eram países de primeira. O Segundo Mundo praticamente sumiu do mapa (alguém já ouviu falar em Segundo Mundo?) e o Terceiro se tornou uma espécie de classe média ressentida: inveja os ricos e faz de tudo para ficar perto deles.

Intercâmbio A triste história de Roberto Laudisio não é isolada. O caso lembra outros, como o do mineiro Jean Charles, com a ressalva de que se trata de pessoas pertencentes a mundos e classes sociais diferentes. Roberto não precisava trabalhar, pois tinha o apoio da família para investir em sua formação. Estava legalmente no país e, mesmo assim, trabalhava como garçom, experiência que certamente não se disporia a viver no Brasil.

A leva de jovens que deposita suas expectativas no projeto de viver e aprender em outros países precisa ficar atenta à carga de aprendizagem que está deixando para trás em seu próprio mundo. Os países afluentes não nos podem dar mais do que pagamos a eles, em dinheiro e subserviência. A busca do conhecimento, a mais nobre das demandas individuais, não deve ser barganhada pelo imperativo da independência e autonomia.

A vida no exterior pode ser o mais frutífero dos investimentos pessoais ou a maior derrocada do princípio de liberdade. A sedução pelo diferente, sobretudo quando se afigura superior em termos econômicos e históricos, só se realiza como construção quando se integra ao patrimônio individual. Os jovens que buscam o intercâmbio precisam compreender o conceito de forma estrita. Não podemos apenas ceder. A relação é de troca ou não há relação. O nome dessa situação de heteronomia é violência. Simbólica ou real.

Há jovens sem qualquer idealismo ou empenho pessoal em aprender submetendo-se a horas na fila na porta dos consulados americanos para receber um visto para gastar seu dinheiro em Miami. Só mesmo certo masoquismo e sentimento de inferioridade explica a boa vontade em participar dessa humilhação autoinflingida. E são as mesmas pessoas que costumam louvar como os países do Primeiro Mundo tratam bem seus cidadãos e têm bons serviços públicos.

Nunca se viu um protesto organizado que lançasse mão da prerrogativa de consumidores (já que cidadãos, no fundo, eles não são mesmo), como fazem todos os dias quando humilham vendedores de lojas e caixas de supermercados que cumprem seu trabalho.

Todos têm sua história favorita de humilhação de um operador de telemarketing (nessa hora, somos briosos e grossos), mas parecem imunes aos maus-tratos de funcionários descorteses dos consulados dos países de Primeiro Mundo. Tal assimetria não é explicada pelas relações diferentes (comerciais num caso e diplomáticas no outro) entre os agentes, mas pela nacionalidade deles. Os operadores de telemarketing são o Terceiro Mundo de nossas relações diárias, afinal, eles vivem de seu trabalho (nada é menos valorizado que o trabalho num contexto econômico de financeirização).

O mundo não tem dono. As fronteiras e divisas são resultado, sempre, de ódio e insegurança. Podemos nos furtar a elas e resumir nossas ambições, o que não é justo, ou desafiar verdades eternas como as neves e postular relações de igualdade. Caso contrário, gastaremos o fruto de nosso labor em escorregadores gigantes, comida ruim ou metida a besta, fotos com o Pateta, fronhas de mil fios e outras porcarias. Ou, pior, morrendo por engano sem receber por isso sequer um pedido verdadeiro de desculpas. O Primeiro Mundo, além de ser de quinta, não foi dotado do nobre sentimento da compaixão.

Estado de Minas - João Paulo - 24/3/12

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