Joaquim não reconheceu a casinha em que morava. A mesma quaresmeira na calçada, a quadra poliesportiva na praça e Tod, o cão vira-lata encontrado na rua no mês passado, a sorrir no portão. Mas o barracão... “estranho...”, soprou palavra para si mesmo. Com o molho de chaves na mão, ficou parado por um tempo, tentando reconhecer algo do muro sem reboque para dentro. Nada. Tinha plena convicção de jamais ter estado diante daquela porta. O chaveiro era seu - ele sabia bem daquele sol esculpido na madeira, presente do irmão presidiário.
Criou coragem e enfiou a chave maior na fechadura, que destravou fácil. Logo na entrada, foi surpreendido por garoto de três anos, carinhoso e cheio de saudade: “Papai! Papai!" Joaquim não teve como recusar o abraço. Não se pode negar recepção tão sincera. Mas o pedreiro não fazia a menor ideia de quem podia ser aquele garoto. “Filho? Meu?”, quis saber em silêncio. Jamais, em toda a vida, em tempo algum, teve nos braços aquele garoto. Disso, estava seguro.
Não demorou para a mulher, linda, sorridente, carinhosa como não havia em Belo Horizonte, aparecer com avental branco de coração estampado. Nele, dois nomes bordados: “Joaquim e Maria”. “Joaquim até podia ser ele, mas “Maria? Será possível?”, suspirou, beijado como se fosse o homem e o pai de família mais importante do mundo. No corredor, outra criança correndo: uma menina, de ano e meio, no máximo, abraçada a uma boneca de pano. “Papi! Papi!”
O colo ficou pequeno para tanto dengo. O garoto num braço, a menininha no outro, e Maria, a doce mulher a acariciar-lhe o rosto suado: “Que bom que você chegou mais cedo, Juca! Os meninos e eu preparamos uma surpresinha pra você... vem ver”, tomou-lhe a bolsa para leva-lo à cozinha. “Juca” era apelido de infância, apenas os mais íntimos o chamavam assim. Mesa posta para quatro, com balões coloridos espalhados por todo o ambiente. Ao fundo, cartolina escrita a mão: “Papis, feliz aniversário! Amamos você!”. O cheiro bom de assado: “Hum...!”
Joaquim não sabia o que dizer. Deixou lágrima rolar de bobeira. Começou a acreditar na beleza do que estava vivendo, por sonho antigo. Chorou por dentro, sem saber exatamente o porquê. Olhou fundo, nos olhos da mulher e das duas crianças, e se viu inteiro, querido e amado, como sempre desejou. Beijou Maria demoradamente e abraçou os filhos, fazendo-os seus. Não se importou mais em não reconhecer os três. “O nosso quarto...”, ele tentou dizer... Maria o ajudou, sorrindo lindo: “No final do corredor, esqueceu?”.
Ele deixou a família por instante e foi até a suíte. Na cabeceira da cama, nos criados, fotos dele, feliz da vida, entre a mulher e o casal de filhos. No armário branco, todas as roupas do seu gosto e medida muito bem cuidadas. “Um segundo apenas”, pediu baixinho para si, ao deitar-se na cama e acordar de supetão com o despertador na voz da Matilda: “Levanta, desgraça! Vai perder a hora, infeliz!”. Viu aquele dragão estúpido e sem coração e, enfim, reconheceu a mulher do ventre seco, que cheirava cinzeiro. Teve vontade de morrer.
Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 12/3/12
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