Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

terça-feira, 7 de abril de 2009

No elevador, por obra do destino



Já era noite. Tarde até. Naquele prédio, dos mais antigos da Avenida Augusto de Lima, no Centro de Belo Horizonte, um elevador estava para reacender duas vidas. Dois destinos cruzados por travessura do tempo. Capricho da mão que manipula os peões. A vida é jogo de tabuleiro camaleão. Em cena, casal comum em mais um dia de rotina besta. Ele, vendedor ambulante, 43 anos, visitante no lugar. Ela, 39, secretária de empresa de comércio do 23º andar. Ambos solitários, castigados por visitantes antigos.

Ele, no último andar, entrou primeiro e apertou o “T” de térreo. Estava aborrecido, triste com o trabalho. Havia acabado de tomar chá-de-cadeira de horas do empresário endinheirado. Fechou negócio chinfrim com o bigodudo osso de envergar. “Para este mês levo meia dúzia. Quando o preço cair mais, eu sei que vai cair, levo o resto”. Sem mais cerimônias: foi assim que ele foi despachado pelo muquirana, às 22h30.

Ela, três andares abaixo, refazia o serviço da novata incompetente, amante do advogado-patrão. A boazuda foi embora mais cedo, de carona com o chefe: “Vou ter que deixar para você digitar as cartas de novo, porque tenho aula agora na facu”, disse a estagiária, deixando para trás, às 18h, pasta abarrotada de texto ruim. Escola nada. Foi parar em motel de luxo, se acabar no colo do doutor salafrário.

No acender e gritar das setas, que sobem e que descem, o abrir da porta de madeira velha anunciou o encontro. Ele, cansado, gravata frouxa e paletó amarrotado. Ela, suada, terninho desalinhado e sapato de salto apertado. Quando ela entrou no elevador, ele pensava na vida com o olhar perdido e a idéia distante. Invisíveis, não se cumprimentaram. Quem disse que elevador é lugar de gentileza?

Foi no baque dos cabos de aço que, enfim, eles se perceberam. Impossível não se tocarem no arranque. Foram jogados um sobre o outro com o enguiço da engrenagem. O porteiro paquerava pelo celular. Estava feliz demais para perceber que o elevador estava parado. Nas alturas, entre o 17º e 18º, dois estranhos espalmavam o caixote de três metros quadrados e dedilhavam os botões da emergência.

Pedido de socorro em vão, no somar dos minutos, o silêncio. Não disseram palavra. Olharam-se apenas. Ele, tomado por paixão súbita, enxergou fundo a mulher adormecida. Ela, num suspiro, beijou-o demoradamente. Braços embolados, amaram-se como nunca. O técnico da manutenção, 45 minutos depois, destravou a geringonça. Os dois, marcados pelo avesso, deixaram o prédio de mãos dadas por obra do destino.

(Jefferson da Fonseca Coutinho – Vida Bandida – 30 de agosto de 2008)

Um comentário:

Carol Valentim disse...

Esta eu crônica eu já tinha lido mas hoje ela me pareceu diferente.
Mto boa. :)