Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

sábado, 4 de abril de 2009

O exército dos homens sós



São cidadãos de tudo quanto é lugar e motivo. Também são de diversas gerações, cor e poder de compra. A Guaicurus é rua de encanto sujo. Ali, centenas de cinderelas e borralheiras, defendem, como podem, o pão de cada dia. Quadrado de fadas tristes, cheias de histórias sem príncipes, abóboras ou calçadinhos de cristal. A coleta em semana de entrevista dá filme. Fala-se muito das profissionais daquele comércio. Sabe-se pouco, porém, sobre os visitantes mais freqüentes do lugar. Missão difícil encontrar algum pagante disposto a dar depoimento, mesmo que em off, sem nome ou endereço. A grande maioria quer passar batido, no anonimato. Claro que há também os que vão em dupla, ou galera, para “ver o movimento” ou, simplesmente, para “desmamar o grilo”. Foi o que dois líderes de turma, mais desavergonhados, responderam, abordados em fila de beco avermelhado.

Disseram também que gostam de ver as tias em roupas íntimas, se exibindo nas camas ou nas portas. “Tem muita mulé fina aqui. Tem que dá sorte, porque as filé tá tudo ocupada, e tá assim de neguinho na porta. Só os fubá fica dando mole”, diz o sujeito de boné e jaquetão jeans desbotado, acompanhado por três amigos. No andar de cima, trio de amizade antiga. O mais velho, desconfiado no início, não quis muita conversa. Depois soltou o verbo: “A gente veio trazê o Grilo aqui pra desmamá. Já tá passando da hora dele sabê o que que é bom na vida”. O Grilo, de 18, ou quase isso, desconversou: “Ah, pára sô! Só tamo olhano as tia.” E, de brincadeira, aos tabefes e safanões, dobraram a quina escura.

O calor do bloco amigo até que desinibe. No entanto, se quem está acompanhando fala, quem está só não quer saber de conversa. Foram mais de duas horas até que alguém topasse trocar palavra. É grande o batalhão de solitários que cruzam os andares dos três prédios mais disputados do quarteirão. Apesar da pouca luz, anéis na mão esquerda reluzem. Um dos mais sós, gordo, viúvo, passa com o braço em pêndulo, exibindo, na canhota, duas grossas alianças. Na casa dos quadris surrados, entre as moças e seus pares, percebe-se claramente soma de muitas diferenças. Por minguados R$ 10 ou R$ 20, ou R$ 30, por capricho, casais de araque se desfazem convenientes nas camas de cimento armado.

Depois de muita andança, enfim, um depoente. Homem magro, estatura mediana, aparência bem-comportada. Sapatos engraxados, calça de linho barato e camisa social em mangas curtas. 45, 50 anos, no máximo. Óculos no bolso, compromisso no dedo e fala mansa: “Minha mulher teve derrame e não fala nem anda mais. Só fica na cama ou na cadeira de rodas. Venho aqui porque me sinto muito sozinho. Mas procuro sempre a mesma moça”. Fim de tarde. Disse que tinha pressa e que precisava voltar para casa. Com a cabeça erguida, apertou o passo e sumiu em meio ao exército dos homens sós.

(Jefferson da Fonseca Coutinho – Vida Bandida – 7 de junho de 2008)

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