Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Pelas mãos de Nossa Senhora


“A vida se esvai num sopro. O agora já é ontem e o daqui a pouco, em breve, não existe mais”. O Freitas ficou com isso na cabeça enquanto seguia rumo ao bloco cirúrgico daquele hospital do coração. Era manhã acinzentada, deu para ver pela janela. Sem parentes ou amigos. Apenas ele e cinco mascarados. Em meia-idade, 50, nem mais nem menos, nunca foi de muita oração. No entanto, nos últimos dias, jamais esteve tão perto de Deus e de Nossa Senhora. Fez balanço de tudo. Reviu a vida como filme. Como martelo, uma pergunta: “O que faria se renascesse agora?”

A anestesista dos olhos azuis, generosa, ainda lhe passou a mão pela cabeça e lhe sorriu com os olhos: “Vai ficar tudo bem”, disse. O Freitas não conseguiu dizer palavra. Os últimos dias não foram de muita conversa. Travou diálogo silencioso consigo mesmo. Pensava: “Impressionante como o encontro com a sombra da dona morte faz a gente acordar para a vida”. Para ele, tudo nunca esteve tão claro como agora. Sabia exatamente o que, de fato, importava. Arrependeu-se por todas as vezes que vomitou bobagens quando estava fora de si por qualquer besteira.

As pálpebras começaram a ficar pesadas e as vistas embaralhadas. Tentou manter os olhos abertos para aproveitar um pouco mais a claridade, mas as imagens coloridas foram cedendo espaço ao túnel branco e infinito. Desfaleceu-se lentamente e a cabeça foi ficando cada vez mais confusa: “Mas... como? Não estou dormindo... Posso ouvir os aparelhos, os médicos... os instrumentos... não sinto nada...” Caso raro ocorreu com o Freitas: anestesiado, não perdeu a consciência. Ganhou mais tempo para repensar a vida: duas ou três horas, enquanto o bisturi abria-lhe o peito.

Viu-se já do lado de lá, quando sentiu a presença dos pais falecidos. Matou um pouco da saudade da mãe e sorriu novamente para o pai, companheiro de passagens felizes. Reencontrou também amores vivos: a mulher e os filhos, unidos numa só oração. Pensava cada vez com mais convicção: “Se sair dessa, sou um novo homem”. O Freitas queria viver. Ainda havia muito por fazer. O infarto veio no momento em que os negócios prometiam se ajeitar. Coração mole, cabeça dura, apenas os sentimentos bailavam ainda em descompasso.

Enquanto isso, os cirurgiões mandavam ver nas mamárias do Freitas. “Que não sejam as mãos dos médicos, mas as suas, minha Nossa Senhora”, pediu a família em comunhão. O túnel branco foi se fechando aos poucos. Os homens mascarados, um a um, foram deixando o bloco. Apenas a mulher de olhar profundo permaneceu ali. Desceu a máscara azul e sorriu o sorriso mais bonito de que já se teve notícia. Beijou-lhe a testa e partiu. O Freitas dormiu sono profundo e só acordou horas. “Sua intervenção foi um sucesso, senhor!”, disse o doutor. “A doutora! Quero agradecer a doutora!”, “Que doutora?”, perguntou o médico. Naquela manhã não havia doutora de plantão.

(Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 24 de maio de 2008)

Um comentário:

carol disse...

Com certeza ela esteve lá.