Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

sábado, 18 de fevereiro de 2012

O RH ao avesso


Já faz ao menos duas décadas que, em diversas partes do mundo, “Departamento de Pessoal” (DP) ganhou nova descrição, propósitos e nome de “Recursos Humanos” (RH). Inspirados nos norte-americanos – criadores da administração científica –, os chefes de seção, antes bons contadores, conhecedores das leis do trabalho, foram elevados ao posto de gestores, especialistas em clima e psicologia organizacional. Na teoria, consultores com relativa autonomia, encarregados, entre outras atribuições, de evitar que o patrimônio humano de seus patrões seja desperdiçado. Aparente estudioso do assunto, o cineasta israelense Eran Riklis vai além do que se pode aprender com a prática das empresas ou nas salas chiques de Master of Business Administration (MBA) para realizar filme de profundidade e provocação humana, advindas do tema. A missão do gerente de recursos humanos, lançado recentemente em DVD, em cópias minguadas nas locadoras sobreviventes da cidade, é um mergulho do homem em si mesmo por meio de sua percepção dos dramas do outro.

O filme, lançado ano passado no Brasil, é motivado pelo romance de Abraham B. Jehoshua, com base no qual Noah Stollman fez roteiro acertado, com diálogos curtos e rubricas de atormentar a alma. Riklis parte de um evento trágico, causado pelo conflito entre palestinos e israelenses, para desfiar a trajetória do personagem central, um gestor do administrativo, de vida particular e profissional medíocres, interpretado pelo ucraniano Mark Ivanir (foto), de A lista de Schindler (1993) e O terminal (2004). O diretor, conhecedor das agruras do Oriente Médio – são dele os tocantes A noiva síria (2004) e Lemon tree (2008) –, em A missão do gerente de recursos humanos, abre mão das divergências religiosas, velhas conhecidas, e recorre à imigração ilegal. Pano de fundo para descortinar a humanidade de sujeito comum, desses aos montes pagos para pensar pessoas. Trazer o longa às páginas não o esvazia nem tira o gosto de quem ainda não o viu. E são muitos, já que a obra de Riklis teve passagem relâmpago pelos cinemas, como vem ocorrendo em geral com os filmes de arte no Brasil.

A missão do gerente de recursos humanos, como todo bom filme fora dos padrões estadunidenses, não tem estrutura técnica de virada ou agrupamento de personagens esquematizados por mapas psicológicos. Embora sua narrativa seja linear e o “herói” deixe seu mundo em busca da solução, seus pontos de transformação – chamados “viradas” por Syd Field, pai dos manuais de roteiros – são sutis, internos, estão na excelente atuação de Ivanir e na fotografia de Rainer Klausmann. Ou ainda na subjetividade da morta de restos presentes, Yulia Petracke, vítima de atentado a bomba logo no início do filme. O corpo da mulher, cristã, ex-funcionária da maior panificadora de Jerusalém, vinda da Romênia, largado por dias em necrotério público, se torna assunto explorado por jornalista de tabloide sensacionalista. Preocupada com a imagem do negócio, a empregadora encarrega seu gerente (Ivanir) de dar toda a assistência à pequena família de Yulia. Incube-o, especialmente, de levar o corpo da jovem operária para ser sepultado em sua terra natal, no interior da Romênia, na presença do filho adolescente, problemático, e da mãe sofrida e severa.

O que se segue com o peso do caixão a reboque, em avião, em minivan e até em tanque de guerra, é autêntica cruzada de autoconhecimento de um homem de estrutura familiar falida, com dificuldades para administrar seus relacionamentos com a filha, com a ex-mulher e com a patroa. Novos atores, agentes do destino, se juntam ao chefe de RH ao longo de sua jornada para dar um enterro digno a Yulia. Não bastassem as dificuldades com os restos mortais da auxiliar de limpeza, o protagonista ainda precisa lidar com a presença quase insuportável de repórter caricato, obcecado por projeção. O jornalista, chamado apenas de Weasel, vivido por Guri Alfi, de Segredos íntimos (2007), protagoniza momentos tragicômicos bem dosados por Riklis, que carregou a mão no papel da imprensa em denunciar a culpa da panificadora industrial, testemunha de um “terrível engano”. Em A missão do gerente de recursos humanos, porém, a verdade é menos importante do que as transformações geradas pela falsa realidade que inflama interesses.

Outro apontamento que parece recorrer ao Teatro do Absurdo de Ionesco – autor, entre outros, de Rinoceronte –, além do tempo em círculo e desdobramento que nos devolve ao princípio, arrastado, estranho, quase crítico e paspalhão na obra de Riklis, está na composição do duo consulesa e seu marido, vice-cônsul, ex-motorista do consulado de Israel. Rosina Kambus se destaca no papel de mulher histriônica, atrapalhada com os trâmites burocráticos do traslado e na relação patética com o mundo e com suas funções diplomáticas. Como na peça de Ionesco, o casal figura entrelinha e subtexto para a movimentação de ser irreconhecível, bizarro, que levanta poeira e apateta a sociedade. Não é ir longe demais entender que no longa de Riklis, tanto quanto em grande parte das organizações empregadoras, são muitos os rinocerontes a esmagar seus diferentes menores.

Caderno Pensar - Estado de Minas - Jefferson da Fonseca Coutinho

Nenhum comentário: