Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara
segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012
O fim do sem fim
O velho Julião, viúvo, acordou cedo, antes do sol, como sempre. Banhou-se cantarolando o mesmo bolero antigo do Trio Irakitan, Aqueles olhos verdes, dos tempos de amor com a bela Lucimara. Vestiu-se como dia qualquer, de trabalho, em 57 anos de padaria. Passou café forte, retalhou o pão dormido e o colocou em tiras finas para torrar. Correu os olhos pelo jornal e sentiu-se feliz depois de ler Déa Januzzi no Estado de Minas de domingo. No corredor, antes de descer para o estabelecimento, parou diante do aparador com a fotografia da mulher companheira. “Impossível esquecer você, Luci…”, falou para si mesmo ao tocar o porta-retrato em madeira antiga.
Há exatos 10 anos, Lucimara não amanheceu. Dedicada, trouxe a água fresca para o criado mudo do marido, deu-lhe o remédio para o coração e beijou sua boca. “Amo você, Julião”, soprou em sorriso de menina. Nenhum som ou suspiro de morte. Foi-se, indo, assim, simplesmente. A última declaração de amor ouvida Julião jamais deu conta de esquecer. Não havia uma só manhã em que o comerciante não repensasse o amor. O relógio badala: 4h15. Fração para encarar o batente e subir a porta de aço que dá para a avenida. Do lado de fora, portões suspensos revelam Inês, de olhos e braços roxos, sentada na calçada. A funcionária da padaria, plantonista do dia, até tentou disfarçar o choro.
Notadamente sofrida, Inês passou por Julião sem dar conta de encará-lo, mais uma vez, e disse baixinho “bom dia”, tímida. “Ele de novo, minha filha?”, o patrão quis saber. “É, seu Julião. É”. A moça, de vinte e poucos anos, rumou ao fundo da padaria para vestir uniforme e prender os cabelos descuidados. Julião meneou a cabeça, sem ação ou noção do que fazer para ajudar a boa funcionária, volta e meia espancada pelo companheiro. Já havia se envolvido demais, levando-a à Delegacia de Mulheres na semana passada, por ocasião de mais abusos. Sentou-se junto ao caixa e recebeu seus outros três trabalhadores do dia.
O carro velho subiu o meio-fio e surpreendeu. Dele, sujeito saltou de arma em punho, trêmulo, aos berros: “Cadê aquela vadia? Eu sei que ela tá aqui! Cadê ela, velho filho da puta?”, partiu para cima de Julião, que manteve a calma e catou o fundo dos olhos do sujeito. “Ele vai me matar! Ele vai me matar, gente!”, gritou Inês, desesperada, escondendo-se atrás do balcão. O homem atirou na direção da mulher e estilhaçou os vidros do móvel. A bala não alcançou Inês, em choque. Tiro certeiro veio do caixa, no peito do agressor. Julião não perdoou o mau elemento, de longo histórico de violência contra a mulher.
Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 27/2/12
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