O Galpão segue na empreitada Tchékhov (1860-1904), que chega a seu terceiro desdobramento. Dividida para se somar mais e melhor, a trupe segue imersa na obra do dramaturgo e contista russo, em namoro que começou em 2008, com o documentário Moscou, do cineasta Eduardo Coutinho. De 2010 para cá, o Galpão formatou projeto de dois elencos. O primeiro ficou responsável por Tio Vânia, sob a direção de Yara de Novaes, com Antônio Edson, Arildo de Barros, Eduardo Moreira, Fernanda Vianna, Paulo André, Teuda Bara e Mariana Muniz, que está com casa lotada desde a estreia, no fim de abril. O segundo espetáculo, ainda sem nome, reúne no palco Chico Pelúcio, Inês Peixoto, Lydia Del Picchia, Júlio Maciel e Simone Ordones. Trata-se (por enquanto) de fragmentos de peças e contos de Tchékhov, em montagem com estreia prevista para dezembro, véspera das comemorações dos 30 anos do grupo. O Estado de Minas acompanhou com exclusividade um dia de trabalho com o diretor russo Jurij Aischitz, de 63 anos, encenador do mais novo espetáculo da Rua Pitangui.
O primeiro contato com o efeito russo foi logo no encontro com Chico Pelúcio em restaurante modesto no Bairro Sagrada Família. “Então, Chico? O que o russo quer?” A resposta veio com sorriso de absoluta sinceridade: “Não sei”. Ainda é cedo para saber. Chico está em fase de limpeza, de desconstrução. Primeiro, Jurij está dando duro em “aparatos” técnicos individuais para que o ator – “pessoa viva” – possa renascer mais intenso e verdadeiro. Há uma confusão evidente, valiosa, no olhar do tarimbado artista. Daquelas vivenciadas apenas em processos vertiginosos voltados para a construção de verdades. Em meio à conversa, Chico pensou em repetir o prato. Mudou de ideia quando se lembrou de que faltava menos de meia hora para o início do treinamento com o russo: “Melhor não”, ponderou. Mesmo sem saber o que viria, queria estar em estado de prontidão.
No entorno da sede do Galpão, na Rua Pitangui, o caminho está um pouco confuso com as mudanças no trânsito local. No salão de ensaios, alguns atores já estavam esparramados pelo chão. Eduardo Moreira, Paulo André, Júlio Maciel e Antônio Edson alinhavam seus “eus”. Faltava pouco para o russo assumir o trabalho do dia. O elenco de Tio Vânia também participa da reunião. Só Teuda Bara ficou fora da sala para juntar-se ao grupo mais tarde. Num ritual de silêncio, todos se agrupam para nova imersão com o mestre-diretor.
O que se vê quando Jurij Aischitz assume é excelente aula de teatro. “Mantenham o sentimento acima do horizonte. Não é tensão, mas uma pausa antes de um longo caminho”, orienta, com a calma que lembra mestres como Grotowski ou Peter Brook. Com a humildade de eterno aprendiz, o Galpão se entrega até aos ensinamentos mais primários do líder soviético. Dizer “bom-dia” nas suas mais variadas intenções se torna instrumento para aula de honestidade. “Honesty” é palavra de ordem para o pesquisador, assistido pelo jovem diretor Diego Bagagal, que também atua como tradutor para que nenhuma palavra em inglês seja desperdiçada. O primeiro momento do trabalho não é muito diferente do que se aprende do lado de cá do mundo, em estudos mínimos de bioenergética ou nos aquecimentos vindos do teatro físico.
Jurij faz diferença ao falar sobre caminhos. O professor anuncia a metáfora do rio que deságua no oceano. Chama a atenção para a letargia na estrada fácil, que faz dormir o motorista. Explica a importância da via difícil para o estado de prontidão. Frases soltas conduzem o jogo de percepção: “Há uma crise no caminho. Você para e recomeça”. “Arrisquem-se”. Orienta que a forte presença do desfecho, do objetivo final, também está presente no começo. Que não é preciso atuar. O melhor é deixar a emoção chegar. É permitir-se. Comenta o exercício: “Estamos nadando antes de encher a piscina. Tenho que escutar o que está acontecendo comigo. É preciso ser honesto”.
O mestre russo fala sobre timing. Da importância do antes e do depois de cada evento. “Tome o seu tempo. É preciso de prontidão”. Propõe ação de contraposições para alimentar o inesperado. “O ator é um mestre que pode mudar de uma energia para outra”. O grupo, entre tapas e abraços, exercita os ensinamentos soprados por Jurij. O diretor demonstra e explica que deve haver o momento de transformação da energia, num diálogo de contrastes. “É fogo. É água. Não pode ser constantemente só fogo, só água. Quando não há mudança, não há vida. É necessário esse treinamento dentro da gente”. Ensina, carregado de paixão, que o ator precisa se reorganizar sempre. Propõe como dever de casa para o dia seguinte a criação de 10 elementos diferentes de ação. Palmas. Fim do primeiro bloco.
Intervalo
A conversa é pouca e o clima de trabalho. Diego Bagagal, assistente, prepara caixa contendo textos de Tchékhov. Não se sabe muito sobre o que vai ser montado. Sessenta contos estão sendo trabalhados, pinçados entre cinco centenas, além de fragmentos de peças. Entre elas, A gaivota e As três irmãs. Enquanto alguns deixam o salão, outros lancham ao fundo, atrás de arara contendo figurinos. Há quem investigue a vestimenta para exercício de cena e composição. Simone Ordones e Júlio Maciel, centrados, ficam irreconhecíveis vestidos dos pés à cabeça. Já Antônio Edson, o Tio Vânia, faz malabarismo pelo salão. Hábil, treina lançar o chapéu do chão à cabeça. Lydia Del Picchia e Inês Peixoto, anfitriãs generosas, parecem ser as primeiras prontas para o próximo bloco. Chico Pelúcio prepara câmera para registrar a segunda parte do treinamento. Teuda Bara já está em sala para assistir a mais uma aula do pesquisador nascido em Odessa.
Trabalho de mesa
Jurij Aischitz tem muito a dizer. Não se pode prever o resultado de seu trabalho. Mas é possível identificar seu foco no processo, na construção e no significado do sentido. O russo não quer personagens. Quer pessoas vivas. Fala de planejamento e demonstração como quem – assim como seu conterrâneo Stanislavski – sabe esquematizar o método. Diz que o ator precisa de 60 a 90 minutos de preparação para o próximo dia. Ensina que ele não pode se esconder atrás do personagem. “A ideia, por si só, é mais importante do que a máscara. É preciso focar no sentido e não no personagem”. Para exemplificar as diferenças entre forma e sentido, Jurij faz uso da ponta da camisa com as duas mãos, de maneira desconectada, para mostrar que, naquele momento, o que ele faz é menos importante do que o que ele diz. Faz ainda uso da caneta Bic em performance, para ilustrar a relação do “eu” com a ideia. Ora distante, ora conectados. Chico Pelúcio quer saber mais sobre a leitura de distanciamento do russo. “Seria algo parecido com Brecht?”. É diferente, o pesquisador explica. Segundo Jurij, o ator não está de fora, comentando ou criticando. É uma distância técnica de criação, de trabalho. Um paradoxo. A oposição dá intimidade à relação.
É o distanciamento pelo domínio absoluto do papel. Jurij resgata sua experiência como intérprete e fala sobre a magia da busca constante. “Você não precisa dar o personagem ao público. Você precisa fazer com que o público veja o personagem em você. É o público quem traz o personagem para fora, porque ele está dentro de você. É quando o papel se apropria do ator. É muito forte quando o papel começa a liderar. Honestamente forte para o ator e para o público. É intenso você se perder para o papel. Não tenham medo da palavra: é como uma morte. E este animal, que trabalhamos tanto para dominar, começa a viver”, pontua. O mestre, responsável por centro de pesquisa na Alemanha, onde vive desde 1992, explica que a forma pode ser grande, teatral, mas volta a dizer que, por dentro, é preciso ser honesto. “Aconteceu, aconteceu. Não aconteceu, não aconteceu. Somos pessoas vivas. Se somos verdadeiros, podemos permitir que o público crie as personagens”.
Ao cair da noite, breve intervalo para nova etapa. Depois de tudo que foi observado e aprendido, uma certeza: naquele galpão havia segredos do mundo. Foi a deixa para deixar o salão de ensaios. Mestre, assistentes e aprendizes precisam de intimidade para confabular com Tchékhov.
Estado de Minas - Jefferson da Fonseca Coutinho - 10/6/11
O primeiro contato com o efeito russo foi logo no encontro com Chico Pelúcio em restaurante modesto no Bairro Sagrada Família. “Então, Chico? O que o russo quer?” A resposta veio com sorriso de absoluta sinceridade: “Não sei”. Ainda é cedo para saber. Chico está em fase de limpeza, de desconstrução. Primeiro, Jurij está dando duro em “aparatos” técnicos individuais para que o ator – “pessoa viva” – possa renascer mais intenso e verdadeiro. Há uma confusão evidente, valiosa, no olhar do tarimbado artista. Daquelas vivenciadas apenas em processos vertiginosos voltados para a construção de verdades. Em meio à conversa, Chico pensou em repetir o prato. Mudou de ideia quando se lembrou de que faltava menos de meia hora para o início do treinamento com o russo: “Melhor não”, ponderou. Mesmo sem saber o que viria, queria estar em estado de prontidão.
No entorno da sede do Galpão, na Rua Pitangui, o caminho está um pouco confuso com as mudanças no trânsito local. No salão de ensaios, alguns atores já estavam esparramados pelo chão. Eduardo Moreira, Paulo André, Júlio Maciel e Antônio Edson alinhavam seus “eus”. Faltava pouco para o russo assumir o trabalho do dia. O elenco de Tio Vânia também participa da reunião. Só Teuda Bara ficou fora da sala para juntar-se ao grupo mais tarde. Num ritual de silêncio, todos se agrupam para nova imersão com o mestre-diretor.
O que se vê quando Jurij Aischitz assume é excelente aula de teatro. “Mantenham o sentimento acima do horizonte. Não é tensão, mas uma pausa antes de um longo caminho”, orienta, com a calma que lembra mestres como Grotowski ou Peter Brook. Com a humildade de eterno aprendiz, o Galpão se entrega até aos ensinamentos mais primários do líder soviético. Dizer “bom-dia” nas suas mais variadas intenções se torna instrumento para aula de honestidade. “Honesty” é palavra de ordem para o pesquisador, assistido pelo jovem diretor Diego Bagagal, que também atua como tradutor para que nenhuma palavra em inglês seja desperdiçada. O primeiro momento do trabalho não é muito diferente do que se aprende do lado de cá do mundo, em estudos mínimos de bioenergética ou nos aquecimentos vindos do teatro físico.
Jurij faz diferença ao falar sobre caminhos. O professor anuncia a metáfora do rio que deságua no oceano. Chama a atenção para a letargia na estrada fácil, que faz dormir o motorista. Explica a importância da via difícil para o estado de prontidão. Frases soltas conduzem o jogo de percepção: “Há uma crise no caminho. Você para e recomeça”. “Arrisquem-se”. Orienta que a forte presença do desfecho, do objetivo final, também está presente no começo. Que não é preciso atuar. O melhor é deixar a emoção chegar. É permitir-se. Comenta o exercício: “Estamos nadando antes de encher a piscina. Tenho que escutar o que está acontecendo comigo. É preciso ser honesto”.
O mestre russo fala sobre timing. Da importância do antes e do depois de cada evento. “Tome o seu tempo. É preciso de prontidão”. Propõe ação de contraposições para alimentar o inesperado. “O ator é um mestre que pode mudar de uma energia para outra”. O grupo, entre tapas e abraços, exercita os ensinamentos soprados por Jurij. O diretor demonstra e explica que deve haver o momento de transformação da energia, num diálogo de contrastes. “É fogo. É água. Não pode ser constantemente só fogo, só água. Quando não há mudança, não há vida. É necessário esse treinamento dentro da gente”. Ensina, carregado de paixão, que o ator precisa se reorganizar sempre. Propõe como dever de casa para o dia seguinte a criação de 10 elementos diferentes de ação. Palmas. Fim do primeiro bloco.
Intervalo
A conversa é pouca e o clima de trabalho. Diego Bagagal, assistente, prepara caixa contendo textos de Tchékhov. Não se sabe muito sobre o que vai ser montado. Sessenta contos estão sendo trabalhados, pinçados entre cinco centenas, além de fragmentos de peças. Entre elas, A gaivota e As três irmãs. Enquanto alguns deixam o salão, outros lancham ao fundo, atrás de arara contendo figurinos. Há quem investigue a vestimenta para exercício de cena e composição. Simone Ordones e Júlio Maciel, centrados, ficam irreconhecíveis vestidos dos pés à cabeça. Já Antônio Edson, o Tio Vânia, faz malabarismo pelo salão. Hábil, treina lançar o chapéu do chão à cabeça. Lydia Del Picchia e Inês Peixoto, anfitriãs generosas, parecem ser as primeiras prontas para o próximo bloco. Chico Pelúcio prepara câmera para registrar a segunda parte do treinamento. Teuda Bara já está em sala para assistir a mais uma aula do pesquisador nascido em Odessa.
Trabalho de mesa
Jurij Aischitz tem muito a dizer. Não se pode prever o resultado de seu trabalho. Mas é possível identificar seu foco no processo, na construção e no significado do sentido. O russo não quer personagens. Quer pessoas vivas. Fala de planejamento e demonstração como quem – assim como seu conterrâneo Stanislavski – sabe esquematizar o método. Diz que o ator precisa de 60 a 90 minutos de preparação para o próximo dia. Ensina que ele não pode se esconder atrás do personagem. “A ideia, por si só, é mais importante do que a máscara. É preciso focar no sentido e não no personagem”. Para exemplificar as diferenças entre forma e sentido, Jurij faz uso da ponta da camisa com as duas mãos, de maneira desconectada, para mostrar que, naquele momento, o que ele faz é menos importante do que o que ele diz. Faz ainda uso da caneta Bic em performance, para ilustrar a relação do “eu” com a ideia. Ora distante, ora conectados. Chico Pelúcio quer saber mais sobre a leitura de distanciamento do russo. “Seria algo parecido com Brecht?”. É diferente, o pesquisador explica. Segundo Jurij, o ator não está de fora, comentando ou criticando. É uma distância técnica de criação, de trabalho. Um paradoxo. A oposição dá intimidade à relação.
É o distanciamento pelo domínio absoluto do papel. Jurij resgata sua experiência como intérprete e fala sobre a magia da busca constante. “Você não precisa dar o personagem ao público. Você precisa fazer com que o público veja o personagem em você. É o público quem traz o personagem para fora, porque ele está dentro de você. É quando o papel se apropria do ator. É muito forte quando o papel começa a liderar. Honestamente forte para o ator e para o público. É intenso você se perder para o papel. Não tenham medo da palavra: é como uma morte. E este animal, que trabalhamos tanto para dominar, começa a viver”, pontua. O mestre, responsável por centro de pesquisa na Alemanha, onde vive desde 1992, explica que a forma pode ser grande, teatral, mas volta a dizer que, por dentro, é preciso ser honesto. “Aconteceu, aconteceu. Não aconteceu, não aconteceu. Somos pessoas vivas. Se somos verdadeiros, podemos permitir que o público crie as personagens”.
Ao cair da noite, breve intervalo para nova etapa. Depois de tudo que foi observado e aprendido, uma certeza: naquele galpão havia segredos do mundo. Foi a deixa para deixar o salão de ensaios. Mestre, assistentes e aprendizes precisam de intimidade para confabular com Tchékhov.
Estado de Minas - Jefferson da Fonseca Coutinho - 10/6/11
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