O Dudu soube pela tia, dona Ilda, da violência sofrida pelo rapper Ice Band, no Bar Brasil 41, em Santa Efigênia. Pareceu-lhe inacreditável que aquele cidadão de bem, que cantava a paz, pudesse ser vítima de tamanha barbaridade, espancado por sete elementos. Para Dudu, moço pobre do morro, órfão de pai traficante – morto a tiros – e filho de mãe doente, Hudson Carlos de Oliveira – o Ice Band – figurava a esperança. Foi o rapper quem disse a ele, numa palestra na escolinha, sobre os efeitos das escolhas que o homem faz. Moleque na época, Dudu passou noites com seu travesseirinho encardido, pensando em tudo o que ouviu daquele negro de olho de vidro.
No dia da palestra, Dudu ganhou ainda do professor Arthur – negro como ele – caderninho com texto de Martin Luther King na capa em preto e branco: "Se soubesse que o mundo se desintegraria amanhã, ainda assim plantaria a minha macieira. O que me assusta não é a violência de poucos, mas a omissão de muitos. Temos aprendido a voar como os pássaros, a nadar como os peixes, mas não aprendemos a sensível arte de viver como irmãos". O pirralho de pouco mais de metro e meio achou aquilo bonito demais e pensou que o escrito fosse um rap do tal Luther King. Gostou tanto que o decorou canção.
Com o Ice Band – o artista-educador deficiente –, o Dudu se encontrou semana depois da palestra, numa oportunidade para ver peça teatral. Na companhia de outros 15 garotos pobres da comunidade, Dudu foi ao teatro pela primeira vez. Sentou-se na frente, bem perto do palco. Sentiu-se feliz, com o calor de todas aquelas luzes sobre as personagens vestidas de cor. Num olho só, Ice Band enxergava em dobro a satisfação da sua gente. Dudu teve o rapper ainda em mais alta conta depois do programa na casa com nome de Futuro. “Oi Futuro. Engraçado”, refletia, na volta à favela.
Dali em diante, Ice Band – o Hudson Carlos de Oliveira – se tornou o ídolo do Dudu. Foi pensando no rapper que o rapaz decidiu superar o trauma de infância, peso de dia ruim, quando viu o pai ser fuzilado na porta de casa, com um prato de comida na mão. Pequeno, chegou a jurar vingança, mas, agora, Dudu, só pensava em dar exemplo e vencer na vida – como outros tantos apadrinhados por Ice Band. Arranjou vaga de frentista em posto de grande avenida e tocou adiante os passos. Segunda-feira passada, chegava em casa depois de plantão, quando foi recebido por dona Ilda, com a notícia: “O Hudson, meu filho, o Ice Band, foi espancado por causa de um pedaço de churrasco. Pode? Tá lá no João 23”.
Dudu desceu às pressas para tentar visitar o amigo no pronto-socorro. Na cabeça encostada na janela do busão, cantarolando baixinho o “rap” do tal Luther King, uma pergunta a lhe fritar os miolos: “Qual é o preço da carne, meu irmão?”.
Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 6/12/10
Foto: Gustavo Baxter
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