Feliz a readaptação da peça O lobo de ray-ban – dramaturgia bem-acabada do ator Renato Borghi – para A loba de ray-ban, levada ao Grande Teatro do Palácio das Artes no fim de semana. Em 1987, protagonizado por Raul Cortez, o texto de Borghi convenceu o público e a crítica com seu metateatro existencial. Mais de 20 anos depois, com Christiane Torloni, agora, no papel principal, a versão guardada – escrita para Dina Sfat –, se faz igualmente valiosa. Literatura de peso e profundidade, especialmente para iniciados, que, num só ato de quase duas horas, homenageia, entre outros, Thechov, Beckett, Genet, Eurípides, Vianinha, Weiis e Pirandello. Trata-se de teatro maior para quem gosta, conhece ou já sentiu na pele a crueza dos que fazem do palco a vida.
Em A loba de ray-ban, pela carpintaria de Borghi – ator com mais de meio século de carreira – prevalece a alma. No homem, na mulher e no terceiro sexo, vaidade, dores de amor, traição e abandono não se diferem. A parceria do autor com o diretor José Possi Neto, ainda melhor madura, fez com que o essencial da trama de 1987 permanecesse. Mérito acrescido, naturalmente, à presença de Christiane Torloni e Leonardo Franco no elenco das duas versões. O quarteto refaz encontro que não se repete. Ainda que prejudicado por miúdos descuidos, A loba de ray-ban é grandioso pelo conjunto.
Os pormenores ficam por conta do tom baixo, confidencial, da interpretação de Torloni em alguns trechos da peça. Ouve-se com dificuldade parte do que é dito. Nem se discute qualidade de intenções – Torloni as conhece muitíssimo bem. Mas os microfones instalados no teatro não dão conta dos sussurros da atriz. Outro pormenor é o desfile de Leonardo Franco no tablado. Chega a chatear ver ator de timing e transições tão primorosos andar balangando os braços de um lado para o outro das marcas.
A surpresa é Maria Maya, longe dos papéis menores da telinha. Intensa, de presença vertical em A loba de ray-ban. Parece castigo que tão boa atriz seja filha de gente graúda da TV (Wolf Maia e Cininha de Paula). Para a intérprete, muito cobrada pelo público e pela mídia, desvencilhar-se da fama dos pais diretores não parece ser nada fácil. No entanto, Maria Maya é de estatura que vai muito além de suas raízes. Em A loba de ray-ban, a moça se agiganta ao lado de Torloni e assegura paixão e embate. Eleva verdade construída ao nível de poder e fogo da protagonista.
Encenador de estrelas do teatro nacional, não é de surpreender a excelência plástica de José Possi Neto em luz – assinada por ele –, figurino (Fábio Namatame) e cenário (Jean-Pierre Tortil). Em A loba de ray-ban, os bastidores de Medeia, de Eurípides, compõem pano de fundo perfeito para o drama vivido pela célebre Júlia Ferraz, dona de importante companhia teatral brasileira. Penumbras, pesos e contrapesos, refletores e rampas se deslocam em diálogo entre passado e presente. A eficiência da estrutura cenográfica garante agilidade às transposições na linha do tempo.
Há ainda outro fator preponderante no êxito técnico de A loba de ray-ban: ponto final em virada redentora. Diferentemente do que busca levar a crer toda toada dramatúrgica de Borghi, o desfecho converte o ápice da quase tragicômica figura central.
Estado de Minas - EM Cultura - 6/12/10
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