Mentiroso ou contador de histórias? Vitinho não sabia. Era jovem demais para entender a diferença entre o que é falsidade e o que é imaginação. Aos 3 anos, de mente muito fértil, incrementou sua primeira grande aventura. Não se sabe bem se provocado por imensa capacidade de criação ou se por delírio, efeito da febre alta por conta da meningite. A verdade é que Vitinho estava internado na enfermaria da Santa Casa de Misericórdia. Os pais, quilômetros dali, em barraco sem reboco nas margens da ribeira, choravam a triste sorte do garoto.
No hospital, no 2º andar, Vitinho não conseguia pregar o olho com saudades de casa. Mesmo em cama mais confortável e paparicado pelas moças de branco do lugar, Vitinho queria picar a mula e voltar para a vila onde morava. Sentia falta até do cheiro de bebida e de cigarro do pai. Já estava a mais de semana entre os doentes daquela ala sem fazer grandes amizades. Não era de muita conversa para fora. Vivia cheio de prosa para dentro. Calado, falava o tempo todo, de tudo, para si mesmo. Ouvia vozes também. Nada de paranormal. Criatividade somente. Do canto em que estava, próximo da janela, podia contar estrelas e ver os braços das árvores. No relógio de parede, 4h30.
Vitinho esperou que o vizinho, um gordinho tagarela e insone, pregasse os olhos. Ergueu o tronco e conferiu, uma a uma, se as vinte e tantas crianças dormiam. Aproveitou o cochilo da enfermeira peituda, arrancou o soro do braço, calçou o chinelinho e saiu pé ante pé até alcançar o corredor. Uma eternidade até as escadas que davam para o térreo. No andar de baixo, o movimento era intenso, parecia dia. Para não ser pego, foi preciso que Vitinho se escondesse atrás de cadeira de rodas. Encolhido, viu com olhos arregalados quatro policiais gigantes, fardados, empurrando uma maca. Nela, uma mulher e um recém-nascido ensaguentados.
Área liberada, arisco, saltou para beco com barreira transparente ao fundo. Ao tentar saber para aonde dava a porta, viu vários homens verdes, mascarados, com ferramentas de aço nas mãos – umas brancas, outras vermelhas. Com o susto, deixou a quebrada num pinote e alcançou novamente a escadaria. Enfim, o térreo. Faltava pouco para a rua. O homem grande de bigode, concentradíssimo, estava escrevendo qualquer coisa numa prancheta. Vitinho não estava disposto a desistir. Queria rever o pai, a mãe e os irmãos. Tomado de nova carga de coragem, veloz como um atleta, cruzou a portaria. O porteiro custou a acreditar no que viu. Ligeiro, pegou Vitinho no colo ainda na calçada. No alto, o fujão avistou um helicóptero voando baixo.
Curado, dois dias depois, Vitinho teve alta. Feliz, voltou para a casa nos braços da mãe. Vê-lo contar sua tentativa frustrada de fuga na Santa Casa de Misericórdia, perseguido por soldados, marcianos e disco voador, virou atração. “Já nasceu pescador o moleque”, gargalhava o avô. Para a família, um mentiroso. Para o mundo, um novo escritor.
Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 21/8/10
No hospital, no 2º andar, Vitinho não conseguia pregar o olho com saudades de casa. Mesmo em cama mais confortável e paparicado pelas moças de branco do lugar, Vitinho queria picar a mula e voltar para a vila onde morava. Sentia falta até do cheiro de bebida e de cigarro do pai. Já estava a mais de semana entre os doentes daquela ala sem fazer grandes amizades. Não era de muita conversa para fora. Vivia cheio de prosa para dentro. Calado, falava o tempo todo, de tudo, para si mesmo. Ouvia vozes também. Nada de paranormal. Criatividade somente. Do canto em que estava, próximo da janela, podia contar estrelas e ver os braços das árvores. No relógio de parede, 4h30.
Vitinho esperou que o vizinho, um gordinho tagarela e insone, pregasse os olhos. Ergueu o tronco e conferiu, uma a uma, se as vinte e tantas crianças dormiam. Aproveitou o cochilo da enfermeira peituda, arrancou o soro do braço, calçou o chinelinho e saiu pé ante pé até alcançar o corredor. Uma eternidade até as escadas que davam para o térreo. No andar de baixo, o movimento era intenso, parecia dia. Para não ser pego, foi preciso que Vitinho se escondesse atrás de cadeira de rodas. Encolhido, viu com olhos arregalados quatro policiais gigantes, fardados, empurrando uma maca. Nela, uma mulher e um recém-nascido ensaguentados.
Área liberada, arisco, saltou para beco com barreira transparente ao fundo. Ao tentar saber para aonde dava a porta, viu vários homens verdes, mascarados, com ferramentas de aço nas mãos – umas brancas, outras vermelhas. Com o susto, deixou a quebrada num pinote e alcançou novamente a escadaria. Enfim, o térreo. Faltava pouco para a rua. O homem grande de bigode, concentradíssimo, estava escrevendo qualquer coisa numa prancheta. Vitinho não estava disposto a desistir. Queria rever o pai, a mãe e os irmãos. Tomado de nova carga de coragem, veloz como um atleta, cruzou a portaria. O porteiro custou a acreditar no que viu. Ligeiro, pegou Vitinho no colo ainda na calçada. No alto, o fujão avistou um helicóptero voando baixo.
Curado, dois dias depois, Vitinho teve alta. Feliz, voltou para a casa nos braços da mãe. Vê-lo contar sua tentativa frustrada de fuga na Santa Casa de Misericórdia, perseguido por soldados, marcianos e disco voador, virou atração. “Já nasceu pescador o moleque”, gargalhava o avô. Para a família, um mentiroso. Para o mundo, um novo escritor.
Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 21/8/10
Um comentário:
Vitinho tem um jeitinho Miguilim de ser...
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