Ele sempre gostou de linhas traçadas em papel barato. Nunca soube muito bem por quê. Hoje, cartas tão fora de moda, o funcionário público municipal, com quase duas décadas de prefeitura, tem em casa um quarto para seus guardados escritos à mão. Dirigidas a ele são bem poucas, já que não é de muitos amigos ou parentes distantes. Genilson coleciona cartas que não lhe dizem respeito. Há tempos, desde que começou a trabalhar como contínuo em casa comercial da Avenida Amazonas, oferece dinheiro aos conhecidos por suas correspondência de pouca importância.
Perguntado sobre a razão do hábito tão estranho de compra, Genilson é seco: “Porque gosto”. E gostava mesmo. Gostava simplesmente. Sentia-se feliz em ter um pedacinho da vida dos outros. Para os colegas de seção, o sujeito do almoxarifado era verdadeira incógnita: quarentão reservado, sem família ou vida social. Não gostava de futebol, cerveja ou mulher de nenhuma medida. “É enrustido. Só pode ser”, balangavam os beiços maldosos pelos corredores da repartição. Genilson sabia das conversas de boca miúda, mas não se importava. Para ele, de valor mesmo, apenas a preciosa coleção.
Para entender Genilson, é preciso voltar aos anos 1970, quando deixou a mãe, no interior, para viver com o pai, pintor, em Belo Horizonte. Ao sair da cidadezinha na Zona da Mata, garoto de pouco mais de metro, pediu à mãe de coração partido: “Escreve pra mim toda semana, mamãe, escreve?!”. Dona Eulália, tristíssima com a partida do rebento, balançou a cabeça dizendo que sim. Da janela do ônibus esverdeado o pequeno Genilson pôde ver o olhar da mãe embaçado como quem perde um pedaço.
A vida na capital não foi fácil. A começar pelo primeiro aniversário, interminável semana depois da viagem. Dia em que o pai, ocupado, se esqueceu de mimo ou abraço. Golpe duro para moleque tão mal-acostumado com os beijos da Eulália. Para agigantar o drama, ainda, nada de carta. Com o acumular das semanas vieram os meses. Nem recado ou bilhete. Telefone era sonho, já que em nenhum dos dois barracões havia. Lá, no interior, terra de gente humilde, um só posto para dois mil habitantes. Do lado de cá, pelas bandas da Gameleira, única linha na rua, em casa de moço bravo, militar. Certa vez, Genilson o ouviu oferecer ao pai: “Para o caso de urgência e extrema necessidade”.
E foi por meio do aparelho vermelho, do vizinho policial, que Genilson manteve contato com a mãe por longa data. Duas ou três vezes por ano, não mais que isso, mãe e filho aguavam os olhos da saudade. Os anos se foram duros e velozes. Genilson já era rapaz feito e estava empregado quando soube da morte da mãe. Ao voltar à terra para o enterro, coube a ele, mais velho entre os irmãos, desfazer o quarto de Eulália. Para sua surpresa, numa gaveta enorme de móvel carunchado, centenas de cartas rabiscadas, iniciadas. Genilson soube, então, que a mãe não sabia escrever.
Vida Bandida - Jefferson da Fonseca outinho - 7/8/10
Perguntado sobre a razão do hábito tão estranho de compra, Genilson é seco: “Porque gosto”. E gostava mesmo. Gostava simplesmente. Sentia-se feliz em ter um pedacinho da vida dos outros. Para os colegas de seção, o sujeito do almoxarifado era verdadeira incógnita: quarentão reservado, sem família ou vida social. Não gostava de futebol, cerveja ou mulher de nenhuma medida. “É enrustido. Só pode ser”, balangavam os beiços maldosos pelos corredores da repartição. Genilson sabia das conversas de boca miúda, mas não se importava. Para ele, de valor mesmo, apenas a preciosa coleção.
Para entender Genilson, é preciso voltar aos anos 1970, quando deixou a mãe, no interior, para viver com o pai, pintor, em Belo Horizonte. Ao sair da cidadezinha na Zona da Mata, garoto de pouco mais de metro, pediu à mãe de coração partido: “Escreve pra mim toda semana, mamãe, escreve?!”. Dona Eulália, tristíssima com a partida do rebento, balançou a cabeça dizendo que sim. Da janela do ônibus esverdeado o pequeno Genilson pôde ver o olhar da mãe embaçado como quem perde um pedaço.
A vida na capital não foi fácil. A começar pelo primeiro aniversário, interminável semana depois da viagem. Dia em que o pai, ocupado, se esqueceu de mimo ou abraço. Golpe duro para moleque tão mal-acostumado com os beijos da Eulália. Para agigantar o drama, ainda, nada de carta. Com o acumular das semanas vieram os meses. Nem recado ou bilhete. Telefone era sonho, já que em nenhum dos dois barracões havia. Lá, no interior, terra de gente humilde, um só posto para dois mil habitantes. Do lado de cá, pelas bandas da Gameleira, única linha na rua, em casa de moço bravo, militar. Certa vez, Genilson o ouviu oferecer ao pai: “Para o caso de urgência e extrema necessidade”.
E foi por meio do aparelho vermelho, do vizinho policial, que Genilson manteve contato com a mãe por longa data. Duas ou três vezes por ano, não mais que isso, mãe e filho aguavam os olhos da saudade. Os anos se foram duros e velozes. Genilson já era rapaz feito e estava empregado quando soube da morte da mãe. Ao voltar à terra para o enterro, coube a ele, mais velho entre os irmãos, desfazer o quarto de Eulália. Para sua surpresa, numa gaveta enorme de móvel carunchado, centenas de cartas rabiscadas, iniciadas. Genilson soube, então, que a mãe não sabia escrever.
Vida Bandida - Jefferson da Fonseca outinho - 7/8/10
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