Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

terça-feira, 17 de agosto de 2010

O dia em que Eugênio nasceu

Mesmo com Jacira passando mal, Jonas saiu para beber com os amigos no bar do Buxexa. Não deu importância à mulher, que reclamava demais. Gravidez complicada, oitavo mês. "Já que você não vai, vou jogar uma sinuquinha com a patota e não me demoro. É só pra aliviar um pouco o batidão do volante", disse o motorista de linha vermelha, penteando o cabelo para trás. Era pouco mais de 7h da noite e o céu estava num azul escuro de morte, quase negro.

Jonas deixou Jacira no barracão de fundo, com único quarto e banheiro de cimento grosso. Sem televisão, a mulher ligou o rádio para ajudar a esquecer a dor. Costumava dar certo. O locutor de voz aveludada anunciou música vinda do estrangeiro: "Una furtiva lacrima". Deitada no sofá-cama duro e manco, respirou fundo e, sentindo-se melhor, chorou simplesmente. Olhou pela janelinha sobre a pia e viu os insetos que rodeavam em farra a lâmpada de luz fraca. Os pingos da torneira marcavam os suspiros do tempo. No rádio, notícias do mundo de lá. Jacira, doméstica desempregada, ouvia as conversas do pensamento e carinhava a criança que estava para chegar.

Quadras para cima da ribeira, Jonas mandava ver cachaça e bola na caçapa. Um campeão entre as ruindades do copo-sujo. Jogava valendo a ficha e, quase sempre, fazia a barba e o bigode da cambada. Podia virar a noite sem perder uma só partida. Cigarrinho no canto da boca, mascarava e matava a pau numa mão. Naquela noite, endiabrado, Jonas fez rodar a fila. Na faixa AM do Claudomiro, mais conhecido como "Buxexa", a música era alegre: samba. A pinga corria solta e o tira-gosto gordurento compunha a festinha barata. Ali, não havia goteira que desse conta do tempo.

Horas depois, madrugada, com a chave na mão, Jonas mal podia se manter de pé diante da porta do barraco. Ao destravar a fechadura, viu a mulher no chão com a bolsa rompida encolhida em dores. Desesperado, reuniu forças para sair com Jacira apoiada em seu ombro e ganhar a rua deserta. Não havia um vizinho que tivesse carro ou telefone. Aos trancos e barrancos, cortaram dois quarteirões para dobrar a avenida. Por obra de Deus, sabe-se lá, ao longe, Jonas avistou as luzes de uma Veraneio da polícia.

Quatro homens fardados desceram para oferecer ajuda. A mulher ocupou o banco de trás do camburão, enquanto Jonas se acomodou na parte gradeada ao fundo, reservada aos criminosos. O trajeto até a Santa Casa de Misericórdia, de sirene aberta, foi longo, quase interminável. O homem, ainda bêbado, só retomou seu estado sóbrio ao ouvir o choro da criança nos braços dos policiais. O veículo mal estava estacionado em frente ao hospital, quando a mulher e o bebê, sujos e ensanguentados, seguiram de maca pelos corredores do pronto-socorro.

Esquecido na jaula da radiopatrulha, Jonas precisou fazer muito barulho para que pudesse ser solto e acompanhar a família. Foi assim quando Eugênio nasceu: um milagre. Força do acaso e mão do destino.


Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 14/8/10

2 comentários:

Níblia Soares disse...

Estupendo!!!!

Alexandre Lamas Gonçalves disse...

Sempre com maestria seus textos nos remetem a alguma ótima lembrança do tempo q éramos mais felizes e não sabíamos.
Parabéns mesrte e amigo Jefferson.
Continue assim !! Vc vai longe rsrs.
Fraterno abç,
Alexandre