Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A BH que eu amo


Keven resgatou com o cabo da vassoura o banquinho de madeira feito pelo avô a boiar na Linha Verde. “Um presente, Kevinho. O vovô fez pra você”, retumbou a lembrança quando trouxe o móvel salvo ao teto, único ponto de sobrevivência do barraco no Bairro Primeiro de Maio. Sentou-se sob as chuvas que castigavam Belo Horizonte. A imagem do avô, pedreiro, vindo de Taquaraçu de Minas nos anos 1960 para tentar a vida na cidade grande, não lhe deixava o pensamento. Ainda mais porque na manhã seguinte ao presente – o banquinho –, o velho Ananias foi abatido por mal súbito, encaminhado ao pronto-socorro e de lá para nunca mais. O adolescente era unha e carne com o mulato forte das barbas brancas e do coração cansado. “Tá descendo aí o meu pai”, chorou diante da cova no Cemitério da Paz, em 2000. Na época garoto, Keven não tinha somado 15 anos.

A morte do Ananias virou ao avesso a família. O barracão de três cômodos, única herança, foi motivo de discórdia, já que Tuca e Chumbinho só pensavam no dinheiro. Keven, o mais moço dos três irmãos sem pai, foi o único a se preocupar com a mãe, que teve quadro de doença psíquica agravado com o fim do arrimo da casa. Selma, em tarde de crise, saltou da passarela para mergulho no asfalto da Avenida Cristiano Machado. Na velocidade trágica do instante, foi um caminhão de combustível a fazer o serviço. De volta ao cemitério, em menos de ano, Keven viu a terra vermelha cobrir caixão barato mais uma vez. Os irmãos, ocupados com assalto pé de chinelo, não compareceram. Órfão e desamparado, Kevinho olhou para os lados e não disse palavra. Suspirou profundo apenas e decidiu vencer na vida. Deixou de lado amigos suspeitos e começou a trabalhar pesado para juntar dinheiro e comprar a parte dos irmãos no imóvel. Sentia no lugar a presença do avô, que ergueu sozinho tijolo por tijolo.

Em quatro janeiros, sem gastar tostão fora do que é necessário, o mocinho pagou no papel de ajudante de obra a parte de cada irmão. “Agora, cacem seu rumo”, disse com firmeza, no dia em que completava 19 anos. Caçaram nada. O bom coração de Keven permitiu que Tuca e Chumbinho continuassem por lá sempre que careciam de abrigo limpo e comida na geladeira. Às vezes, sumiam por meses. Volta e meia, o ajudante de pedreiro voltava para casa e encontrava um dos irmãos na salinha, de prato na mão: “Tô no apuro, mermão. Não esculacha”. Fazer o quê? Sentar e comer junto. No fundo, Keven até gostava de saber que eles estavam vivos e livres. O volume do Córrego do Onça desespera. E o tempo, como filme a rodar a cabeça do corpo do bom moço, encharcado, sentado no banquinho sobre a laje do barracão. As águas já cobriam as paredes. Impávido, Keven não arredou os pés da propriedade, arrasada pelas chuvas. Ficou ali a relembrar o avô e a mãe, enquanto a BH das obras, do futuro e da Copa do Mundo, derretia em estado de emergência.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 19/12/11

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