Na companhia de Dorinha, Ariela foi soltando a língua. Excitadíssima, parecia ter reencontrado amiga de infância. Deixou falar joelhos e cotovelos. Cada vez mais envolvida pelo jeito moleque e determinado da guria, a artista da voz macia, gentil e carinhosa, começou a perceber a confiança construída ao acaso naquela manhã. “Podia ser minha irmã caçula”, pensou Dorinha. À primeira vista, a garota lembrava mesmo a parente, que morava em Ponte Nova. O sorriso de curvatura pequena e o jeito mulher que dá a volta por cima, sem drama ou chorumela, eram por demais familiares. Há menos de hora, Ariela estava em frangalhos pelo corredor. Agora, falava com a agitação de quem parecia pronta para cair em balada. Contudo, o velho Ananias, volta e meia lhe retomava as ideias:
– O pai sempre foi um lutador. Deu foi azar de só gostar de mulher que não presta.
– Não fale assim. E sua mãe?
– Também nunca prestou. Pintou o sete com ele. Não deixava ele fazer nada. Nem pescar com os amigos ele podia. Na rua, ele, polícia, mandava e desmandava. Já em casa, parecia um boneco nas mãos da velha. Até macumba ela fazia. É. Pra espantar qualquer rabo de saia que pudesse aparecer na frente dele.
– Sua mãe mexia com essas coisas?
– Não só mexia como ensinava os outros a mexer. Uma vez eu vi ela meter a faca na barriga de um carneiro e beber o sangue dele vivo. Na frente de um monte de mulher mal amada. Já cortou a cabeça de porco, galinha e gato preto.
– Meu Deus!
– Toda vez que uma mulher perdia o homem, batia lá em casa pra velha dar um jeito. Tomou dinheiro de gente desesperada e costurou muita boca de sapo.
– Nossa. A sua infância deve ter sido horrível.
– Só não foi pior porque ela deixava a gente brincar com os bonecos que ela fazia. Eu não achava muita graça, mas meus irmãos adoravam espetar aqueles corpinhos de pano e serragem com varetas de bambu. Quando cresci fui saber que aquilo era coisa do mal.
– Que mulher é essa?
– Minha mãe.
– E ela até hoje faz isso?
– Tem muito tempo que eu não tenho nem notícia. Sei lá, até hoje deve tá fazendo. Andou por uns tempos dizendo que havia aceitado Jesus, que era crente. Depois tava fervendo no despacho de novo. Lá em casa, toda vez que acontecia alguma coisa de ruim, morria um bicho preto no quintal. Não esqueço nunca. Meu pai morria de medo das rezas da velha. Dizia que ela tinha parte com o capeta. Na época eu achava ruim. Até chorava quando ele falava isso. Depois fui compreender que ele tinha razão.
– Minha raiva do seu pai até passou, Ariela. Mas ele não pode bater em você.
(Continua na próxima segunda-feira)
Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 25/10/10
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