Se por um lado faltou ao adaptador coragem para encarar a imensidão trágica dos versos do clássico alemão, por outro sobrou ousadia para refazer autoral, desembaraçada e (até) divertida a difícil trajetória do personagem alquimista. Dramaturgicamente, um resumo quase irresponsável. Já, cenicamente, com méritos indiscutíveis. Mesmo raso, Fausto (S!) é espetáculo de relevância. A começar pelo bom desenho de cena e uso do espaço. O CentoeQuatro, com suas centenas de metros quadrados em níveis e ambientes diferenciados, é o mundo até para encenadores em início de carreira.
Fausto (S!) se faz necessário ainda por juntar ao frescor de jovens atores de duas companhias (Cia do Chá e Preqaria) à experiência de Alexandre Toledo (elenco), Amanda Prates (preparação vocal e trilha sonora), Joaquim Elias (preparação corporal) e Raul Belém Machado (cenário). Quarteto de notável contribuição ao longo alcance do conjunto. O figurino de William Rausch, de bom gosto e acabamento, também enriquece o coletivo. Destaca-se elementar no desdobramento homem/diabo. A iluminação, assinada por Felipe Cosse, Juliano Coelho e Vladmir Medeiros, também é bastante apropriada aos múltiplos espaços e atmosferas explorados pelo grupo. O trio valoriza janelas, passarelas, escadas e salões.
Com uma dezena de bons atores nas mãos, capitaneados pelo incansável Alexandre Toledo – dos mais atuantes de sua geração –, o diretor João Valadares soube bem explorar as capacidades de seu pessoal. Permitiu que a competente Gabriela Dominguez, por exemplo, transitasse com liberdade cômica e comedida em suas composições. Sara Pinheiro, que já demonstrava admirável vocação em exercícios de interpretação, chama a atenção por nuance e domínio. Precisa, faz por merecer a fé da plateia mais exigente. Jésus Lataliza deixa de lado tendência ao excesso e já se faz melhor intérprete longe dos muros da escola.
Fausto (S!), contemporâneo, contemplado com recursos do Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz, com bom elenco, espaço e equipe técnica de grandeza, bem que podia ter mais Goethe e menos João.
Fausto(s!)
Amanhã e domingo; dias 30 deste mês e de 1º a 4 de julho, às 20h, no Espaço cultural CentoeQuatro, Praça Rui Barbosa, 104, Centro. Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia entrada). Informações: (31) 9345-1110 e http://www.preqaria.com.br/.
Foto: Igor Aires
Estado de Minas - Jefferson da Fonseca Coutinho - 25/6/10
Um comentário:
Tudo é sempre outra coisa
Comentário da Critica de Jefferson da Fonseca sobre o espetáculo Fausto(s!)
É isso, estamos aí para isso mesmo, dando a cara para bater, fazendo arte porque queremos dizer as coisas e, sim, querendo saber todas as opiniões...
Eu particularmente gosto de saber o que as pessoas acham do trabalho da Preqaria, trabalhamos com um produto muito fulgaz que, daqui alguns anos, ninguém vai se lembrar. Então tudo o que está escrito pode ser muito bom para manter viva a nossa história. Por isso quero comentar que fiquei muito satisfeito com a critica. Há nela várias leituras que propomos e outras que o Jefferson nos ajuda a enxergar. O fato é que ele está certo, não é o Fausto de Goethe, é a nossa leitura do Fausto de Goethe. Queremos que ela seja mais divertida do que dramática, queremos oferecer ao público uma experiência que está mesmo descomprometida com aquele personagem específico, muito culto e alquimista, que já no fim da vida faz o pacto com o diabo. Queremos falar do homem comum, qualquer um, talvez todos, que a cada dia faz o pacto com o desejo. Nossa dramaturgia, talvez rasa e adianto, com outros problemas até mais graves do que esse, busca refletir esse homem.
Mas o mais louco é que desta vez temos trechos do Goethe, falas grandes que vem do texto original. O enredo foi sintetizado, mas é basicamente o mesmo. E a critica do Jefferson, que, claro, é uma entre todas as criticas de todas as pessoas que assistiram e ainda assistirão o espetáculo, diz que falta Goethe, que ao invés de "releitura contemporânea" deveria se dizer "livremente inspirado"... Aí retomo o pensamento em nosso espetáculo anterior, o "Nosso Estranho Amor", onde não há nenhuma palavra de Samuel Beckett, fizemos mudanças consideráveis no enredo de sua novela "Primeiro Amor", principalmente entrecruzando características de personagens das outras novelas, e ouvimos criticas de que havia muito Beckett, que não podia ser chamado de "livremente inspirado", porque era o próprio Becekett. (Claro que encarei como elogio, como disse a própria Soraya Belusi do Jornal O Tempo, "ter a própria poesia confundida com o texto de um dos maiores escritores do século XX é um luxo para poucos"...) Loucura, né? A gente faz as coisas com certa consciência, pensando em dizer algo e acaba dizendo uma outra coisa. Talvez isso seja arte. Talvez seja como Mario Quintana proclama: "Na poesia tudo é sempre outra coisa".
João Valadares
www.preqaria.com.br
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