Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

sábado, 22 de maio de 2010

A casa da mãe morta (4)

O cheiro bom do café sobre a mesa tomava conta da sala. Beatriz, sem pressa, mergulhada no tempo, aguardava a filha para cortar o bolo feito na noite passada, especialmente para a ocasião. Larissa esquadrinhava o quarto montado para ela, com tudo do bom e do melhor, no final do corredor. No entanto, sentia-se desconfortável naquele cenário de nenhuma intimidade. Afinal, por 18 anos fora filha apenas da avó, dona Mercedes, morta recentemente em Divinópolis. De Beatriz, mãe biológica, guardava apenas as interrogações que lhe assombravam a cabeça desde pequeninha. Larissa voltou do quarto ainda de mochila nas costas. Colocou-a no chão, simplesmente, junto da cadeira. Sentou-se e, mascando chicletes, não olhou nos olhos de Beatriz. Para dobrar o instante, começou a brincar com a xícara sobre o pires de louça jamais usado.

O silêncio sufocava ainda mais o coração de Beatriz, excitado com a possibilidade de ter a filha morando com ela, no modesto apartamento comprado com tanto suor. Talvez pela oportunidade de reconstruir o futuro, talvez porque pensava conseguir enterrar o passado. Não sabia ao certo. Tinha apenas a convicção de que aquele, para as duas, seria um novo dia para o resto de suas vidas. Embora, por vezes, tenha ensaiado tanto o que dizer, não conseguiu organizar o pensamento. Para romper a absoluta falta de assunto, no fluxo da respiração, apenas abriu a boca para aliviar palavra:

– Deixa eu colocar sua mochila no sofá. Tem gente que diz que bolsa no chão dá azar e espanta a felicidade. Nunca se sabe. Melhor a gente não facilitar. Posso?

– Humhum.

– O bolo é de fubá. Tá longe de ficar como o da mamãe, mas foi ela quem me ensinou. Eu era pequena... acho que nem sabia andar e ela já fazia esse bolo toda noite. Tem algumas coisas que a gente não esquece. A vovó, mãe da mamãe, morava com a gente... já tava muito doente, coitada... e ela levantava toda noite só pra comer o bolo. Depois, quando ela já não dava conta de andar mais, a gente dormia junto e ela me acordava todo dia no meio da madrugada pra buscar bolo pra ela. Isso durou muito tempo. Não esqueço. A última coisa que ela fez antes de morrer foi comer um pedaço de bolo de fubá. De manhã, não acordou mais. Você nem sonhava nascer. O mais estranho é que durante anos eu pensei que a culpa tinha sido minha. Bobagem. Assunto mais chato o meu. É que comecei a falar no bolo e me perdi, viajando no tempo. Melhor você tomar o café antes que fique frio. Vou lá dentro e já volto.

Beatriz deixou a mesa segurando as águas que a afogavam por dentro. Só, Larissa deixou de brincar com a xícara para pregar o chiclete no pires. Cortou pedaço do bolo e serviu-se de café. Olhou com profundidade no entorno do cômodo e disse baixinho para si mesma: "Pode não ser tão ruim assim. Até que pode não ser".

(Continua no próximo sábado)

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 22 /5/10

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