Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

sábado, 15 de maio de 2010

A casa da mãe morta (3)

Ao vencer os degraus, Larissa deu de cara, no topo da escada, com a porta do 402 aberta. Beatriz quis sorrir, mas teve medo da reação da menina. Então, armou rosto neutro, quase sem expressão: “Entra. Acabei de passar um café”. A sós, mãe e filha frente a frente. Pelos desdobramentos do tempo, inexorável, havia uma atmosfera carregada de distância entre as duas mulheres. O instante falseou pausa interminável até que Larissa decidisse entrar. Beatriz quis quebrar o gelo:

– Não repare. As coisas ainda estão fora de ordem. Morar sozinha é bom, mas é ruim porque a gente sempre acaba deixando alguma coisa pra fazer depois. Sei lá, acho que é porque não tem ninguém além de você mesma pra cobrar ou pra ver que as coisas estão fora do lugar. O tempo passa rápido, aí, quando você vê, a casa tá desarrumada.

– Legal aqui.

– Ainda falta muito. O apartamento é velho, tava caindo aos pedaços. Ficou fechado por mais de ano. O dono morreu, aí os filhos ficaram brigando na Justiça. Tem pouco tempo que eu consegui acertar a documentação. Deu mais trabalho porque tinha ficado faltando uma certidão que tava perdida com alguém da família do proprietário, lá no interior da Bahia. Foi um problema. Mas agora já tá tudo resolvido e o apartamento é meu. Quer dizer... é nosso, se você quiser ficar morando aqui.

– É só por um tempo.

– Claro. O tempo que você quiser. O seu quarto, o quarto que eu preparei pra você, fica no final do corredor. Vai lá deixar suas coisas enquanto eu arrumo a mesa pra gente tomar o café que eu acabei de passar.

– Com licença.

Para Beatriz, o diálogo, quase monólogo, durou uma eternidade. Em 18 anos, ela jamais havia falado tanto na presença da filha, criada por dona Mercedes, morta recentemente. Dali em diante, na família – elas sabiam – eram só as duas. Enquanto Beatriz preparava a mesa para o café, Larissa conferia o quarto montado especialmente para ela. De fato, parecia o único cômodo planejado da casa. Com tudo novinho em folha, até com escrivaninha e computador. Roupas de cama perfumadas e bichinhos de pelúcia sobre aconchegantes almofadas coloridas. Criado, abajur, estante e sofazinho cor-de-rosa.

Na sala, a dona da casa, sentada à mesa, aguardava Larissa para o café. Era dia bastante especial para Beatriz, que sonhou muito ter a filha por perto. Lamentava, no entanto, que isso só se tornara possível agora, depois da morte da mãe, em Divinópolis. Durante anos, não houve dia em que viver ao lado das duas não tenha lhe passado pela cabeça.

(Continua no próximo sábado)

Arte: Ann Wolff / Mother Daughter / Glass collage cased in steel

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 15/5/10

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