Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

sábado, 7 de novembro de 2009

O sonho operário

"Chegava a dar para sentir o bafo do capoeirista estrangeiro com quem a pilantra passou a madrugada só na rasteira"




O Alvismar mais parecia uma granada sem pino. Não bastasse a namorada cretina, tinha ainda o chefe sem noção para lhe fritar os miolos. Família na cidade não sabia o que era havia tempo, desde que os pais resolveram deixar a capital em busca de paz no interior. O contador estava prestes a explodir. “Valei-me, Deus!”, sussurrava para si mesmo, naquela manhã acinzentada, enquanto esperava a inicialização do PC tartaruga vezes 7.0. A verdade é que tudo parecia maior e mais grave no arrastar da hora.

Para piorar a situação, o vizinho de mesa, à esquerda, Leonel, autista de quase tonelada, dava geral no salão com o indicador no nareba. À direita, o Cotoco, velho e careca, esfregava um calcanhar no outro com o pé chulezento fora do sapato. Sentada logo à frente, dona Nair, gorda e feia como o capeta, oferecia lance bizarro sem calcinha. “Visão do inferno”, pensou com o cenho franzido e cara de nojo. Ao fundo, o abestalhado caçador de estagiárias tarrafava com liberdade: “E aí, princesa?”. Fato é que mais um dia comum aterrorizava o Alvismar.

Logo cedo, antes da 6h, a namorada vacilona ligou para justificar o perdido da noite anterior: “Tava na casa da Dadá. Esqueci o celular, bebê. Foi mal, picurruchinho da Lulu. Você tentou falar comigo, né!?”. Chegava a dar para sentir o bafo do capoeirista estrangeiro com quem a pilantra passou a madrugada só na rasteira. Alvismar não disse palavra. Lamentou, apenas, por gostar demais da sujeita. Afinal, quem não já sofreu mal de amor bandido? Foi na Avenida Pedro II, no busão, em engarrafamento descomunal, que o humor do pacato cidadão começou a ir para o saco: “Ninguém merece!”

Ao chegar ao trabalho, no elevador levou sapatada do gerente burocrata: “Atrasado de novo. Virou festa? É a segunda vez só este ano, ‘seu’ Alvismar. E ainda estamos em novembro. Não sei não”. A voz do mala sem alças e bigode soou-lhe trovoadas. Respirou fundo três vezes para não chutar o pau da barraca ali mesmo, no micro quadrado de aço. Afrouxou a gravata, entrou na seção e ligou o computador retardado. Enquanto esperava, esperava... esperava, repassou a vidinha sem graça daqueles tempos de má companhia.

Manjou bem o futuro, vendo o Leonel, a dona Nair, o Cotoco e o velho tarado. Olhou para dentro e aquietou os pensamentos: “É isso!”. O sistema operacional ainda não estava pronto para rodar quando o Alvismar deixou o prédio esquálido, cortou a Praça 7 e ganhou a rodoviária. Sorriu para a bilheteira oxigenada e tomou ônibus para nunca mais.

Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 7 de novembro de 2009

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