Jefferson da Fonseca - Mostra Tua Cara

segunda-feira, 4 de julho de 2011

O segredo de Fátima


Não é bruxaria. É método. Está no sistema o segredo da verdade elaborada de Fátima Toledo. A preparadora de elenco que nos últimos 30 anos sofisticou as interpretações do cinema brasileiro, considerada “bruxa” por muitos atores e diretores, deu rosto às mais fortes emoções de obras como Central do Brasil, Cidade de Deus, Linha de passe e Tropa de Elite. Treinou gente da estatura de Sean Connery, em O curandeiro da selva (Medicine man), de 1992, rodado na Amazônia. Sem falar nas atuações arrebatadoras de Leandro Firmino e de Wagner Moura emergidas de suas provocações – quem não se lembra do traficante Zé Pequeno ou do capitão Nascimento? Fátima desembarca amanhã em Belo Horizonte para participar da terceira edição do Cine Aberto – Laboratório de Filmes. A partir das 19h, na Sala Humberto Mauro, no Palácio das Artes, a treinadora vai comandar aula aberta depois da exibição de outra fita que leva a sua marca: Mutum, de Sandra Kogut.

Não é novidade sistematizar métodos de interpretação. O russo Constantin Stanislavski – leitura obrigatória para qualquer um que sonha ser ator – fez isso muito bem no fim do século 19. Seus ensinamentos até hoje fazem escola em todo o mundo e não há intérprete, por mais medíocre que seja, que ainda não tenha ouvido falar seu nome. Depois dele, outros estudiosos e pensadores trouxeram novas ideias de sistema. Para citar apenas dois, Brecht e Grotowski conquistaram legião de seguidores. O alemão se opôs, já o segundo, o polonês, deu ainda mais profundidade aos estudos do russo. Fátima Toledo, brasileira de Maceió, parece conhecer os três muito bem, a ponto de subvertê-los. “A diferença fundamental está no conceito. Faço o uso de exercícios de Stanislavski, de Grotowski, mas não construo personagens. Não tem roteiro, mapeamento ou estudo de subtexto. O material principal é o ator em ação”, explica.

Fátima diz não se achar no teatro político de Brecht. Revela admiração, mas não acha necessário o distanciamento para a compreensão e a crítica. “Em Tropa de elite 1 e 2, por exemplo, há uma crítica terrível e os atores estão absolutamente integrados”. Ao responder se já foi procurada por algum político, num país de tantas mentiras, para treiná-lo a construir verdades, Fátima diz que já. “Não é fácil. Não preparo os empresários e os políticos que me procuram para suas funções. Isso é muito claro desde o primeiro contato. Trabalho a humanização. Em alguns eu consigo. Em outros não. Não é um caminho fácil”, revela.

Não atores são uma especialidade de Fátima Toledo. Mais fácil? Mais difícil? Ela diz que depende da entrega da pessoa. Seu método é voltado para os “eus” de cada um. A treinadora age como uma espécie de agente invisível, que provoca, que instiga. Só tem a intenção de ir até onde o outro permite. Não dá nada para ninguém. Tira. Desperta. Um mergulho na sombra, na alma do indivíduo. Daí o apelido “bruxa” para alguns. Há sempre um sopro com alguma orientação valiosa no ouvido do ator – profissional ou não. Observadora perspicaz, Fátima foca incômodos e até inconveniências para revelar o que há de mais sincero dentro de cada um. Foi assim com o capitão Nascimento e com Zé Pequeno. Dois rostos de emoção retirados a ferro e fogo em treinamento de suor e sangue – Wagner Moura fez sangrar capitão do Bope, durante as preparações do primeiro Tropa de elite.

Rejeição

De fato não é para qualquer um o sistema organizado de Fátima Toledo. Há muita rejeição. Em oficinas Brasil afora, ou nas salas de seu estúdio-escola no Bairro Vila Mariana, em São Paulo, é preciso entrar inteiro para não pedir para sair. Com ela ou com seus assistentes – fiéis discípulos –, é intensamente físico e profundamente emocional. Tudo começa com conversa franca, aberta, para eliminar frescuras e despertar limites. Os atores-alunos assistem aos vídeos com depoimentos, bastidores, estudo de cenas e seus desdobramentos levados à tela. Depois, por meio de técnicas de ioga e bioenergética, têm treinamento físico pesado, à exaustão. Explosões em gritos e solavancos. Tudo para despertar os sentidos. A segunda parte é composta por jogos específicos para a construção de situações. Não há personagem. Nunca há. É a pessoa, inteira, como ela é, nessa ou naquela circunstância. Cenas e textos são soprados na hora pelo treinador. Ninguém tem que decorar nada. Precisa apenas entender sensorialmente o conflito, a relação. O resultado é registrado em vídeo para avaliação e feedback.

Estreia

Sobre a verdade é o nome do filme de estreia da cineasta Fátima Toledo. Em fase de captação, o longa é baseado em fato real e conta a história de família arruinada por falsa acusação de pedofilia. Tem planos para rodá-lo em 2012 e espera ter no elenco Wagner Moura, Lázaro Ramos, Carla Ribas e Vinícius de Oliveira. Para este ano, pressionada pela Imprensa Oficial de São Paulo, revisa seu livro Interpretar a vida, viver o cinema, escrito por Maurício Cardoso, sobre o desenvolvimento do método ao longo de quase 30 anos – de Pixote (1981) a Linha de passe (2008).


POR ONDE ANDA

Leandro Firmino da Hora, carioca, acaba de completar 33 anos. Revelado em Cidade de Deus (2002), do cineasta Fernando Meirelles, o ator é cria de Fátima Toledo. Foi provocado pela preparadora de elenco que ele trouxe à luz sua melhor criação: o traficante Zé Pequeno (na foto, à direita). Desde então, tomou gosto pelos sets e abraçou a carreira de intérprete. Esteve em novela, seriados e especiais de emissoras da TV aberta. Nada com a repercussão do papel que o consagrou internacionalmente. Nos cinemas, arriscou-se na direção com o curta Um crime quase perfeito, ao lado de Luis Nascimento. Participou de Cafundó, Trair e coçar é só começar, O homem que desafiou o diabo e No olho da rua - seu mais recente trabalho, que teve estreia tímida este ano, com passagem pela 14ª Mostra de Tiradentes.


Estado de Minas - EM Cultura - Jefferson da Fonseca Coutinho

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